quarta-feira

De Asfamil por Quenena até Carcavelos: Maravilhas de um Trilho Medieval que une Oeiras e Cascais



por João Aníbal Henriques

Desde a antiga aldeia de Asfamil, situada a Norte do Bairro do Pomar das Velhas e de Quenena, no extremo interior do território municipal de Cascais, em plena Freguesia de São Domingos de Rana, até ao mar, vão em linha recta cerca de 8 kms…

O trilho, possivelmente de origem medieval, era diariamente calcorreado por centenas de trabalhadores que dos campos férteis situados nesse local traziam para aqueles que viviam junto ao mar as frutas, os legumes, o leite e o pão que permitiram a essas povoações crescer e afirmar-se. E quando regressavam, com os seus burros de trabalho de alforjes vazios, traziam consigo a roupa suja dos mais importantes habitantes do litoral, que lavavam nas ribeiras puras do interior, secando ao Sol das velhas eiras que por ali abundavam.



Era uma vida diferente aquela que caracterizava os actuais concelhos de Cascais e de Oeiras nesses tempos. Não existindo uma separação formal entre os territórios do litoral e do interior, nem tão pouco o obstáculo que no final dos anos 80 do Século XX resultou da construção da A5, a complementaridade económica, cultural e social entre ambas as comunidades ditava uma visão coesa e global do território, garantindo que a prosperidade chegava naturalmente a todo o lado.

Agora, numa acção de que se prevê que reúna novamente os dois municípios em torno de uma causa comum, tudo se prepara para que novamente se reaproxime o mar do interior, num esforço que terá como base a recuperação do velho trilho medieval, assente na potencialização das maravilhas ambientais e paisagísticas que o caracterizam, mas que avançará transversalmente com repercussões directas ao nível da habitação, da mobilidade sustentável, da recuperação urbanística, da cultura e da educação, anulando definitivamente a clivagem que durante as últimas décadas dividiu o território em duas partes com condições distintas e devolvendo a todos os munícipes a possibilidade de aspirarem à qualidade de vida que é um direito transversal e universal de todos os portugueses.



O velho caminho medieval que trará o mar até à zona onde antigamente tínhamos a Lixeira de Trajouce, e que é ainda hoje (infelizmente) uma das mais degradadas áreas do território municipal de Cascais, permitirá alterar radicalmente o paradigma do dia-a-dia de todos aqueles que ali habitam. A requalificação urbana do espaço onde vivem, reforçará a Identidade Municipal e terá consequências directas muito evidentes na qualidade de vida destes cascalenses.

O projecto de intervenção neste local, aspiração antiga defendida pela Fundação Cascais desde a sua fundação em 1993, conhece agora um importante avanço, com o arranque das primeiras obras de recuperação do velho trilho, definindo assim um plano global de gestão do espaço que oferece um futuro condigno a toda a região.



Daqui resultará um território coeso, cultural e socialmente saudável, numa abordagem abrangente que alavancará muitos outros projectos conjuntos unindo Cascais e Oeiras em torno desse comum desiderato de recriar as condições que permitam aos nossos filhos e aos filhos deles aspirar a viverem felizes nesta nossa terra!










terça-feira

A Capela da Sagrada Família do Pisão e a Mestria do Arquitecto João de Sousa Araújo



por João Aníbal Henriques

Com a evocação da Sagrada Família, num apelo pungente à sua função de acompanhamento e reintegração social que acompanhou sempre a actividade do asilo da Quinta do Pisão desde a sua criação em 1950, a Capela do Pisão, construída entre 1952 e 1954 pelos internados naquela colónia, conforme se lê no painel de azulejos colocado na fachada do edifício, é um dos mais significantes monumentos religiosos de Cascais.

Essa importância, muitíssimo superior à própria morfologia do edifício, inteiramente integrada no traço modernista que resulta da época em que foi construída e da precariedade de recursos que foram dispensados para a sua conclusão, fica a dever-se ao seu profundo significado simbólico. Era ali, durante muitas décadas, que os utentes internados nesta colónia encontravam algum apoio espiritual, de forma a amenizarem as agruras terríveis dos tempos passados encarcerados naquele espaço. Foi, por isso, durante quase meio século, símbolo de luz, de paz e de esperança (quantas vezes o único!) que ajudava aqueles seres humanos a manterem-se vivos espiritualmente.

Foi porventura por esse motivo que o saudoso arquitecto e pintor João de Sousa Araújo, falecido em 2023, se interessou pela obra da Capela da Sagrada Família. E, devoto como era, lhe dedicou o seu tempo e a sua arte produzindo o conjunto artístico que decora o templo e que ainda hoje ali se pode ver. Os painéis da capela, produzidos localmente através de várias parcerias sociais, demonstram bem a sua permanente necessidade de colocar o seu génio e a sua arte a trabalhar a favor da comunidade. Foram os utentes que estavam internados no Albergue da Mendicidade da Mitra quem, sob a direcção do já então muito ilustre arquitecto Sousa Araújo, construíram a capela, concretizando artisticamente os esboços que ele havia preparado para o local.



Nascido em Lisboa em 1929 e falecido no Estoril em 2023, João de Sousa Araújo é figura incontornável na história artística de Portugal. Com uma obra ímpar ao nível da arte sacra, foi porventura o último dos grandes pintores portugueses nessa área, tendo dedicado a Deus uma parte essencial do seu génio artístico e do dom que sabia ter recebido do céu.

Formado em Arquitectura, Pintura e Escultura pela ESBAL (Escola Superior de Belas Artes de Lisboa), onde obteve uma média final de 20 valores, o Arquitector João de Sousa Araújo foi agraciado com diversos prémios desde o início da sua carreira.

Sendo igualmente professor, actividade que lhe permitia partilhar a excelência do seu traço, trabalhou no Banco de Portugal, tendo sido autor de várias maquetes que serviram, de base à criação de treze notas portuguesas.

Ao nível da arte sacra, para além de ter assinado projectos para várias igrejas e capelas um pouco por todo o Mundo, destaca-se o seu trabalho enquanto autor dos vitrais da nave central da Basília de Nossa Senhora do Rosário, em Fátima, bem como o painel do seu Altar-Mor. Entre 1968 e 1997, elabora para a Catedral de Nampula, Moçambique, os vitrais, o políptico da Capela do Santíssimo “Pacem in Terris”, e o políptico do Altar-Mor “Aparições de Fátima”.

Representado através dos seus trabalhos nas principais colectâneas de arte a nível mundial, destaca-se a presença das suas obras nas colecções particulares do Papa Paulo VI, do Rei Humberto II de Itália e do Imperador do Japão.

Através da ALA – Academia de Letras e Artes, foi autor do quadro monumental dedicado a Nossa Senhora da Aparecida, que foi oferecido ao Presidente do Brasil e que se encontra exposto no Palácio do Planalto, em Brasília.

Este ano de 2025, por iniciativa do Vice-Presidente da Câmara Municipal de Cascais, Nuno Piteira Lopes, e da Provedora da Santa Casa da Misericórdia, Isabel Miguéns, começa com o boa notícia do arranque das obras de recuperação das ruínas desta capela. A intervenção, que pretende repor integralmente as características do espaço original, integra ainda a recuperação do painel de azulejos produzido por Sousa Araújo para servir de fundo ao altar-mor da Igreja Matriz de Alcabideche e que, depois de ter ficado tapado pela construção do novo altar ali colocado no início do século, será recolocado na Capela da Sagrada Família, na Quinta do Pisão, resgatando assim a integridade artística da obra do pintor estorilense que desta maneira poderá ser vista pela primeira vez de forma completa no espaço em vias de recuperação.

Depois de muitos anos de pedidos, acções de sensibilização dos vários executivos que passaram pela edilidade ao longo dos últimos tempos, e de apelos que ultimamente sublinhavam já só estado de ruína avançada em que o monumento se encontrava, eis que a obra arrancou, incentivando a recuperação do significado profundo deste espaço e, sobretudo, contribuindo de forma decisiva para o resgate da Identidade Municipal!

Numa homenagem merecida e justa ao Arquitecto e Pintor João de Sousa Araújo, um dos maiores vultos de sempre da arte cascalense!





quarta-feira

Capela de Nossa Senhora da Piedade da Quintã em Porto Salvo



por João Aníbal Henriques

A primeira impressão que evoca a Capela de Nossa Senhora da Piedade, na estrada que liga Oeiras a Porto Salvo, é de enorme estranheza. Não só pelo contraste latente entre a beleza telúrica daquele espaço e o estado de abandono e ruína em que se encontra, como também pela notória qualidade da sua construção, bem visível nos enormes blocos de pedra que foram utilizados para a sua edificação.

A data de 1737, colocado na arcaria situada na fachada principal, terá sido porventura a data da sua construção original, apesar de a Junta de Freguesia de Porto Salvo nos informar que noutros tempos existiriam no seu interior magníficos painéis de azulejos datados do final do Século XVIII, e posteriores ao grande terramoto de 1755, que representavam Jesus Cristo a Caminho do Calvário e a Descida da Cruz.



O culto a Nossa Senhora da Piedade, aqui integrado no contexto agrícola da antiga Quinta da Quintã, onde a capela se integrava, surge perfeitamente em linha com outras obras existentes na área da grande Lisboa. E aqui, literalmente no enclave entre as grandes propriedades exploradas no Século XVIII pelo Marquês de Pombal, ganha especial relevo esta ligação teúrgica entre a ruralidade contextual do edifício e a própria vivência social das comunidades que habitavam nas imediações ou que ali trabalhavam sazonalmente.

A dependência relativamente aos ciclos da natureza, sempre incontornáveis na perspectiva prática e pragmática da vida, só pode amenizar-se através da Fé e da oração. E, quando assim é, em Porto Salvo como em todos os espaços onde a memória saloia perdura, são sempre os rituais marianos que enquadram a esperança comunitária.

A figura de Nossa Senhora, que piedosamente nos transporta para os planos mais elevados da espiritualidade, ganha, em contexto rural, um cunho quase mágico, transformando-se a Mãe de Jesus histórica, na personificação sempre presente da mãe espiritual de toda a comunidade. É dela que dependem as colheitas e a consequente fartura de alimentos. Ou, em situação inversa, o castigo dos maus anos agrícolas com o sempre presente registo de fome da comunidade. Como é evidente, sem que qualquer dessas situações dependesse da aplicação ou do trabalho do homem do campo, ficando inteiramente ao dispor da vontade de Deus.



Nossa Senhora da Piedade, a grande medianeira entre a Terra e o Céu, é igualmente uma figura mágica. Porque tem a capacidade de, estando junto de Deus, influenciar as suas decisões relativamente aos seus filhos. Por isso a prece aqui proferia é sempre especial, assumindo a imagem venerada o papel de uma verdadeira escada que permite ao Ser Humano subir até aos píncaros do Céu. Scala Coeli, a alquímica escada que faz das preces aqui conscientemente rezadas a verdadeira Ciência de Maria… alquimia… a capacidade de transformar terra, ar e água em pão e de assim alimentar a comunidade.

Também conhecida como Nossa Senhora da Esperança, a evocação deste templo transporta-nos assim para esse registo rural, em linha com aquilo que foi a génese política do Município de Oeiras e, de alguma forma, explicativa da  dedicação e cuidado que recebeu da parte da Família Pombal.

Bem visível na sua fachada está a estrela de oito pontas, que fazia parte do Escudo de Armas do Marquês de Pombal e que aqui representa a rosa dos ventos, numa ambígua alusão que fica implícita ao movimento incontrolado dos astros e à sua capacidade de influenciar os destinos humanos sobre a Terra. Imaginada para ser vista em movimento, até porque a vida é um jogo que os homens não dominam por completo, a estrela que decora a Capela de Nossa Senhora da Piedade vem reforçar essa ligação imensa entre o destino deste lugar e a sua dependência de Deus.

O estado de abandono e ruína em que esta capela se encontra, possivelmente derivada do facto de a antiga Quinta da Quintã ter sido totalmente esfacelada no final do Século XX com a construção da imensa rede viária que a retalhou em várias partes, resultará também da sua pouca acessibilidade. Quem a quer visitar é obrigado a contornar as rotundas e, sem se enganar, desviar prontamente para o pequeno acesso que permite entrar no velho adro. Não é fácil e normalmente a visita vai-se adiando…

Mas vale a pena! Porque a riqueza do seu significado e contexto ajuda a perceber o que foi, o que é e o que ainda poderá vir a ser o pujante e sempre magnífico Município de Oeiras.





sexta-feira

O Carnaval de 1939 no Casino Estoril




por João Aníbal Henriques

O Mundo vivia envolvido num clima de profunda tensão em 1939, e a Europa, marcada pela ascensão política de Adolf Hitler e do III Reich alemão, debatia-se com a dúvida relativamente ao que fazer perante aquela absurda e rápida tomada de poder. O clima de incerteza era enorme e no horizonte político de curto prazo sabia-se que era possível iniciar-se uma guerra devastadora com consequências imprevisíveis para o velho continente e para os países que o compunham há muitos séculos.

Mas no Estoril, paraíso resguardado num enclave de paz e serenidade, a vida continuava quase alheada do que estava a acontecer…

No Carnaval de 1939, num Mundo prestes a entrar em guerra, o Casino Estoril anuncia uma animada e extraordinária festa com cunho internacional. Para além dos corsos que se multiplicaram pelas ruas apinhadas de público daquela maravilhosa estância balnear, nos quais participaram artistas de renome internacional e que contou até com um carro decorado pelo próprio Salvador Dali, o canal de televisão americano CBS, com o seu renomado programa conduzido pelo conhecido Ed Sullivan, transmitiu o seu famoso show a partir do Casino Estoril.

A alegria e a elegância dos Estoris, era assim apresentada numa profusão de bailes temáticos em que os participantes entravam vestidos a rigor.

E o Estoril, apresentado como a estância com o inverno mais suave da Europa, era verdadeiramente o paraíso para reis, príncipes e princesas que ali faziam brilhar o charme próprio de quem sabia ser gente muito especial que tinha a sorte de poder estar no mais especial de todos os destinos daquelas Europa em pânico!  



 


terça-feira

Nossa Senhora da Graça de Cascais


por João Aníbal Henriques

Diz-se na “Chancelaria de Dom Fernando” que em 1364, quando pescavam nas águas da baía de Cascais, os pescadores encontraram submersa uma magnífica imagem de Nossa Senhora com o Menino ao colo. Talhada em madeira de cipreste, a imagem era de tal maneira formosa que foi desde logo apelidada de Nossa Senhora da Graça, facto que consolidou a devoção dos pescadores cascalenses àquela evocação antiga de Nossa Senhora. O fervor da oração em torno da imagem foi tanto que, mercê da fama angariada por esse Portugal fora, foi a imagem entregue à guarda dos Frades Agostinhos de Lisboa, que a colocaram em lugar de destaque no Altar-Mor do seu mosteiro na capital. Nasceria assim o Bairro da Graça, onde o tal mosteiro estava implantado, reforçando o fervor devocional do povo antigo de Cascais!