segunda-feira

Quando o Rei Humberto II de Itália foi Doar Sangue em Cascais



por João Aníbal Henriques

Existem histórias que se transformam em mitos e mitos que se transformam em História… foi o que aconteceu com o Rei Humberto II de Itália durante os muitos anos em que residiu exilado na Vila de Cascais.

Despojado, por sua vontade, dos rigores protocolares que tinha conhecido enquanto foi monarca, o Rei fez questão de se integrar plenamente nos usos e nos costumes de Cascais, partilhando com os cascalenses os seus hábitos e a simplicidade despojada que desde sempre caracterizou a vida social nesta vila.

Pouco depois de aqui se instalar, inicialmente em Casa do Conde Monte Real, em frente à Cidadela de Cascais e, depois, numa das Casa Pinto Basto situada junto à enseada de Santa Marta, resolveu um dia logo pela madrugada, de forma a não ser visto por ninguém, dirigir-se ao posto de saúde da vila para se inscrever como doador de sangue.

O seu natural altruísmo, e o desdém que sentia por qualquer acto de ostentação, obrigava-o a zelar pela discrição, evitando assim qualquer publicidade que desvirtuasse o acto abnegado que queria concretizar. 

Mas para grande constrangimento do monarca, estavam nesse dia no posto de saúde duas varinas de Cascais que, reconhecendo o Rei e sendo assumidamente suas fãs, lhe pediram reiteradamente que não fizesse esse sacrifício que, segundo elas, poderia pôr em risco a sua saúde e até a sua vida, o que elas consideravam ser um atentado por ser ele um Rei gentil, de muito boa aparência e pai de quatro filhos…

Mas, apesar do pedido do Rei de que não contassem a ninguém o que tinham acabado de ver, as varinas não se calaram e espalharam por todo o lado a notícia do que Humberto II de Itália tinha acabado de fazer.

O Rei nunca desmentiu nem confirmou a história, fugindo sempre do assunto e procurando que o mesmo fosse caindo no esquecimento dos cascalenses.

Mas anos mais tarde, quando foi visitado pelo investigador e escritor Júlio Sauerwien, que viera a Cascais para recolher material para o seu livro “Exilados Régios no Estoril”, foi frontalmente questionado sobre a veracidade dessa história. E, não querendo mentir, foi obrigado a confirmar que era verdadeira!

Mais uma história da História de Cascais que vem confirmar a máxima atribuída a Sua Majestade o Rei Dom Carlos I de Portugal de que “Cascais é o sítio onde o povo é mais nobre e onde a nobreza é mais popular”!

terça-feira

O Delta da Ribeira das Vinhas em Cascais



por João Aníbal Henriques

A denominada “Figura de Braunius”, desenhada por Georg Braun (1541-1622) no Século XVI é considerada a mais antiga representação que se conhece da Costa de Lisboa, com especial enfoque em Cascais e no seu porto de mar.

O detalhe com que foi preparada e o cuidado colocado na representação dos principais pontos estratégicos da localidade, prende-se com a sua origem militar. O desenhador, ao preparar esta obra, pretendia traçar com rigor e exactidão o perfil da Costa de Cascais de forma a poder fornecer, em caso de intervenção militar, uma planta que facilitasse o controle dos principais pontos estratégicos desta costa que tinha funções extraordinariamente importantes na defesa de Lisboa contra eventuais ataques por via marítima.

Mas existe um detalhe que não passa despercebido a quem olhar com atenção para esta obra. Na representação da Baía de Cascais falta a indicação da Ribeira das Vinhas!



Não sendo crível que Georg Braun, meticuloso no seu trabalho, se esquecesse de um elemento tão importante na linha de costa de Cascais, haveria certamente uma razão que explicasse esta omissão de um elemento tão importante para a caracterização do porto de Cascais.

E a resposta, que nos chegou em finais dos anos 80 do século passado no âmbito de uma conferência proferida pelo saudoso Arquitecto Gonçalo Ribeiro Telles e pelo Cascalense Arquitecto Coimbra Neves, é simples e inesperada para a maioria dos Cascalenses: a foz da Ribeira das Vinhas, ao contrário do que hoje acontece, teria a forma de um delta, com vários braços que desaguavam em vários pontos do mar… Não existiria nessa época, portanto, um único canal de saída da ribeira, sendo que a foz se multiplicava em várias saídas que acabavam por não ter a relevância que a foz única que surgiria mais tarde acabou por ter no desenho da Costa de Cascais.

Esta explicação, que ambos os arquitectos defendiam com base na análise da topografia da vila e nas evidências arqueológicas surgidas depois das grandes inundações de Novembro de 1983, foi mais tarde confirmada pelos investigadores Guilherme Cardoso e Marco de Oliveira Borges, que assim explicam a omissão da ribeira na Figura de Braunius e a hidrografia da Vila de Cascais.

Explica igualmente a estranha opção dos antigos construtores do edificado cascalense de projectarem as suas construções sobre pilares e não, como era usual nessa época, com alicerces sólidos implantados no areal.

Esta forma construtiva, bem visível nas fotografias históricas da vila de Cascais, servia sobretudo para permitir o natural escoamento das águas da ribeira por debaixo dos edifícios, facilitando assim o normal fluxo das águas subterrâneas no subsolo e a sua saída para o mar.



A conferência dos arquitectos atrás mencionados vinha, aliás, associada a um alerta às entidades públicas que governavam Cascais no final do século passado: o cuidado que eles consideravam que se deveria ter perante uma qualquer intervenção ou construção a realizar no terreno situado a Norte do Hotel Baía, utilizado nessa altura como um mero estacionamento à superfície, de forma a preservar esse escoamento natural das águas do Delta da Ribeira das Vinhas, evitando assim a sua concentração no subsolo da zona histórica de Cascais com consequência que poderiam ser dramáticas na sustentabilidade dos edifícios existentes a montante desse local.

Com as obras efectuadas mais tarde no antigo estacionamento e com a construção da garagem subterrânea do Hotel Baía, criou-se, de facto, uma barreira que cortou o normal fluxo das águas. E agora, tal como referiam os dois arquitectos, sempre que chove com alguma quantidade e o leito da Ribeira das Vinhas se enche de água, o Largo Camões e as cercanias ficam imediatamente inundados…

Porque a História nos fornece sempre informações importantes sobre o passado, com o objectivo primordial de nos ajudar a definir um presente adequado e a preparar um futuro viável.

 

António Duarte d’Almeida Veiga – A Infinita Eternidade da Morte



por João Aníbal Henriques

Em meados do Século XIX, numa das suas inusitadas viagens pela Europa, o jurista e filósofo português António Duarte d’Almeida Veiga cruzou-se em Paris com Hippolyte Léon Denizard Rivail, ilustre pedagogo e professor francês bem conhecido do público em geral através do pseudónimo que utilizava para assinar as suas obras: Allan Kardec. Ficaram amigos.

Na sua obra de despedida, publicada em Benavente em 1928, António Veiga dedica à sua filha Maria Amélia aquilo a que chamou a “Lei dos Contrastes”, a súmula do seu pensamento filosófico numa ansiada necessidade de se convencer de que a eternidade e o infinito são expressão maior da vida verdadeira, ou seja, daquela que emana directamente de Deus. E, acima de tudo, que a eternidade (tempo) e o infinito (espaço) são efectivamente o contraste um do outro, marcando a dualidade necessária para nos permitir intuir a plenitude superior do Estado Perfeito, e concomitantemente da própria existência de Deus.

Queria encerrar a sua existência física com um legado de pensamento que perpectuasse as suas convicções espirituais e que comprovasse aos seus filhos que a sua partida não representaria o seu fim. Porque a morte não existe, senão aparentemente para contrastar a vida, e podermos reconhecer esta… era para ele um mero e puro descanso do “eu”.

Dizia ela à sua filha Maria Amélia: “a morte real só existe na ideia dos que ficam sobrevivendo. Os que morrem para estes, não morrem na realidade, antes, pelo contrário, revivem!”

António Duarte d’Almeida Veiga, meu bisavô paterno nasceu em Midões, nas Beiras, e morreu em Benavente, no Ribatejo. Foi jurista, notário, filósofo e escritor que, numa permanente ânsia de viver plenamente dedicou a sua vida a pensar, analisar e perceber a morte. Porque acreditava que só nela se poderia encontrar o sentido pleno da vida.

Quando se cumpre um século desde a sua morte, importa lembrá-lo e ao seu legado, até porque na linha das suas discussões espirituais com Allan Kardec, e tal como deixou escrito à sua filha Amélia: “Se soubermos convocar quem parte deste mundo infinito, eles nos provarão que existem sempre, plasmados na eternidade da qual todos fazemos parte”.