terça-feira

O Aljubarrete Europeu



por João Aníbal Henriques

Apesar de parecer impossível, a verdade é que aconteceu. O Governo português, aproveitando o período de férias estivais da generalidade dos líderes da denominada oposição, retirou aos “Lusíadas” a importância que ainda tinham na programação escolar do nosso sistema educativo.
Nesta época de crescente federalismo, quando a generalidade dos países da Europa, e sublinhe-se que Portugal é de todos o mais antigo, luta de forma incessante contra a anomia e a desagregação da identidade Nacional, o Governo português faz exactamente o contrário, lutando enfaticamente para esbater aquilo que ainda serve de característica marcante da portugalidade.

A grande questão que se coloca, e que surgiu de imediato em dezenas de órgãos de comunicação social, foi a de tentar perceber a razão deste aparente desvario, pois no estado de grande instabilidade em que se encontra o Governo, nada fazia prever que fossem tomadas decisões com esta importância e com esta tremenda carga impopular. Prestável, e com o costumeiro sorriso político nos lábios, o Ministro da Educação acedeu de imediato às explicações, sublinhando que a decisão se havia alterado desde a véspera e que, para melhorar a compreensão e a aquisição dos valores contidos nos “Lusíadas”, se iria até alargar o número de anos e de aulas que a eles se dedicarão no próximo ano lectivo.

Excelente, pensarão todos! Mas não... Se nos ativermos à realidade mais crua, fácil se torna perceber que este alargamento da amplitude dos “Lusíadas” se fica a dever única e exclusivamente à pressão da imprensa e da sociedade portuguesa. Se a altura fosse outra e a falta de notícias não fosse tão grande, não teria passado despercebida dos jornalistas esta decisão? E se assim fosse, não seria irreversível o acto de apagar aquela que é uma das mais importantes obras da cultura lusíada do currículo escolar português?

O certo é que, com inversão da decisão ou sem ela, e apesar de os “Lusíadas” se manterem nos programas oficiais, todo o processo indicia aquilo que se pretende fazer: destruir por completo os resquícios que ainda sobrevivem da Identidade Nacional, por forma a permitir a sua diluição no todo federal desta Europa artificial que, sobrepondo-se aos Estados-Nação que a compõem, vai homogeneizar as diferenças e recriar um novo tipo de identidade que nada tem a haver com os nossos quase oitocentos e sessenta anos de História Nacional.

Embora tudo tenha ficado adiado relativamente aos “Lusíadas”, pelas contingências conjunturais atrás descritas, o plano é mais vasto e está bem preparado. Os que se derem ao trabalho de perder algum tempo analisando os currículos escolares portugueses depressa perceberão que, com excepção da abrilada de 74, que parece servir de base à legitimação de tudo o que acontece, quase todos os aspectos importantes da cultura lusíada estão a desaparecer das escolas Nacionais.

A História de Portugal, até há bem pouco tempo considerada fundamental para a consolidação da nossa cidadania, tem vindo a ser relegada para um plano inferior, mercê de pretensa dificuldade e desinteresse das criancinhas. Os heróis, os feitos, as conquistas, as descobertas e as histórias que compõem a nossa História, vão sendo apagadas paulatinamente do imaginário colectivo da próxima geração de portugueses.

Se até há pouco tempo, Camões, Gil Vicente, D. Afonso Henriques, D. Dinis, e D. Manuel, de entre muitos outros, eram personagens familiares aos nossos estudantes, estão hoje completamente olvidados da memória dos nossos filhos, tal como o comprovam as muitas sondagens publicadas recentemente na imprensa portuguesa.

Grande feitos, dignos de memória e que em qualquer outra parte do Mundo fariam parte do conjunto de motivos de orgulho de um povo, vão-se desvanecendo por entre o cheiro cada vez mais pestilento das vermelhuscas flores da moda.

Cumpriu-se recentemente o 616º aniversário da Batalha de Aljubarrota. Esta data, fundamental a todos os níveis para perceber a transição entre o Portugal medieval e aquele que deu novos mundos ao Mundo, passou totalmente esquecida a nível oficial, apesar de ser um dos mais eminentes acontecimentos que contribuíram para a formação da Europa actual. A bravura do Condestável, figura ímpar na História Nacional, aliada à desenvoltura de técnicas novas que dotam a Ala dos Namorados e os seus Comandantes Mem Rodrigues e Rui Mendes de Vasconcelos, de uma supremacia militar incontestável perante um exército castelhano quatro vezes superior ao seu, perderam-se definitivamente nas brumas de um tempo que daqui para a frente terá cada vez mais dificuldade em retornar.

Com estes governantes; com esta apatia; com este desconhecimento; com este desinteresse; com este plano forjado; não tardará muito até que a memória de Aljubarrota e dos seus mentores, teoricamente eternizada através da pedra esculpida do Mosteiro da Batalha, se torne num imenso aljubarrete que os portugueses utilizarão quando cabisbaixos se apresentarem de forma submissa perante os estrangeiros que daqui a pouco tempo nos governarão.