sexta-feira

João Aníbal Veiga Henriques [1942-2010]





Conheci-o no dia 14 de Junho de 1971.

Ele não assistiu ao parto porque não teve coragem para isso, mas imagino-o lá fora, no corredor, a fumar várias dezenas de cigarros ao longo daquelas três horas, roído de nervos, mas com a confiança que a sua fé especial e colossal lhe assegurava.

Percebi de imediato que era alguém especial quando me pegou ao colo. É certo que o fez sem a segurança e a firmeza de outros colos pelos quais já tinha passado. Mas afinal eu era o primeiro filho e possivelmente o primeiro recém-nascido que lhe era colocado nos braços. Pegou-me com um Amor de tal forma intenso e incondicional que transcendia largamente a sua enorme estatura e tudo aquilo que conheci na vida daí em diante.

A primeira grande memória que tenho dele, ganha depois de horas a fio a tentar aprender a andar de bicicleta numa ruela sem saída que existia em frente de nossa casa, é a da sua mão a amparar-me o pescoço. Correu quilómetros atrás de quilómetros gritando insistentemente para eu não desistir. E conseguiu. No final do dia, quando ele já estava estafado, lá aprendi a equilibrar-me. Percebi então a sua insistência e a magia que surge associada aos pequenos momentos que dão forma à vida. Aprendi não só a andar de bicicleta mas também a gozar cada momento, cada instante, cada milímetro de paisagem e cada laivo de sabor que a vida nos oferece.

Tinha pouco mais de dois anos nessa altura, mas daí em diante fez-se luz na minha mente, e eu senti no mais profundo pedacinho da minha Alma a sorte que tinha em poder crescer com ele. Nesse mesmo dia, com a desfaçatez que só as crianças podem ter mas também com a certeza absoluta que acerca disso carrego até hoje, chamei-o à sala e expliquei-lhe que não podia continuar a chamar-lhe a mesma coisa que todas as outras crianças chamavam aos seus pais. Comuniquei-lhe, sem lhe dar sequer a possibilidade de contrapor o que quer que fosse, que a partir desse dia lhe chamaria ‘Zito’. Porque queria que ele tivesse um nome só dele e sobretudo queria que esse mesmo nome estivesse à altura da figura extraordinária que eu pressentia.

O Zito acompanhou-me desde então para desespero de alguns familiares e perante as críticas de quase todos. Como era possível que deixassem a criança chamar-lhe isso? Mas ele ouvia sempre o seu novo nome com um sorriso nos lábios, e entendia, possivelmente daquela forma profunda e sentida que o nosso exíguo cérebro não consegue abarcar, o amor radical que eu lhe associava. O Zito levou-me à escola no primeiro dia; o Zito levou-me a passear numa velha traineira de pesca pelas águas revoltas do Cabo Raso; o Zito levou-me a trepar os montes e as escarpas da Serra de Sintra, sempre a ouvir as histórias e as lendas que ele pesquisava para me transmitir; o Zito ensinou-me a rastejas nas grutas e nos subterrâneos mais enigmáticos; foi ele quem me ensinou a distinguir as rochas e os cristais, e a perceber como crescem as árvores e as plantas; foi ele que me mostrou as marés e me ensinou até onde nos pode levar o oceano; o Zito levou-me a quase todos os sítios especiais que conheci até hoje.

Anos mais tarde, depois de um acidente grave que me obrigou a dormir ininterruptamente durante mais de uma semana, foi a mão dele a primeira coisa que senti quando despertei. Diziam-lhe que as possibilidades eram poucas; que ele devia ir descansar; que não valia a pena. Mas ele sabia que valia e esteve ali, dia e noite durante todo aquele tempo. E foi o calor da sua mão, e novamente aquela entrega extraordinária com que ele vivia a relação com todos aqueles que o rodeavam, que me trouxeram de volta à vida.

Extasiei-me anos a fio com a sua habilidade. Com cada um dos traços de todos os esboços que fazia antes de se abalançar na pintura de mais um quadro ou na escultura de uma nova peça. Guardei-os a todos como as mais preciosas obras de arte que este Mundo jamais conheceu. E inchei de orgulho quando, em 1980, foi o seu ‘Camões’ que encabeçou as cerimónias de inauguração do largo com o mesmo nome no coração da nossa terra.

Faz agora precisamente dez anos, em Março de 2000, fizemos juntos a nossa última peregrinação a pé até Fátima. Já adulto, procurou gastar cada segundo para perceber até que ponto tinha germinado a sua semente. Falámos do Universo estonteantemente grande e da infinitude sublime da matéria. Perdemo-nos algures naquela linha ténue de fronteira onde a realidade se confunde com a imaginação, e na qual florescem os sonhos que condicionam o devir da vida. Explicou-me com muito cuidado qual é a importância que a matéria tem no nosso crescimento, e a diferença que existe entre aquilo que somos, o que criamos e a essência sagrada que verdadeiramente nos impulsiona na vida. Partilhámos silêncios profundos e longos, e ladainhas que nos ajudaram a transpor as dificuldades sentidas num caminho difícil.

A partir daí já só conseguimos viajar de carro. Mas continuámos a percorrer Portugal de lés-a-lés. Estivemos na Estrela ainda há pouco tempo, e atravessámos juntos toda a vastidão da planície do Alentejo. Com ele penei os quase 50ºC do Fundão e os contrastes frescos da Gardunha. Deliciámo-nos com os petiscos únicos da vetusta Braga e com as sopas únicas do muito nosso Ribatejo. Subimos e descemos os montes e vales da Beira, e partilhámos do deleite das gentes de Cabrum e Água d’Alte, ao mesmo tempo que explorávamos os segredos para sempre perdidos da Cardiga e do tesouro de alma que os Templários morreram a defender.

Para a Primavera que agora vai chegar planeáramos uma última peregrinação… íamos finalmente a Santiago de Compostela depois de anos a fio de mapas, roteiros, pesquisas e muito estudo sobre o assunto. Disse-me há algumas semanas atrás, com semblante profundamente triste, que achava que já não conseguiria ir a pé comigo desta vez. Talvez já só conseguisse acompanhar-me no carro de apoio.

Já não teve tempo. Partiu de forma rápida no final do último mês de Janeiro. Enquanto eu estiver vivo, ele estará vivo também. Em cada decisão, em cada pensamento, em cada conversa, em cada página escrita, em cada projecto, em cada ideia. Porque as coisas que sei fazer são obra dele.

Era o meu pai. Tinha 67 anos.