terça-feira

A Importância de Cascais na Idade Média




Por João Aníbal Henriques

Situada estrategicamente a poucos quilómetros de Lisboa e controlando a entrada da sua barra, a Vila de Cascais assumiu sempre um papel preponderante na defesa da capital. Durante a Idade Média, sobretudo como consequência das constantes e imprevisíveis contendas que desde cedo opuseram Castelhanos e Portugueses, tornou-se com o seu castelo na verdadeira guarda avançada de Lisboa.

A construção das muralhas do Castelo de Cascais, com uma origem que se perde nas brumas do tempo, deveram-se certamente a necessidades concretas de defesa. Quer tenham a sua origem durante o período Árabe, como alguns defendem, ou já em plena Nacionalidade, como querem outros, o certo é que o investimento associado à sua construção ficou certamente ligado aos muitos episódios de ataques cerrados que o povoado sofreu no dealbar da sua História.

Ponto assente, no entanto, é o de que as principais alterações por ela sofridas, e que lhe conferiram os limites físicos que hoje conhecemos razoavelmente, se deram algures entre o reinado de Dom Pedro I, que elevou Cascais a Vila, e o reinado de Dom Fernando, traduzindo e comprovando a importância que teriam no contexto da político externa Portuguesa de então.

A importância do Castelo Medieval de Cascais, de acordo com a documentação existente, centrar-se-á basicamente neste período, tendo em conta não só o volume das obras que conheceu, como também os muitos episódios relatados nas crónicas que nos transmitem o que foram as comummente designadas “Guerras com Castela”. Estas guerras, como nos refere o Professor Joaquim Veríssimo Serrão no primeiro volume da sua “História de Portugal”, fruto da vontade de Dom Fernando, tiveram por seu turno uma importância extraordinária na definição da História de Portugal.

Testemunho fundamental para a realização deste empreendimento é sem dúvida o de Fernão Lopes, que na sua “Crónica de Dom Fernando” nos refere o esforço deste rei para alcançar as tão apetecidas vitórias militares sobre o País vizinho. Para além de Fernão Lopes, há ainda a salientar o volume publicado pelo Instituto Nacional de Investigação Científica (I.N.I.C.) acerca das “Cortes Portuguesas no Reinado de Dom Fernando”, transcrevendo as actas das cortes ocorridas entre 1367 e 1383, que nos tornam possível obter um vislumbre bastante interessante sobre a realidade temporal de então.




Utilizaremos ainda, para definir a unidade cronológica que se associa à análise da importância de Cascais nesta época, a versão original das cartas de doação da Vila de Cascais, primeiro a Gomes Lourenço de Avelar, e mais tarde a Henrique Manuel de Vilhena, transcritas no primeiro volume da “Chancelaria de Dom Fernando”, e que nos mostram quão importante podem ser para a realidade do reino, as movimentações políticas dos senhores que detinham o poder numa singela e supostamente insignificante vilória da costa marítima.

Assim, na Carta de Doação do Senhorio de Cascais a Gomes Lourenço de Aveçar, datada de dia 8 de Abril de 1370, El-Rei Dom Fernando, nesta altura residindo em Santarém, estabelece o Concelho de Cascais, demarcando-lhe os seus limites e dando-lhe jurisdição própria “Per ssy alta e baixa”. Nesta carta, a primeira que nos menciona a existência de um castelo, o monarca confia-o a Gomes Lourenço de Avelar, “seu leal vassallo”, que passa a ter os poderes de governador da praça e de autoridade suprema do novel concelho, assistido pelos juízes e vereadores.

Segundo Ferreira de Andrade, após todos os problemas que acompanharam a subida de Cascais à condição de Vila, esta carta representa já a doação de uma povoação com um grau de importância bastante grande: “Cascais alcançou a sua autonomia devido certamente à importância e à propriedade que já desfrutava nesta altura, importância que em parte lhe advinha do seu porto e do tráfego comercial que se operava através dele com o País e com o estrangeiro”.

A importância militar de Cascais aparece-nos também bastante referenciada em todos os restantes autores que estudaram este problema. Segundo Branca de Gontha Colaço e Maria Archer, autoras da mítica obra “Memórias da Linha de Cascaes”, a entrega do Castelo de Cascais a Gomes Lourenço de Avelar foi consequência directa de uma necessidade muito específica: “No reinado de Dom Fernando foi o Castelo de Cascais entregue ao “fronteiro” Gomes Lourenço de Avelar, decerto em missão de o defender contra os piratas e de proteger a Cidade de Lisboa”.

De facto, para todos aqueles que se debruçaram com mais cuidado sobre a posição geográfica da Vila de Cascais, torna-se fácil compreender quão importante para o reino seria esta povoação. Como José d’Encarnação nos referiu em 1989, Cascais era a guarda avançada de Lisboa, e como tal merecia, de facto, uma protecção que lhe permitisse sobreviver e controlar eventuais investidas que fossem levadas a cabo contra a capital. É nesta data que Cascais passa a ser considerada a “Sentinela de Lisboa”.

Assim, podemos considerar como principal ponto da importância de Cascais a sua posição estratégico-militar, que serviu de motor à sua autonomia, e na qual o papel do seu castelo, que nessa altura já marcava de forma perene a sua paisagem, foi decerto bastante importante.

Por outro lado, não é de menosprezar o facto de Cascais ter sido confiada a Gomes Lourenço de Avelar. Este homem, que a História nos lega com os epítetos de “O Formoso”, “O Fiel”, “O Defensor” e “O Corajoso”, é apesar de tudo mal conhecido em termos historiográficos, existindo poucos dados concretos sobre a sua vida e obra. Sabe-se, no entanto, que praticou actos de coragem em Ciudade Rodrigo, ao serviço de El-Rei de Portugal Dom Fernando. Segundo Isabel Nery, João Aníbal Henriques e Ricardo Pimentel, no seu trabalho “Cascais Evoluções Históricas”, de 1989, a posição que Cascais conquista em 1870 deve-a sobretudo ao seu primeiro Senhor: “Importante para a nossa vila foi a doação (do castelo e lugar de Cascais) a 8 de Abril de 1870, ao fidalgo Gomes Lourenço de Avelar, pelos seus altos feitos na Cidade Rodrigo. É isto que trás a Cascais jurisdição própria e a confirmação dos seus limites”.

Por tudo isto, tendo o primeiro Senhor de Cascais recebido esta honraria como consequência dos altos feitos militares e da fama que granjeou ao serviço do Rei e da Pátria, dificilmente poderíamos admitir que Dom Fernando lhe entregasse um castelo e uma povoação de reduzida importância. Por consequência, e tendo em atenção as constantes lutas que ocorreram durante este mandato, não é difícil de antever que o Rei tivesse escolhido para zelar por este ponto estratégico da defesa de Lisboa, alguém comprovadamente qualificado para essa função.

Em favor da lealdade que unia Gomes Lourenço de Avelar ao monarca Dom Fernando, vem o episídio que nos narra Ferreira de Andrade na sua obra “Cascais Vila da Corte”: “Em 1372, Henrique de Castela caminha sobre Lisboa e Gomes Lourenço de Avelar acorre à cidade para socorrer o Rei, que logo lhe ordena «tornar para onde estava e se fizesse bem prestes com as gentes que tinha e podesse ter (…)».

Logo de seguida, em 1373, segundo o cronista Fernão Lopes, no capítulo LXXVII da sua “Crónica de Dom Fernando”, cascais é atacada por Dom Afonso, Conde de Grigon e filho bastardo de D. Henrique de Castela, com quatrocentas lanças, facto que devastou quase completamente a pequena vilória: “Em esto foi o conde Dom Affonso, filho delRei Dom Henrrique, com quatro çentas lanças sobren huum logar cercado, que chamom Cascaaes, que he mujto jumto com o mar, çinquo legoas da cidade; e as poucas gentes delle, que o deffemder nom podiam, deromlho logo sem outra pelleia que hi ouvesse, e elles prenderom os que quiserom, e roubarom o logar de muj gramde roubo, e tornaromse com elle para a cidade (…)”.

No entanto, não é Cascais a única povoação visada pelos ataques Castelhanos. Muitas outras sofreram os horrores da invasão, que foi deveras humilhante, segundo o grande cronista. A salientar, o facto de entre todas as povoações devastadas ter sido Cascais a única cujo acontecimento é expressa e minuciosamente relatado na crónica. Segundo Fernando Castello-Branco, este relato deve-se a uma circunstância fundamental: “… entre todos estes ataques, apenas de um Fernão Lopes dá certos pormenores e indica o nome do lugar. Esta relevância não se pode explicar pela maior repercussão da investida, pois teve o mesmo aspecto e finalidade do que as outras que foram feitas a povoados cujos nomes ignoramos. Por isso supomos que esta referência especial se deve ao facto de ter sido Cascais o mais importante dos povoados vítimas dos latrocínios dos castelhanos, hipótese que o montante da força utilizada na invasão – 400 lanças – e o facto de ser dirigida pelo próprio filho do Rei de Castela, vêm corroborar”.

Logo após esta invasão, cascais vai ver-se pela primeira a braços com um problema sucessório. Gomes Lourenço de Avelar, no próprio ano de 1873, após ter-se recusado a dar um filho como refém nas pazes entre Dom Fernando e Henrique II de Castela, teve os seus bens confiscados e doados ao segundo senhor, Henrique Manuel de Vilhena, futuro Conde de Seia e outro dos validos do Rei Português.

Muito embora as opiniões sejam contraditórias, sobretudo no que concerne à capacidade deste novo Senhor de Cascais, o certo é que ele era, de facto, tido em grande conta por El-Rei Dom Fernando. Por um lado podemos comprová-lo através dos títulos que ele recebe do monarca. Por outro, temos a comprová-lo a sua presença em grande parte das reuniões de Corte desse reinado, e também no seu papel activo ao lado do Rei nas negociações que, umas após outras, se fizeram acerca do casamento da Infanta Dona Beatriz, herdeira legítima do trono Português.

Aparece-nos assim, relatado na mesma crónica de Fernão Lopes, desta vez no Capítulo XCVI, o casamento da Infante Dona Beatriz de Portugal com Dom Fradarique, filho do Rei de Castela, primeiro consórcio a que assiste Henrique Manuel de Vilhena. Aqui, após a descrição das condições em que o casamento acontece, diz-nos Fernão Lopes o seguinte: “Em outro dia todollos senhores, e gentes que hi eram, a que esto compria de fazer fazerom preitto e memagem nas maãos de Dom Frei Alvoro Gonçallvez, prior do espital, Damrrique Manuel de Vilhena, senhor de Cascaaes, curadores da discta iffamte, e em maãos do dicto Fernan Perez, que morremdo do dito Rdei, e por Rei o dito seu marido, avendo com ella comprido aquel honesto jumtamento que se faz entre os casados”.

Também nas Cortes de Leiria de 1376, se menciona o dito Senhor de Cascais, Dom Henrique Manuel de Vilhena, como um dos que, em conjunto com Frei Álvaro Gonçalves, Prior do Hospital, serve de curador dado à dita Infanta por Dom Fernando. De salientar ainda a autoridade que possuía para juramentar o consórcio e testemunhar a união: “Primeiramente o Ifante dom Joham e o Arcebispo e bispos e condes e meestres Ricos homens e caualeiros fidalgos e Alcaydes dos castellos e fortalezas. e. procuradores dos Concelhos das Cidades e villas e logares do dicto Reyno de Portugall. e do Algarue, e os conçellos per ssy e por aquelles que depôs elles veerem Jurarom e fezerom prometymento e managem. A nosa. Senhora A Jfante dona Beatriz filha primeyra e herdeira de nosso. Senhor El Rey dom Fernando e da Raynha dona Leonor sua molher em pessoa e em maãos de dom frei aluaro gonçaluez priol do hospital e d anrrique Manuel de. Vilhena ssenhor de Cascaaes Curadores dados aa discta Jfante poor o dicto Senhor Rey Aos quaes deu. Poder. A Autoridade pea Receber. A dicta jura e preyto e managem que depois dos dias da vida do dicto senhor Rey nom leixando filho. Barom lydemhoque a ajam por sa Senhora naturall e por Raynha e por herdeyra dos dictos Reynos de Portugall. e do Algarue a dicta Jfante dona Beatriz”.

Posteriormente, é também Fernão Lopes que nos vai relatar o novo enlace matrimonial entre a Infanta Dona Beatriz e outro dos filhos de Dom Henrique II de Castela, o Infante Dom Henrique. Também neste episódio, que nos aparece com o número CXVV, podemos assistir à actuação de Henrique Manuel de Vilhena, que continua a ser um dos mais importantes servidores de Dom Fernando: “ Despois dest no mês seguimte degosto, chegarom aa cidade de Soria Dom Affonso, bispo da Guarda, e Hemrrique Manuel de Vilhena, senhor de Cascaaes, e o doutor Gil Dossem, e Rui Louremço a elRei de Castela, que segundo os trautos que amtrelle e el-Rei Dom Fernando seu senhor avia, que el devia de fazer cortes ataa primeiro dia de Setembro, nas quaaes todollos senhores, e fidallgos, e cidades, villas de seu reino aviam de fazer managem, para guardarem aquelles trautos na maneira que forom devisados, e que prouguesse aa sua real alteza de o mandar assim fazer”.

Henrique Manuel de Vilhena aparece-nos assim como uma das pessoas mais importantes do Reino durante o reinado de Dom Fernando, sendo mesmo, juntamente com o Prior do Hospital da primeira vez, e com o Bispo da Guarda da segunda, nomeado curados da Infanta Dona Beatriz, que como Dom Fernando tinha consciência, era a herdeira do trono Português.

Todos estes factos vêm ao encontro da teoria segundo a qual este segundo Senhor de Cascais seria, de facto, um dos homens de confiança do monarca, a quem dificilmente seria concedido o senhoria de uma povoação e de um castelo de menor importância.

Neste sentido vem ainda o desenrolar da História depois da morte de Dom Fernando. Assim, segundo A.H. de Oliveira Marques, Henrique Manuel de Vilhena acabou por perder o senhorio de Cascais a favor do filho de Gomes Lourenço de Avellar: “O Conde de Seia, porém, tergiversou nos acontecimento de 1383-1385, apoiando primeiro Dona Beatriz e o Rei de Castela, depois Dom João I de Portugal e depois, novamente, o Rei de Castela. Perdeu, por isso também ele, o senhorio de Cascais, doado ao filho do primeiro senhor, de nome Sancho Gomes de Avelar (…)”.

A ligação que Henrique Manuel de Vilhena possuía aos juramentos que tinha feito durante o reinado de Dom Fernando, demonstram bem quão fortes seriam as suas ligações ao poder Régio, e consequentemente a importância que teria o seu senhorio para o desenvolvimento da História de Portugal.

O Castelo Medieval de Cascais pode assim ser considerado como um dos pontos, senão vitais, pelo menos muito importantes para defensão do reino, servindo, como já antes havíamos referido, de “Sentinela Avançada de Lisboa” e importante porto comercial durante toda a Idade Média.