sexta-feira

A Ermida de Nossa Senhora da Cabeça em Évora



por João Aníbal Henriques

Existem espaços que se impõem na paisagem. Na maior parte das vezes é a vetustez magnífica da sua fachada ou a opulência da sua decoração que determinam essa capacidade de adaptar a envolvência à sua própria personalidade.

Nas vilas e cidades históricas portuguesas, quase sempre resultantes de um vínculo de índole religiosa que foi determinante no seu nascimento e na sua consolidação no seio da comunidade humana que as habitou, são os espaços sagrados que, através do impacto que têm na construção identitária da localidade, assumem este papel de cadinho maior a partir do qual se organiza tudo o resto.



Mas não é nada disto que acontece no final da Rua Mendo Estevães, em pleno centro história da mítica Cidade de Évora. O templo, enganosamente intitulado como “ermida”, ou seja, apontando para uma origem num ermo remoto e dado principalmente à interioridade meditativa humilde e despojada, é um espaço de aspecto robusto e solidamente construído dentro do velho casco urbano.

No entanto, nem a monumentalidade da sua construção, nem também o facto de recuperar a sacralidade ancestral que já noutras eras prosperava naquele local, foram suficientes para o impor na paisagem, antes passando quase despercebido perante quem por ali deambula ao sabor dos calores tórridos das tardes estivais.



A Ermida de Nossa Senhora da Cabeça foi consagrada em 1681 e, nessa altura, conheceu um período de aparente grande pujança e prosperidade. A robustez monumental da sua galilé, reforçada por eventuais estruturas de apoio das quais subsistem vestígios nas pedras velhas que suportam o seu terraço, foi mais tarde complementada com um magnífico painel de azulejos dedicado ao Coroamento da Virgem, que complementa os painéis azulejares da autoria de António de Oliveira Bernardes que decoram o seu interior.

A inovação a Nossa Senhora da Cabeça, de origem espanhola, está profundamente arreigada na piedade popular. Como é comum neste tipo de situações, um ingénuo pastor que calcorreava os ermos da Serra Morena, na Andaluzia, terá ouvido nos desérticos montes por onde andava com o seu rebanho, o som de uma campainha que o parecia chamar. Seguindo esse ruído, entrou numa gruta situada na cabeça de um morro no fundo da qual estava uma formosíssima imagem de Nossa Senhora profusamente iluminada. Ajoelhando-se, o pastor questionou a figura sobre a razão de ser de tal milagre. E Nossa Senhora, com uma voz suave e envolvente definida pela sua geração sagrada, pediu-lhe que contasse nas redondezas a natureza deste milagre, construindo no local uma ermida em sua memória onde todos pudessem ir rezar.



Na ermida eborense, lançando sobre a envolvente duas sombras cruas, a representação do Sol e da Lua reforçam a sua significação milenar, acentuando a dicotomia entre as sombras e a luz e comprovando a sua origem ancestral. Embora não se sabia exactamente a data de fundação da ermida, e assumindo-se que a consagração já mencionada é somente um dos momentos da sua mais longa existência, pressupõe-se que a sua origem se perca na sacralidade ancestral associada aos cultos longínquos que foram professados naquele mesmo espaço.

E a apontar nesse sentido estão os vários materiais reutilizados na actual construção, comprovando que outros edifícios (ou diferentes formulações do mesmo) terão co-existido naquele lugar ao longo dos séculos.



Discreta na sua implantação urbana, a Ermida de Nossa Senhora da Cabeça é um magnífico exemplo da arquitectura sagrada de Portugal, mostrando que as principais devoções, quase todas resultados directo da evolução do pensamento e da Fé nas comunidades que as professaram, são superiores aos séculos, Às épocas e às eras, impondo-se no imaginário popular como alicerce principal da sua religiosidade.

E, se por fora parece mera capela perdida no seio da multiplicidade de tempos semelhantes que profusamente enxameiam as ruas de Évora, por dentro a qualidade da sua decoração demonstra bem que era espaço de primeira importância para as gentes do local.