por João Aníbal Henriques
João Brandão passou para a História como o “bandido das
beiras”. Acusado de dezenas de crimes, dos mais terríveis até aos pequenos
golpes de beira da estrada comuns no Portugal de oitocentos, pagou cara a sua
fama e viu-se enredado numa teia de ditos populares que distorceu, alterou e
injustamente o associou ao que de pior existiu no nosso país durante o período
da guerra civil que opôs liberais a absolutistas.
Filho do Ferreiro de Candosa e associado familiarmente com
algumas das mais conceituadas famílias beirãs daquela época, nomeadamente com
os Veigas, os Duarte d’Almeida, os Soveral d’Abranches, os Brandões, os Costa
Cabral, os Castelo Branco e os Fonseca Magalhães, João Brandão cedo se viu
predestinado a grandes feitos. O seu padrinho de baptismo, Roque Ribeiro de
Abranches Castelo Branco, tomou-o sob sua protecção e com ele preparou uma carreira
política à qual se augurava muito sucesso, em linha, aliás, com o sucesso que
caracterizava a presença da sua família em terras beirãs.
Entre 1849 e 1853 foi Presidente da Câmara Municipal de
Midões, actividade que o rodeou de prestígio e que lhe permitiu alcançar as
mais altas figuras do poder político do reino e inclusivamente lhe abriu várias
portas junto dos inúmeros governos que nessa altura foram ocupando
sucessivamente as arcadas do Terreiro do Paço.
Em 1863, já bem posicionado nas aspirações que tinha para sua
vida, casa-se com D. Ana Eugénia de Jesus Correia Nobre, de escorreita linhagem
e de fortuna considerável que lhe abriu definitivamente as portas da mais alta
sociedade daquele tempo. E durante esse período, no meio do caos gerado pelo
clima geral de guerra civil, dedicou-se à produção agrícola nas terras que
pertenciam à sua mulher, encetando assim um período de grande prosperidade que
contrasta de forma marcante com a vergonhosa fama que a História Popular o
etiquetou.
João Brandão não foi nunca um personagem fácil e as suas
intervenções públicas estiveram sempre longe de ser consensuais. Mas esse
ímpeto muito carismático que o acompanhou até ao último dia acabou por
trazer-lhe um vasto leque de inimizades e até de ódios viscerais. E na
devastação geral da guerra civil, com Portugal a viver a incerteza profunda de
um país dividido por interesses díspares que se digladiavam entre si sem olhar
a princípios, valores ou ideais, todas as armas podiam ser usadas contra o
inimigo, perpetuando um clima transversal de intriga que devastou literalmente
a sociedade portuguesa.
Nas Beiras, espaço longínquo das luzes da capital, o poder
político assentava num regime caciquista que propiciava a maledicência e a
mentira. E João Brandão, à medida em que o seu partido ia perdendo a guerra,
foi sendo acusado de uma multiplicidade de crimes horrendos dos quais sempre
manteve a jura de que era inocente.
Na noite de 31 de Março de 1866 foi assassinado barbaramente
na Candosa o Padre José Portugal, com quem Brandão tinha negociado terras
agrícolas uns tempos antes. E os seus inimigos, focados no aproveitamento
daquele nefasto acontecimento, depressa o acusaram da autoria do crime, tendo
João Brandão sido preso no Limoeiro, em Lisboa, e posteriormente condenado à
morte por enforcamento. A pena, mercê dos muitos bons amigos que Brandão também
tinha, foi comutada para degredo em África e em 9 de Outubro de 1870 segue para
Moçamedes onde se instala com a sua família.
Em terras africanas não baixou os braços e, empreendedor
como era, dedicou-se à produção de aguardente que exportava para a metrópole.
Nos documentos oficiais daquela cidade africana, multiplicam-se as notas sobre
os actos de abnegada devoção à sua terra de acolhimento, tendo João Brandão
recuperado o prestígio que outrora havia vivenciado em Portugal, abrindo
caminho para que ali se tenham instalado inúmeros descendentes, nomeadamente
das famílias Duarte d’Almeida e Veiga que se mantiveram em África até à
descolonização.
O processo jurídico que condenou João Brandão foi um dos
mais badalados acontecimento do último quartel do Século XIX em Portugal. E a
sua condenação, mais do que de provas efectivas apresentadas em julgamento,
fez-se a partir da aura lendária de terrorismo que rapidamente se multiplicou
em seu torno e que se consubstanciou num conjunto vastíssimo de histórias que povoam
o imaginário popular do Portugal daquele tempo.
João Brandão foi assassinado em África em 1880 e um dos seus
sobrinhos-netos, António Duarte d’Almeida Veiga, homem de letras e do direito,
dedicou-se a rever todo o processo ilibando o tio-avô das acusações que o
levaram à condenação e ao degredo. Nas suas memórias auto-biográficas, Brandão
reconhece não saber com precisão e certeza quem foi responsável por todo o seu
processo. Mas ao que parece, olhando com rigor e atenção para os documentos,
terá havido intervenção de familiares da sua mulher que, com medo do poderio
que ele tinha alcançado naquela época, tudo fizeram para impedir que ele
controlasse a fortuna familiar e, dessa maneira, terão sido parte importante no
degredo que consolidou aquele que foi um dos mais injustos processos da justiça
portuguesa.
150 anos depois da morte de João Brandão, importa recuperar
a sua memória e, não sendo possível ilibá-lo dos crimes a que foi condenado, garantir
que pelo menos são conhecidos de todos os seus argumentos de defesa.
Resta-nos a harmonia da voz da sua sobrinha-trineta, a
fadista Kátia Guerreiro, que com os Monda nos traz a lenda que ainda hoje
perdura no imaginário popular de Portugal! Porque João Brandão é ainda maior do
que a soma da lenda com a sua história. É um personagem que carrega consigo o
contraste entre a grandeza imensa e a pobreza extrema que sempre caracterizou
Portugal…