por João Aníbal Henriques
Existem realidades que são
maiores do que a História e que subjugam os factos, os documentos e a
factualidade. Transcendem-se a si próprias, repercutindo os sonhos de quem as
idealizou e os horizontes infinitos e intemporais que são sempre sinónimos da
genialidade. É o que acontece com o Palácio / Convento de Mafra. Que importa
recordar no dia em que se cumprem 298 anos desde aquele dia extraordinário em
que Dom João V ali colocou a primeira pedra.
O Convento de Mafra, localizado a
poucos quilómetros de Lisboa, foi uma das mais impactantes obras de
arquitectura jamais concretizadas em Portugal. Com os seus mais de 40000 m2 de
área total, os seus impressionantes 29 pátios, as 880 divisões e as duas mais
de 4500 portas e janelas, o edifício produz um enorme impacto visual a quem
dele se acerca, sendo um repositório que está à altura do facto de ter sido
edificado durante o mais rico de todos os reinados dos reis portugueses.
Dom João V, cognominado como o
magnânimo, teve a sorte de alcançar o ouro do Brasil durante o seu reinado. E
com ele, impôs-se como um dos mais poderosos reis europeus. Casado com a
arquiduquesa Maria Ana Josefa da Áustria (1683-1754), filha do Imperador
Leopoldo I, da Casa dos Habsburgos, foi pai do futuro rei Dom José I de
Portugal e, por morte deste, do Rei Dom
Pedro III. Durante a sua vida, assente na magnanimidade da sua imensa riqueza,
teve uma intervenção política muito relevante ao nível da cena política
internacional e foi um dos monarcas Portugueses que maior influência teve na
definição do rumo da Europa durante a sua época.
Mas o dia 17 de Novembro de 1717,
quando decorreu a primeira pedra do futuro Convento de Mafra, tem um profundo
significado simbólico para o então Rei de Portugal em linha, aliás, com todo o
simbolismo associado ao edifício, à sua decoração e até ao uso que teve ao
longo dos últimos séculos. Tendo tido grande dificuldade em gerar a sua
descendência, Dom João V terá feito uma promessa a Deus de que edificaria um
convento em Mafra no caso de lhe nascer um filho varão no prazo de um ano a
contar daquela data. Diz-se ainda que a promessa, feita por um rei que nunca
foi coroado, visto que, tal como os seus antecessores desde o restauracionista
Dom João IV, decidiu coroar no seu lugar a imagem de Nossa Senhora da Conceição
de Vila Viçosa, Padroeira de Portugal, aconteceu durante uma das crises de
melancolia do monarca. De facto, nos dias que antecederam o lendário episódio,
Dom João V ter-se-ia retirado para o Alentejo devido à estranha doença que o
afectava. E terá sido num dos dias de maior prostração, quando a rainha o encontrou
desolado sob a sua poderosíssima condição, que terá formulado o seu voto do
qual resultou a construção do vetusto monumento.
De facto, apesar de o primeiro
filho do rei não ter sido varão, pois nasceu a Princesa Maria Bárbara, futura
rainha de Espanha por casamento com Fernando VI, o Rei Português decidiu não só
manter a sua promessa de construção do pequeno convento destinado a cerca de 13
frades capuchos arrábidos, como incrementou o projecto juntando-lhe um
inusitado palácio real que causou a estupefacção e a surpresa dos Portugueses
de então.
Com o traço de João Frederico
Ludovice, Mafra assenta numa planta também ela estranha para a sua época. Com
as dimensões extraordinárias que foram indicadas pelo Rei, o Convento de Mafra
sobrepõe-se de forma básica à planta da Baixa Pombalina de Lisboa, construída
pelo Marquês de Pombal depois do Terramoto de 1755. A sua biblioteca, os
aposentos de caça e os longuíssimos corredores que ligam as diversas alas do
edifício, consolidam uma fachada decorada com uma escadaria monumental que nos
transporta até à basílica. E por baixo de todo esse espaço, escondem-se dos
olhares menos atentos os espaços de morte onde se acumulam os restos mortais de
várias centenas de religiosos que ali viveram e morreram ao longo dos anos.
Estranho ainda, pelo seu carácter
vincado e linearmente ostensivo, os espaços vãos existentes entre os tectos dos
andares superiores e a cúpula exterior do monumento. Nessas zonas inacessíveis
mas bem acabadas, montaram-se vastos espaços de culto ritualístico maçónico,
bem patentes na simbologia e na imensa parafernália de instrumentos que a
decora. A ideia do Grande Construtor é, aliás, o persistente sinal que
acompanha o Rei na sua demanda pela eternidade, consolidando a premissa de que
Mafra não é só aquilo que se vê e que existe uma causa discretamente marcada
nas suas paredes da qual dependeu a orientação e a decisão real.
A vertente simbólica do Convento
de Mafra, explicando o tantas vezes mal compreendido carácter perdulário de Dom
João V, transmite-nos a certeza de que o monumento é significativamente o
expoente máximo da expressão religiosa de Portugal, numa tentativa de tradução
cosmológica da realidade imensa do universo que necessariamente terá de passar
o entendimento mesquinho do dia-a-dia Português. Mafra é, para Dom João V, o
palácio-convento que hoje temos. Mas é sobretudo, na sua vertente mística de um
Rei magnânimo, uma espécie de altar-mor de Portugal, idealizado para aproximar
o País do seu eterno destino de representação na Terra do cruzeiro de luz que
emana do céu. A visão quinto-imperial que transvaza a demanda do Prestes João e
que enforma a épica empresa dos descobrimentos, consolida-se aqui no palácio
onde o império aguarda a chegada nunca concretizada do desejado, numa prática
de despojamento que coroa como imperador o mais puro e inocente dos rapazes. Porque
nem sempre aquilo que lá está é exactamente o que percebemos e, sobretudo,
porque raramente aquilo para onde olhamos é aquilo que vemos.
Nos míticos subterrâneos de
Mafra, onde a lenda diz que existem ratazanas imensas que são capazes de se
alimentar de seres humanos, nada existe de extraordinário, para além da cloaca
colossal para dar vazão à imensidade de gente que utilizava o edifício. Mas no
topo das torres, onde o céu já se sente, aí sim, existem os vestígios de uma
porta para o paraíso terrestre.
Num espaço repleto de lendas e de
ideias-feitas, genericamente resultantes do impacto imenso que um edifício com
estas características sempre tem, importa ainda relembrar os míticos carrilhões.
Construídos em Antuérpia e Liége
por Guilherme Withlockx e Nicolau Levache, respectivamente, terão custado a
módica quantia de 50000 moedas de ouro ao cofre Português. Diz-nos a lenda que
, tendo encomendado o primeiro, o seu manufactor terá comentado que era obra de
grande monta para um Estado tão pequeno… ao que o rei Português, mostrando bem
o poder que resultava da sua imensa riqueza, terá respondido que duplicava a
encomenda e desejava adquirir não um mas dois carrilhões para o seu edifício
mafrense!
Lenda ou realidade, o Convento de
Mafra é hoje uma realidade que se impõe a todos os Portugueses. Se para uns
representa o exercício perdulário que sugou imensamente o erário pública, para
outros é certamente o expoente máximo da visão ancestral de um dos reis que
melhor personificou a tradicionalmente portuguesa demanda do Graal.
Vale a pena visitar com atenção e
cuidado, libertando-se de preconceitos e alumiando os recantos mais sombrios de
uma história que ainda tem muito para contar ao País onde nasceu. E no fim,
depois de subir aos carrilhões e de descer aos sombrios recessos dos
subterrâneos, é essencial sair pela “porta do cavalo”… se souber!