por João Aníbal Henriques
As memórias da Cidade de Moura,
no Alentejo, guardam consigo o ensejo antigo da beleza e da formosura da
Princesa Salúquia, filha de Abu-Hassan e noiva eterna de Bráfama, alcaide de
Aroche.
Aos seus pés, perdido algures na
brancura singela da planície, sob um manto de restolho inchado pelas águas
úberes deste Outono ameno, está o tesouro antigo que os tempos fizeram questão
de olvidar.
Quando Moura se chamava ainda
Al-Manijah, Salúquia estava apaixonada por Bráfama e aguardava nervosamente no
cimo da torre de menagem do castelo a chegada do seu noivo. Mas, ao contrário
daquilo que deveria ter sido, os exércitos mouros foram derrotados numa breve
peleja pelos audazes seguidores de Dom Afonso Henriques. E a princesa,
puríssima e com o colo alvíssimo preparado para receber o seu amado, assiste
perplexa à entrada encapuçada dos cristãos no recinto amuralhado onde o seu pai
a havia deixado à guarda dos seus mais sérios soldados.
Consciente do carácter sórdido
dos maus-tratos que a esperavam assim que os invasores subissem ao castelo e
ciente da morte prematura de Bráfama e do seu pai, Salúquia prescindiu da vida
e atirou-se do cimo da torre de menagem para o chão duro do castelo.
Morreu. Levando consigo o tesouro
de virtude que a acompanhava e a paixão que lhe enchia a alma.
Salúquia está hoje presente no
Brasão de Moura, deitada eternamente aos pés da cidade onde nasceu, onde viveu
e onde se entregou de corpo e alma ao seu destino. Com ela seguem os sons ocos
de uma vida radicalmente diferente daquela que hoje temos e simultaneamente
igual ao devir que ainda agora constrange o dia-a-dia de todos os Portugueses.
Decidiu morrer ao invés de se
entregar nas mãos dos Cristãos recém-chegados, impedindo-os de deleitosamente
gozarem os prazeres intocados da sua imaculada existência. Mas fê-lo às mãos daqueles
que a tornaram imortal, entregando-lhe muitas centúrias de vidas e sucessivas
gerações de Portugueses.
Dizem que ainda hoje Salúquia
circula por ali. Não já no corpo que entregou por amor, mas com o espírito que
continua a guardar o seu segredo.
E nas manhãs de nevoeiro, quando
toda a paisagem se cobre com a película diáfana do mistério, não são poucos
aqueles que a conseguem discernir, com os seus olhos fixos no horizonte, numa
espera eterna pelo amor que nunca há-de chegar a ser. Dizem também, sobretudo
aqueles que vêem com os olhos da sua própria alma, que Salúquia já não é uma
mulher, tendo assumido um corpo de cobra que deambula sinistramente pelo meio
daqueles que a pressentem…
A cobra encantada de Moura. No Alentejo.