por João Aníbal Henriques
Quem entra em São João das Lampas
desconhece geralmente que a povoação é de génese muito antiga e indeterminada.
De facto, a terra mudou de nome no final do Século XVI, chamando-se até essa
altura São João dos Porqueiros. E a sua Igreja Matriz, fulgurante no brilho
emanado pelo seu extraordinário pórtico manuelino, seria originalmente um
pequeno templo rústico construído pela comunidade rural que ali habitava, ao
qual foram sendo acrescentados diversos elementos que lhe conferem a sua
formulação actual.
Nada se sabendo sobre a sua
origem, apesar de vários sinais que nos apontam para épocas ancestrais e para
cultos e rituais que muito provavelmente antecedem o próprio cristianismo, é
certo que naquele lugar já existia um templo em 1421, por ter sido mencionado
como tal no testamento de Martim Soudo.
Alguns dos seus elementos
morfológicos, nomeadamente os dois pórticos secundários de entrada, serão provavelmente
datáveis desse período ancestral, muito embora seja actualmente impossível
perceber exactamente qual foi o diálogo estabelecido por aquelas cantarias com
o edifício original.
Sabe-se, no entanto, que o
pórtico manuelino é realidade datável do final do primeiro quartel do Século
XVI, e que o mesmo é atribuído por vários autores à escola associada ao Paço
Real de Sintra. A disfuncionalidade plástica do mesmo no corpo da velha igreja,
provavelmente resultante da afirmação política e social que a localidade
conheceu neste período, contrasta com a simbologia que nele está gravada.
Num apelo à pureza original, num
misto sub-reptício de pujança artística cruzado com os valores espirituais
ligadas ao culto do Espírito-Santo, a igreja assenta a sua prática num virtuoso
apelo às virtudes associadas à entrega a Deus e à negação das ilusões que
resultam da efemeridade material da vida terrena… A justiça terrena, bitola que
sustenta o permanente apelo às virtudes espirituais, assenta num permanente
apelo à Tríade Divina: Pai, Filho e Espírito-Santo, numa alusão velada ao papel
desempenhado por São João Baptista na preparação do caminho para semear a
Palavra do Senhor.
Tal como nos tempos bíblicos,
também em São João dos Porqueiros se vivia intensamente os rituais associados à
descida do Espírito-Santo, sabendo-se que dela depende a capacidade de o Ser
Humano se impor na Terra, num registo de humildade que faz grandes aqueles que
têm a capacidade de assumir esse compromisso durante a sua vida terrena. O bodo
cerimonial, que o já referido Martim Soudo refere no seu testamento do Século
XV, é assim um ritual comunitário de partilha que, a partir desta igreja,
redistribui a riqueza de quem mais tem junto daqueles que mais necessidades
passam em cada uma das eras. A escolha do Imperador, coroado sempre depois de
uma triagem efectuada no seio da comunidades das crianças mais humildes e
pobres, simboliza precisamente esse apelo à castidade, à bondade e à pureza
original, pois, parafraseando Jesus Cristo, é dos humildes o Reino dos Céus.
O Baptista, que sobreviveu nas
margens do Rio Jordão alimentado por esmolas escassas e por gafanhotos quando
elas não vinha, foi também ele milagrosamente filho de Zacarias e de Isabel, a
idosa prima da Virgem Maria a quem o Espírito Santo concedeu a graça de gerar
um filho que cumprisse as profecias de anunciar a chegada do Salvador. Ele foi
muito mais importante do que as Sagradas Escrituras referem, uma vez que é por
seu intermédio que o seu primo Jesus se cristifica.
De facto, o seu apelo à limpeza
espiritual, sublimada por um perdão divino que se activa simbolicamente através
do baptismo, é o primeiro passo no sentido de estabelecer na Terra um novo
reino diferente de todos aqueles que jamais ali tinham proliferado. O Reino do0
Espírito, no qual a matéria desempenha um papel secundário, servindo a flor
como símbolo máximo de uma existência baseada na bondade, na entrega e na
contemplação terrena da Obra de Deus.
Em São João das Lampas, numa
linha de génese provavelmente iniciática, São João Baptista surge inserido num
registo em que a marca é a papoila, bem visível nesta sua igreja principal. A
flor, que naturalmente enche a paisagem envolvente com o seu fulgor primaveril,
personifica esse mesmo apelo espiritual à pureza, dando corpo para que os bodos
ao Espírito Santo se tornem no principal elemento organizador da comunidade.
Quando baptizou o seu primo
Jesus, referindo-se-Lhe como “Filho de Deus”, São João Baptista lançou o mote
para a vida pública do Salvador, recriando assim a dinâmica que alterará de
forma profunda toda a vivência religiosa da humanidade. E sempre, como a Igreja
de São João dos Porqueiros simboliza, num venerável baixar de cabeça,
humildemente se submetendo à vontade de Deus-Pai e entregando-Lhe em mãos os
destinos de todos nós.
Mantendo a base cultual sempre em
torno dos elementos-chave da identidade local, nomeadamente a sua ligação à
génese saloia da sua comunidade e às raízes agrícolas que durante muitos
séculos deram corpo ao edifício económico da região, o edifício vai evoluindo à
medida das doações que vai recebendo, ficando muitas delas eternizadas nas
inscrições epigráficas que acompanham alguns dos seus elementos.
De salientar, porque é hoje
elemento principal na caracterização daquele conjunto patrimonial, a construção
da torre sineira e da alpendrada que acompanha duas das suas fachadas.
Provavelmente do Século XVI ou XVII na sua formulação actual, surgem
esteticamente ligadas às funcionalidades que lhes estavam adstritas e que
definem a dicotomia entre a pujança alcançada devido ao sucesso agrícola e
suinícola daquela zona, e a singeleza cultural que deriva da génese saloia da
comunidade.
Classificada como Monumento de
Interesse Público, incluindo a igreja, o seu adro e todo o espaço envolvente,
através da Portaria n.º 9/2015, publicada no DR, 2.ª série, n.º 4 de 07 de Janeiro
de 2015, a Igreja de São João Baptista de São João das Lampas é hoje um dos
mais relevantes espaços religiosos da Área Metropolitana de Lisboa, definindo
com rigor aquele que é o registo identitário da Região Saloia.