por João Aníbal Henriques
No coração do casco urbano de
Cascais, junto à Igreja Paroquial e à Cidadela, está um dos edifícios mais
extraordinários e enigmáticos da vila. O actual Centro Cultural de Cascais, que
muitos conhecem ainda como as “Casas do Gandarinha”, foi inicialmente um
convento oferecido por D. António de Castro, quarto Conde de Monsanto e Senhor
de Cascais, e por sua mulher, D.Inês
Pimentel, à Ordem dos Carmelitas Descalços.
A cerimónia de colocação da
primeira pedra, assim que foram firmados os termos da doação por parte dos
Senhores de Cascais, aconteceu no dia 1 de Dezembro de 1594, depois de obtida a
autorização papal e do arcebispado de Lisboa para esse efeito.
Mas não foi isento de problemas e
de polémicas esse momento. Os militares sedeados na Fortaleza de Cascais,
preocupados com a proximidade do futuro convento e com os projectos de
ampliação da fortificação, tudo fizeram para embargar a obra. Mas não
conseguiram e a inauguração aconteceu em 1641, logo após a restauração da independência
nacional, quando ficou terminada a capela e o espaço de culto que lhe estava
associado.
E no Convento de Cascais, com a
sua matriz mariana e dedicado a Nossa Senhora da Piedade, logo se instalaram os
primeiros religiosos que, para além do culto regular similar ao de outros
espaços semelhantes existentes noutros locais, ali criaram aquela que vem a ser
uma das primeiras escolas de filosofia de Portugal.
Hermética e sensível àqueles que
eram os mistérios daquela época, a comunidade de Cascais enveredou por uma
linha de pensamento desalinhada com os poderes vigentes e, num ímpeto de
inovação espiritual, procurou conhecer os mistérios da vida e da morte, perpetuando
correntes de pensamento quase heréticas que juntavam nomes como os de Raimundo
Lúlio, Santa Teresa d’Ávila, Santa Isabel de Portugal, Alberto Magno ou São
João da Cruz. A sua ciência, misturando os conhecimentos técnicos da época com
os valores abstractos da Alquimia, ou seja, a “ciência de Maria”, produziam
para o Mundo Profano a célebre “Água de Inglaterra”, que curava praticamente
todos os males de que os cascalenses de então padeciam, e para os iniciados deixava
as pistas que orientavam os frades na sua busca espiritual pelo Santo Graal,
essa porta aberta para a verdadeira sabedoria. Os metais comuns
transformar-se-iam em metais preciosos, da mesma forma que o espírito
transcende a matéria alcançando a sacralidade superior e diluindo-se na própria
essência de Deus.
As paredes velhas do antigo
Convento de Nossa Senhora da Piedade, guardam ainda hoje esse segredo maior. E
na memória perene de cada uma daquelas pedras, estão ainda as pistas que nos
permitem perceber o alcance da Obra que dali se foi espalhando por toda a
Terra. Assumindo-se como verdadeira Scala Coeli, o convento de Cascais era
funcionalmente um elevador que transmutava as Almas mostrando-lhes o caminho
que lhes permitia elevarem-se ao Céu.
Até porque o Ouro e as riquezas
materiais, efémeras como é efémero o nosso conceito da linearidade do tempo,
são substância de segunda importância quando comparadas com o manancial de vida
que floresce do acto de transformar o pão que alimenta o corpo nas rosas que
alimentam o espírito…
Por isso, onde hoje se promove a
cultura e se constrói saber, viam os Carmelitas Descalços daquele tempo uma
imensa escadaria que subiam pacientemente, um passo de cada vez, até chegarem
ao Céu.
Nas escavações arqueológicas que
a Associação Cultural de Cascais ali fez durante a década de 90 do século
passado, sob a direcção de José d’Encarnação e Guilherme Cardoso, e que
precederam as obras de remodelação das novecentistas Casas do Gandarinha para
que fossem transformadas no actual Centro Cultural, foram trazidos à luz do dia
os vestígios dessas outras vidas e desses outros tempos, num exercício catártico
que fez Cascais recuar no tempo até à fatídica noite de 1 de Novembro de 1755
quando o grande terramoto destruiu de forma arrasadora aquele cadinho de saber.
Mas ainda hoje, passados mais de um quarto de século desde que o novo equipamento se abriu à curiosidade dos cascalenses, são poucos aqueles que possuem a chave encriptada que permite desvendar os segredos maiores que aquele Tabernáculo teimosamente continua a esconder.
Como se a vida e a morte, que os frades ali cantaram, fossem mesmo as partes complementares de casa Ser.