por João Aníbal Henriques
A ligação ancestral de Cascais à Igreja Católica, Apostólica e Romana
existe desde tempos imemoriais. Logo em meados do primeiro século, quando os
seguidores de Jesus abandonaram a designação de “Nazarenos” pela qual tinham
ficado conhecidos, para assumirem a condição de Cristãos, que a palavra sagrada
se espalhou rapidamente através da imensa rede de estradas que dava forma ao
então Império Romano. E é crível, até porque a arqueologia nos oferece provas
cabais da existência de redes comerciais entre o extremo Ocidental e a Cidade
de Roma, que a nova doutrina tenha chegado depressa e sido estabelecida neste
território.
Para além da Páscoa, numa extensão das práticas espirituais que vinham
desde a época Judaica e que se adaptaram à nova religião que surgiu com a Morte
e a Ressureição de Nosso Senhor Jesus Cristo, um dos momentos altos do
calendário votivo entre os Cristãos era a comemoração do Pentecostes, ou seja,
a celebração da descida do Espírito-Santo sobre os Apóstolos ao quinquagésimo
dia após a Ressureição de Cristo.
Como refere João da Cruz Viegas num dos seus opúsculos sobre a História de
Cascais, a “Páscoa do Espírito-Santo é festejada cinquenta dias depois da
Páscoa Cristã e oito dias antes do Domingo da Santíssima Trindade, comemorando
a descida do Espírito-Santo sobre os doze Discípulos de Cristo, pelas nove
horas da manhã, quando estavam em oração com Maria Santíssima e outras santas
mulheres no Cenáculo, casa situada no Monte Sião onde Jesus Cristo tinha
celebrado a sua última Páscoa com os Apóstolos”.
De acordo com as Sagradas
Escrituras, o Espírito-Santo desceu sobre os doze Apóstolos como línguas de
fogo, ganhando eles assim o dom de entender e falar vários idiomas
simultaneamente, ganhando a graça de fazerem milagres e enchendo-se com a
sensação avassaladora da imensa sabedoria que lhes foi entregue. Simbolicamente
associado ao acontecimento, é a pomba branca que a Cristandade passou a
utilizar para perpectuar na memória esta alteração paradigmática do rito fundacional
daquela que haveria de se tornar na mais importante de todas as religiões
professadas no Mundo durante dois mil anos.
Em Cascais, onde os primeiros templos Católicos acompanham a formação da
própria nacionalidade, as festividades comemorativas do Pentecostes deverão ter
existido pelo menos desde o Século XVI, quando no antigo Convento de Nossa
Senhora da Piedade se instalou uma comunidade Carmelita que tinha no culto ao
Espírito-Santo um dos seus pilares de Fé. Originalmente com um cunho muito
simples, organizado em torno de um grupo de cascalenses que percorria as ruas
da vila com uma bandeira evocativa da efeméride e que recolhia os donativos dos
moradores para o pagamento das despesas com o “bodo” destinado a alimentar
condignamente os habitantes mais pobres, depressa evoluíram para rituais mais
elaborados, como o atestam em termos comparativos os festejos que ocorriam
simultaneamente noutras partes do País e, aqui mesmo ao lado, na aldeia serrana
do Penedo, em plena Serra de Sintra.
Nessa segunda fase, uma vez mais em continuidade com os velhos rituais
ancestrais e provavelmente pagãos que eram concretizados nestas paragens desde
a época Pré-Histórica, juntou-se aos festejos a figura de um boi que, muito
enfeitado, percorria as ruas da vila de forma a mostrar aos desfavorecidos a
qualidade da oferta que iriam receber.
Este ritual de partilha, concertada sobre uma espécie de pacto-social em
que participavam os mais abastados habitantes locais, que dessa forma
partilhavam com os menos afortunados a sua prosperidade no âmbito de um ritual
religioso que esbatia a ideia de uma “caridadezinha” que muitas vezes inibia
por vergonha os que verdadeiramente necessitavam dessa ajuda para sobreviver, garantia
que todos tinham acesso à quantidade mínima de nutrientes que são necessários
para preservar a saúde e o bem-estar da comunidade, nomeadamente das proteínas
que raramente chegavam ao prato da maior parte dos cascalenses mais pobres.
Escolhendo para coroar como Imperador a crianças mais humilde, pura e pobre
que encontrassem na terra, e que simbolicamente, devido aos seus predicados, se
tornava naquelas festividades o cerne de toda a devoção dos cascalenses, a
festa do Espírito-Santo terminava sempre com um jantar onde participavam as
mais importantes personalidades locais, que pagavam integralmente a sua
refeição e que, dessa maneira, se associavam ao ritual de viabilização do bodo
dos pobres que seguidamente lhes era oferecido.
Muitas das senhoras de Cascais, num acto de abnegada devoção, adquiriam
doses do bodo para elas próprias oferecerem aos mais pobres e guardavam consigo
porções de pão benzido que utilizavam ao longo do ano para consagrar as
efemérides mais relevantes.
João da Cruz Viegas, no opúsculo atrás referido, menciona os cascalenses
ilustres que no jantar de 1903 se juntaram no antigo “Hotel Globo”, situada por
cima da Mercearia Pedada, cumprindo este ritual que tão importante era para a
Identidade da Nossa Terra: “Comendador Manuel Vieira d’Araújo Viana, que era o
juiz da festa naquele ano; Dom Fernando Castelo Branco (Pombeiro),
Administrador do Concelho; Rodrigo Luís Caldeira, Secretário da Câmara
Municipal; Francisco da Silva Vedras; António Mendes Lopes, farmacêutico; João
Desidério Nunes; João Campos; Alexandre Inácio; Domingos Vardasca; Júlio Ovidio
Morgado; Domingos Teixeira dos Santos; e Manuel Pereira Dias”.
Este último, que ainda em vida passou a Cruz Viegas estas informações,
explicou-lhe ainda que nesse ano de 1903 foram vinte e três os festeiros
encarregues de fazer cumprir a tradição e que a despesa acumulada, que serviu
de base à preparação do bodo popular, ascendeu a um total de 284$000 Reis.
Interrompidos provisoriamente depois da implantação do regime republicano,
os Festejos do Espírito-Santo foram retomados em Cascais ao longo da década de
40 do Século XX por iniciativa de José Florindo de Oliveira e de Eugénio da
Assunção que, como em quase tudo o que acontecia na vila durante aquela época,
contaram com a entusiástica participação de Armando Penin Gomes Villar, então
Presidente da Propaganda de Cascais e de Alberto Mourato que com ele assumiu a
responsabilidade de pagar um boi para compor o bodo seco oferecido à população.
Nas Festas de 1943 o bodo foi servido aos pobres de Cascais nas instalações
do antigo hospital anexo à sede da Santa Casa da Misericórdia, numa cerimónia
que foi presidida pela Senhora Dona Maria do Carmo Fragoso Carmona, mulher do
então Presidente da República, coadjuvada pela D. Albertina de Melo e por Dona
Rosa de Melo. O juiz da festa desse ano, Guilherme Cardim, juntou-se ao bodo
com o tesoureiro, Pedro Valentim Nava, que com as senhoras degustaram sopa,
cozido à portuguesa e vinho, ao som da banda filarmónica do Grupo Desportivo
Estoril-Plage. Nesse dia fez-se distribuição de carne ao hospital da Santa Casa
da Misericórdia, à Casa dos Pobres, à Casa de Trabalho de Nossa Senhora da
Assunção, à Maternidade Maria Amália Vaz de Carvalho, e do bodo molhado aos
dois únicos presos que estavam encarcerados na cadeia da vila. Para as crianças
que frequentavam a Creche José Luís foi entregue arroz e massa, sendo que por
toda a vila foi distribuído larga quantidade de pão bento.
No jantar final, ocorrido no dia 13 de Junho, estiveram presentes Guilherme
Cardim, Pedro Valentim Nava, João da Cruz Viegas, Padre Moysés da Silva,
Joaquim Nunes Ereira, João António Gaspar, Francisco Avelino de Sousa Amado,
Frederico da Costa Pinto, Joaquim Canas Jardim, Dom António Castelo Branco,
Professor Francisco Cruz, Alberto Mourato, António Santa, Eugénio Bernardino
d’Assunção, António Ricoca, Pedro Aguiar, Abílio Maria, Carlos de Sousa, Júlio
Pedro d’Assunção, Manuel Paulino, António da Silva Neves Júnior, Sebastião
Bonifácio, Osvaldo Faria, Ventura Ledesma Abrantes, João Victor Gaspar, José
Afonso Vilar Júnior, Filipe Nobre de Figueiredo, Francisco Silva, Aníbal
Contreiras, António Ferreira dos Santos, Miguel dos Reis, José Cartaxo, Silvino
Duarte, José Apolinário Duarte, António Miguel Muchacho, Joaquim António
Gaiteiro, Domingos Nunes, Serafim Nunes, Gabriel Muchacho, Fernando José Dias e
João Marinha Arraia.
A partir do ano de 1944, por iniciativa de Armando Villar, os festejos
passaram a incluir uma comissão de “Mordomos de Honra” que, contribuindo
materialmente para a festa, evitavam que a mesma decorresse sem a dignidade que
todos consideravam essencial para o sucesso do evento. Nessa primeira edição
foram “Mordomos de Honra” o Reverendo Padre Moysés da Silva; o Presidente da
Câmara Municipal, José Raposo Pessoa; o Presidente da Junta de Turismo, Augusto
Teles Abreu Nunes; o Presidente da Junta de Freguesia, D. José Avilez; o
Administrador da Estoril Plage, Guilherme Cardim; Joaquim Nunes Ereira, pela
Propaganda de Cascais; e João da Cruz Viegas. Fizeram ainda parte as senhoras
D. Felícia Gonçalves Villar, D. Felismina Canas Cardim, D. Lucinda da Silva
Abreu Nunes, D. Laura Carnoto d’Oliveira, D. Maria José Magalhães Pessoa, D. Maria
Isabel Avilez, D. Rosalina Pedroso Muchaxo e D. Tomásia Canas Ereira.
Na edição de 1948, com Ricardo Espírito-Santo Silva como juiz e José Afonso
Villar jr. como tesoureiro, os festejos contaram com a presença e apoio de
Gabriel Muchaxo, Joaquim Sabino Pedroso, Silvino Duarte, António Silvestre
Gonçalves, Alfredo Luiz Paulo, Francisco Casaleiro, Conde Murça, Condessa de
Monte Real, Casa de Palmela, D. Nuno Almada, Condessa de Azambuja, Conde Jorge
de Monte Real, Condessa de Linhares, D.
Maria Inez Carmona, Conde das Alcáçovas, Conde de Cabral, José Ribeiro
Espírito-Santo Silva, Eduardo Guedes de Sousa e Dona Amélia de Melo. À festa
juntaram-se ainda Armando Villar (então Provedor da Santa Casa da Misericórdia
de Cascais), o médico Dr. Álvaro de Lacerda e Melo, Amadeu Stoffel, António
Casimiro d’Almeida, António Muchaxo, Guilherme Cardim, José Teixeira Roxo e
Manuel Paulino.
As Festas do Divino Espírito-Santo de Cascais são uma das mais antigas
tradições desta vila de Reis e de Pescadores, traduzindo a um só tempo a
vivência religiosa e social da terra e das suas gentes. Conhecê-las e
compreendê-las, integrando-as na dinâmica própria de cada momento da História
de Cascais, é um passo importante para ajudar a projectar o futuro dinâmico e
coeso pelo qual todos ansiamos.
Fotografias do Arquivo Histórico Municipal de Cascais e do Arquivo Histórico da Sociedade Propaganda de Cascais