quarta-feira

Pedro Falcão e o Cascais Menino



por João Aníbal Henriques 

Quando Dom Simão do Santíssimo Sacramento Pedro Cotta Falcão Aranha de Sousa e Menezes nasceu em Cascais, em Maio de 1908, a Vila atravessava um período de convulsão profunda que havia de alterar radicalmente a sua forma de ser. As muitas crises que acompanharam o final do regime monárquico, o recente assassinato do Rei Cascalense – Dom Carlos I, e o paulatino aumento do poder e da influência de uma burguesia empreendedora e anti-aristocrática que se instalara na Parede e em Carcavelos e que criticava os laivos aristocráticos da Vila Velha e da Parada onde o escritor viria a crescer, abalaram os arquétipos de tolerância, cosmopolitismo e urbanidade que davam forma a Cascais e às suas gentes. 

Filho de uma das famílias tradicionais da Vila da Corte, desde sempre ligada à História de Cascais e sobretudo ao desenvolvimento e progresso que acompanhou a chegada da Família Real, Dom Simão Aranha habituou-se desde cedo à frequência elegante dos melhores salões da terra, tendo crescido a ouvir as estória de uma História em que Cascais foi sempre personagem principal. Ao mesmo tempo, num período de crise e convulsão como foi aquele que se seguiu à revolução republicana de 1910, teve também a oportunidade de se perder livremente nos becos e vielas da Vila, fomentando relações de amizade com os muitos pescadores e trabalhadores agrícolas que nessa época ainda enchiam as ruas de Cascais. Conheceu pescadores, varinas, aguadeiros, limpa-chaminés, lavadeiras e canteiros. Ouviu os seus anseios, crescendo com os seus projectos, ideias, motivações, necessidades e, sobretudo, com os muitos sonhos que estes criaram com as expectativas que lhes impingiram para explicar a implantação do novo regime. 

Para Dom Simão Aranha, os anos de meninice em Cascais misturaram o glamour da sociedade aristocrática com as necessidades práticas do dia-a-dia dos Cascalenses mais comuns, recriando um cenário onírico onde a realidade e a fantasia co-habitavam e que se tornou no principal traço que mais tarde serviu ao escritor para marcar as suas obras. A imensa confusão entre aqueles dois mundos distantes e por vezes antagónicos, observados pela criança interessada, perspicaz e curiosa que ele sempre foi, formaram uma personalidade verdadeiramente única e irrepetível. Simão Aranha circulava livremente através dos cafés e tascas de Cascais, onde sempre foi ouvido e acarinhado pelos mais humildes, ao mesmo tempo que frequentava os bailes da moda, os saraus culturais e os círculos fechados de uma aristocracia que detinha o poder.



Durante a Guerra Civil de Espanha, na qual participou como voluntário, somou ao seu currículo diversas condecorações e distinções. Mais do que ao perfil militar que verdadeiramente não tinha, atribuiu-as à intervenção divina. Depois de vários dos aviões que pilotava terem sido abatidos em pleno voo, e de mesmo assim ter escapado sempre incólume e saído de cena como um herói que sempre achou que não era, Simão Aranha desenvolveu uma relação estranha com a vida. Cada minuto, cada centímetro de paisagem, cada palavra e cada recanto tornaram-se preciosidades que importava preservar. Em linha com a sua personalidade bem vincada, abandonou desde logo os estudos de direito e cursou belas artes, promovendo o belo e suspirando a cada momento pela poesia que o quotidiano permanente lhe fazia viver. Em termos estéticos, a grande marca da sua vida é Cascais. A sua terra, as suas gentes, os seus recantos e pormenores, as suas vozes, sonhos e aspirações tornam-se desde logo motivo central de toda a sua obra. Pelo ‘Palco da Vida’, como designava os seus livros, fez passar as estórias de uma História que ia desaparecendo à medida em que iam morrendo as personagens que compunham o Cascais da sua infância. Queria eternizá-los, atribuir-lhes laivos quase divinos, e com eles reconstruir aquele Cascais Menino que lhe transbordava na Alma. Assinando sempre com o pseudónimo Pedro Falcão, escreveu peças de teatro, poesia, romances e livros de História. Ousou desafiar as memórias tradicionais da Vila e publicou obras onde a fantasia e a realidade se misturavam numa espécie de cadinho místico e sensual. Deslumbrou quem o leu, e deixou para trás um rasto de saudade que tocou de forma profunda quem teve o privilégio de o conhecer. 

Mas, assumindo frontalmente o seu sonho, teve também a coragem de criticar as vaidades, atacar as injustiças e defender um Cascais que também considerava seu. Foi amado e odiado pela forma como teve a coragem de viver, e legou à sua terra um testemunho inolvidável de tudo aquilo que ela foi e sentiu durante os noventa anos em que aqui viveu. Para além de historiador, que ele dizia não ser; de etnógrafo e sociólogo que achava que não era; do romancista que não pretendia ser; e do poeta, que ele considerava que não tinha qualidade para ser, Pedro Falcão foi sobretudo uma personalidade ímpar numa terra sem igual. A genialidade da sua Alma, o amor à terra que o viu nascer, e a humildade de alguém que se sentia sempre aquém das ideias que da sua imaginação fértil brotavam permanentemente, traçaram o perfil de um marco na História de Cascais que transformará em definitivo as memórias que as futuras gerações criarão sobre esta vila diferente. 

Já no final da sua vida, quando preparava o romance “Os Valares”, composto por várias camadas de história, estórias e por muitos dos desejos e sonhos que ele próprio construiu para a sua terra, ousou publicar um projecto de reconversão da vila que ele tanto amava. Muniu-se de arquitectos e engenheiros e sonhou um Cascais com a Ribeira das Vinhas aberta e navegável. Imaginou barquinhos à vela a atravessar a vila e crianças de Cascais a aprender a navegar ali mesmo no centro da localidade. Suspirou um quadro idílico onde os esforços se uniam em torno de um grande projecto que transformasse Cascais numa aguarela maravilhosa onde os matizes de cores se misturavam com os sonhos de cada um dos que por ali andavam… morreu com a utopia de um Cascais diferente… do seu Cascais de menino! A sua mulher e companheira de muitas décadas, Yan Rub, dizia que a História de Pedro Falcão não começava no princípio e terminava no fim e não tinha data fixas ou rotas certas. Era a obra de um menino que conversava com outro menino, perdidos ambos na sensibilidade que só a pureza de espírito mais profunda pode conceber.

 
E tinha razão. A obra de Pedro Falcão é uma herança valiosíssima que perdurará ao longo de muitas gerações de Cascalenses. Mas é sobretudo um suspiro de menino, que despertará a alma de criança dos que ainda estão para nascer e que durante muitas décadas com ele correrão livremente e de pés descalços por entre um Cascais intuído, sonhado e sentido num palco da vida onde tudo pode acontecer. Dez anos passados sobre a sua morte, urge recuperar a memória de Pedro Falcão. Não porque o escritor necessite dos tributos, das honrarias e das cerimónias que desenvolveremos em sua memória, mas sim porque Cascais e os Cascalenses precisam dele. Dom Simão do Santíssimo Sacramento Pedro Cotta Falcão Aranha de Sousa e Menezes - Pedro Falcão [1908-2000]