por: João Aníbal Henriques
É sempre difícil, para um período cronológico concreto, traçar as principais linhas orientadoras da existência de uma povoação. A complexidade que caracteriza a vida em sociedade, o efeito devastador que o tempo exerce sobre os resquícios de sociedades já desaparecidas, e os próprios condicionalismos internos que encadearam os acontecimentos, são alguns dos principais impedimentos à realização de um estudo histórico de características globalizantes.
No caso concreto de Cascais, para o período compreendido entre 1870, altura em que o monarca Dom Luís I passa a utilizar a vila como seu local de veraneio, e os anos imediatamente posteriores à implantação da república, a diversidade que pautou o devir histórico do local, bem como as enormes transformações que aqui se introduziram, realçam mais ainda a incapacidade do historiador face ao conhecimento puro e simples dos factos que pretende narrar.
Pequena vila de nome desde 1364, Cascais, nos primeiros anos do terceiro quartel do Século XIX não passava de uma pequena aldeia de pescadores. As modestas habitações, bem como os artefactos recolhidos em diversas escavações arqueológicas efectuadas no núcleo histórico da vila (1), apontam a pesca e a agricultura como principais ocupações dos Cascalenses, dados que as informações de carácter demográfico confirmam (2), de acordo com o reduzido número de pessoas que aqui viviam. Quaisquer correntes de pensamento que aqui existissem, mercê do grau de imenso analfabetismo que caracterizava a sociedade Portuguesa naquela época, proviriam assim do pequeno núcleo de monges carmelitas instalados no Convento de Nossa Senhora da Piedade.
Com a chegada da Corte, e de todas as novidades que ela trouxe, aumentou significativamente a taxa demográfica do pequeno burgo e, consequentemente, assistiu-se a uma progressiva dinamização das suas actividades económicas. A indústria do pão e das conservas, bem como a da construção civil, uma vez que se construiu neste período um grande número de novas casas, vieram alterar por completo o rosto da Vila de Cascais, insuflando-a com um nível de vida que ela nunca tinha conhecido. Foram estas as causas primordiais da simpatia com que o povo de Cascais, demonstrando a sua gratidão, recebe anualmente a Família Real, facto que vai ultrapassar largamente os acontecimentos trágicos do dia 5 de Outubro de 1910.
A corrente republicana, que se encontrava em pleno desenvolvimento um pouco por todo o País, encontra assim em Cascais um ambiente extremamente adverso à sua implantação, razão pela qual, mesmo hoje, é possível vislumbrar tão poucos vestígios da actuação desses grupos na vida social da Vila. Se por um lado, logo no dia a seguir à revolução republicana, Cascais passa a ser governado por um grupo de republicanos natural deste Concelho, por outro, a totalidade dos elementos que compõem esse grupo provêm exclusivamente das localidades da Parede e Carcavelos, sendo certo que a população da Vila e arredores se manteve em sintonia com o regime monárquico. As causas destes factos, se bem que explicadas pelo carácter periférico que esses locais ocupam face ao centro administrativo do Concelho, recebendo assim menos atenção por parte das autoridades administrativas, devem-se também ao facto de essa gente ser maioritariamente oriunda de outras zonas do País. A proximidade do Concelho de Oeiras, onde o ideário republicano obtinha grande sucesso e onde se publicavam diversos jornais pró-republicanos, ajuda também a explicar as tendências da Parede, bem como a inexistência de imprensa republicana em Cascais.
Foi assim a grande implantação social, económica e cultural que a instalação da Corte promoveu em Cascais, bem como a quase total inexistência de instituições anteriores a 1870, a causa principal para o insucesso republicano, explicando-se dessa forma não só a falta de empenho da população durante os momento mais quentes do período revolucionário, como a simpatia e apoio votado à aristocracia Nacional e estrangeira que para aqui aflui de forma permanente até à actualidade.
A implantação da república na Vila da Corte, ao contrário do que vinha acontecendo em diversas partes do País, obedece assim a regras muito sui-generis, havendo a necessidades, após a tomada de posse da administração republicana, de se controlar politicamente os Cascalenses, quer através do desenvolvimento de um enorme esforço evolutivo, quer através de um efectivo apagamento de toda a simbologia monárquica que proliferava nas casas, nos espaços públicos e na toponímia local.
(1) CARDOSO, Guilherme, “Carta Arqueológica do Concelho de Cascais”, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1991 e NERY, Isabel e outros, “Cascais – Evoluções Históricas”, in Jornal Notícia, 15 de Maio de 1989.
(2) DIAS, João Alves, “Cascais e o seu Termo na Primeira Metade do Século XVI”, Arquivo de Cascais, nº 6, 1987, pp. 67-72.
(3) ANDRADE, Ferreira de, “Cascais – Vila da Corte”, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964.