sexta-feira

Monte Estoril - Uma Estória da História de Cascais






Situada estratégicamente junto ao litoral cascalense, a povoação do Monte Estoril é certamente um dos locais que merece um maior cuidado de observação e análise. A sua importância, mais do que pelo enorme e valioso espólio arquitectónico e cultural que possui, vem-lhe da sua situação actual, misto de um cenário abandonado e destruído, onde a podridão, em conjunto com a actual putrefacta acção do Homem, tem vindo a promover o desenvolvimento de um caótico centro de consumo e distribuição de estupefacientes.

A situação actual do Monte Estoril, agravada por um desconhecimento paulatino relativamente às suas origens, é assim de perfeito desentendimento histórico, sociológico, cultural ou mesmo comercial, uma vez que, neste outrora rico e característico interstício da nossa linha de costa, é possível encontrar uma incompreensível mistura de novas edificações, inseridas numa arquitectura moderna e incaracterística, com velhos e esplenderosos edifícios de finais do século passado, excelentemente bam conservados e mantidos e que, por seu turno, possuem nas vizinhamças semi-destruídos restos do Monte Estoril de outrora, com as suas paredes enventradas e de onde se pode observar as muitas seringas e demais apetrechos que ali são deixados para as noites seguintes de prazer. Os interesses de todos aqueles que por ali habitam ou simplesmente passam, estão assim em confronto permanente, tornando também este espaço, outrora conhecido pela sua vivência comunitária, num sítio sem memória, sem passado, sem presente e sem perspectivas de futuro.

Para abordar de forma congruente o Monte Estoril de hoje, após vários períodos mais ou menos prolongados de incúria e destruição exacerbada, interessa fundamentar as observações que pretendemos em três perspectivas diferentes, afinal de contas as únicas que o tornaram naquilo que hoje representa: o local; a história; e as suas gentes.

Em primeiro lugar, este sítio é o resultado de um processo recíproco de interacção entre o Homem, o meio e a história que, em conjunto, fundaram uma povoação em que o caos aparente se transforma em harmonia, e em que o sentido inerente à sua disposição, embora dixando transparecer o êxito das acçãoes que ali foram levadas a efeito, depressa se transforma em acaso e insucesso, factores onde assenta, com raízes profundas o sucesso de outrora.



O Monte Estoril é, acima de tudo, uma mistura quase incompreensível de um cosmopolitismo lusitano com um aparente portuguesismo estrangeirado, conjugados com uma acção de reciprocidade aparentemente caótica, mas que mais não é do que o cume da montanha do paradoxo. Contradição, paradoxo e acaso são assim as principais formas que orientaram a criação deste outrora considerado “paraíso terrestre”, incompreensível à mente humana da actualidade sempre muito sujeita às pressões quotidianas da vida moderna, mas plena de sentido quando observada pelos eternos românticos do fim do século XIX. O sentido do Monte Estoril, bem presente em todos aqueles que daqui se consideram, muito embora possam ter nascido no ponto mais nórdico da Europa ou no extremo sul da Oceania, está assim patente e escondido; patente para quem o não procurar, perdendo-se no seio das ruelas ladeadas de jardins; e escondido, de todos os olhares atentos que por ali procurem observar algo de mais vigoroso e rico.

Torna-se assim difícil, perante esta pequena introdução, mencionar aquilo que foi, que é e que poderia vir a ser o Monte Estoril, uma vez que não existe um só, mas muitos, de acordo com a perspectiva de quem o observa. Tal como Cascais e as pequenas aldeias saloias que compõem o seu concelho, este pequeno aglomerado populacional vale por aquilo que representa, um símbolo da Portugalidade e uma ideia de algo que consegue existir para além de tudo aquilo que o Homem possa imaginar.

Dizia em tempos que já lá vão o sábio Santo Agostinho (1), que o tempo já não existe. O passado, segundo o próprio, não o podemos observar pois já passou, tendo deixado de existir; o futuro, ainda não veio, pelo que não existe também; e o presente pela fugacidade que o caracteriza, ainda não é presente quando nele pensamos porque ainda não veio, e já é passado quando esse momento passa, não podendo assim existir também. O mesmo se passa com o Monte Estoril, patente na mente de quem o imaginou, mas diferente daqueles que o programaram. O Monte Estoril é assim algo que não existe, existindo eternamente, fruto do pensamento dos Homens, da vontade dos Deuses, e adaptado aquilo que cada um dele espera.

A recuperação do Monte Estoril, mais do que um exercício de reordenamento urbanístico, tal como se fará noutras aldeolas do concelho de Cascais, é sobretudo a requalificação da conjugação daqueles três factores: o local, a sua história, e as suas gentes. A programada substituição da população Monte Estorilense por escritórios e serviços, tal como foi defenido no Plano Director Municipal de Cascais, é retirar deste espaço grande parte da sua marginalidade, mas é também retirar deste espaço priviligiado uma vivência característica e sã, que sempre norteou a actuação das populações que aqui habitaram. Se, pela mesma razão, se efectivarem estas ideias expressas pela edilidade cascalense, mais um passo terá sido dado para acabar com tudo aquilo que historicamente representa Cascais.

Se tal assunto, numa primeira análise, parece não interessar muito para o desenvolvimento harmonioso da Área Metropolitana de Lisboa e do próprio País, imaginemos a actuação análoga de muitas outras cãmaras municipais, sem qualquer espécie de representatividade efectiva, transformando Portugal num espaço turístico sem qualquer espécie de atractivo, e de onde estão ausentes todas as características da Portugalidade.

O Monte estoril de outros tempos oferecia o sol e o mar, conjugando tais factores com a beleza da sua paisagem e com o resplandecente movimento social que apresentava. O Monte Estoril de hoje não pode oferecer o seu sol que, como sabemos, está estragado pelas consequências nocivas de muitas décadas de utilização de aerossóis sobre a camada de ozono; o Monte Estoril de hoje não pode oferecer a praia, pois as águas do seu mar estão poluídas e mal-cheirosas, fruto de muitos anos de caos urbanístico e de uma construção desregrada que continua a aumentar; o Monte Estoril de hoje não pode apresentar a paisagem como atractivo principal, pois o abandono em que se encontra, fruto da especulação imobiliária e da incúria de muitos anos, o transformaram num subúrbio descaracterizado e perigoso da vila de Cascais; e por fim, e se calhar é esta a perincipal doença que apresenta, o Monte Estoril de hoje não pode já apregoar a cordialidade e simpatia que carcterizava os seus habitantes, pois muitos já faleceram e, aqueles que ainda ali habitam, têm de se precaver contra a incerteza de encontros fortuitos e maléficos com personagens altamente marginais que por ali deambulam.

Vamos criar um Monte Estoril novo mas velho ao mesmo tempo! Vamos contribuir para a recriação de Cascais e de Portugal! Vamos ser, ao mesmo tempo, membros e interventores na governação deste concelho, deixando administrar aqueles que verdadeiramente sejam cascalenses e portugueses, venham eles de onde vierem!...



Para o Paraíso Natural do Monte Estoril...

As abordagens que têm sido levadas a efeito sobre o Monte Estoril, sejam elas de cariz turístico, cultural ou mesmo social, possuem até hoje um elemento comum: o facto de assentarem, em exclusivo, sobre a dicotomia entre o património edificado e as pessoas que ali desenvolveram as suas actividades.

De facto, se atendermos ao Monte estoril de hoje, depressa nos aperceberemos de que essa relação recíproca entre as edificações e as pessoas que as utilizaram são a peça-chave para a compreensão daquilo que foi esta pequena povoação, outrora connhecida como a Côte d' Azur Portuguesa. No entanto, e porque de uma perspectiva geral pretendemos tratar, difícil seria deixar de abordar a temática directamente relacionada com o meio envolvente que, como se usa hoje dizer, diz respeito a todos, cabendo a todos um papel único na sua salvaguarda.

O meio ambiente do Monte estoril, pelo menos aquele que hoje encontramos, nada tem a ver com o outro que foi encontrado por José Jorge de Andrade Torresão, o primeiro dos grandes construtores dos chalés de veraneio do Monte. Segundo Branca Gontha Colaço e Maria Archer (2), numa das mais sentidas obras escritas sobre os concelhos de Cascais e Oeiras, e que, à laia de permeioaconselhamos vivamente a leitura e a reflexão sobre os assuntos focados, revelam ter sido o território actualmente ocupado pela povoação em questão, completamente deserto, apenas ornado de vastas manchas verdes de pinheiros que, inclusivamente, acabaram por influenciar a própria toponímia antiga do sítio, que se chamou, durante muitos anos, simplesmente Pinhal da Andreza: «Solidão absoluta. Nem casa nem choupana, Pã vagueava no seu domínio como um verdadeiro deus. Não se ouvia balido de ovelha nem flauta de pastor. O mar inundava, com seu canto majestoso, a solidão magnífica. Os pinheirais gemiam em uníssono as saudades dos temporais».



Estudar o Monte Estoril de hoje, pensando demoradamente sobre a razão de ser dos diversos chalés de diferentes características inexplicavelmente salpicando as antigas matas de pinheirais e ocupando progressivamente as apetecíveis colinas, é sobretudo um esforço de reconstituição daquilo que foi este mesmo território antes de possuir as actuais edificações. Como tal, qualquer estudo que se faça sobre a arquitectura e o urbanismo do Monte Estoril terá de possuir, a suportá-lo, uma abordagem mais alargada que permita perceber, em termos de colocação e divisão do espaço, qual a lógica subjacente ao desenvolvimento que se efectivou durante a última décadado século XIX. Como é óbvio, daqueles que primeiro chegaram a este sítio, encontraram uma disponibilidade total de ocupação do espaço, disponibilidade essa patente devido ao total alheamento dos construtores face ao enquadramento do conjunto edificado, uma vez que o mesmo não existia; alheamento ainda face a possíveis sujeições legais, pois não existiam parâmetros rígidos nem definidosque orientassem os projectos (quando existiam os projectos); e alheamento, afinal de contaspois o facto de o terreno não estar ainda muito utilizado, permitia a escolha precisa do local para criar a nova habitação, bem como a forma através da qual se desenvolveriam os arruamentos e os jardins que a iriam circundar. Actualmente, quando alguém escolhe um terreno para edificar uma habitação, tem obrigatóriamente de ter em conta as casas construídas em redor, tal como os acessos e o seu estado, e a forma como o quintal se poderá articular com a edificação e com a rua, de modo a promover as necessidades da família ocupante e de melhor cumprir os objectivos para que foi criada. Tal facto, ao contrário do que sucedeu no Monte estoril, ajudou a criar na actualidade uma certa monotonia de valores estéticos, facto que podemos observar nos novos bairros recentemente construídos, bem como nas vedações em tapume metálico que abundam em quase todos os quintais cascalenses. A rua assume aqui uma função de mera passagem deixando de marcar significativamente o carácter do local, facto que é acentuado pela cada vez maior necessidade de privacidade, que vai alterar toda a estratégia das relações de vizinhanças e, assim, reestruturar a concretização histórica do povoado.

No Monte Estoril, a ausência de construções foi motivo sobejamente suficiente para afastar dos primeiros edificadores todos e quaisquer receios de falta de privacidade, facto facilmente contemplável através dos muretes de baixa altura que circundavam as habitações. Por outro lado, a própria vivência social da época, fruto do enriquecimento abrasileirado de muitos burgueses lisboetas, criava a necessidade de promover a sociabilidade, facto que condicionou de modo perene as próprias características das ruas que tinham como principal função a de facilitar o acesso às novas edificações, mostrando, ao mesmo tempo, o esplendor de todas aquelas que ficavam na vizinhança.

As características das casas, bem como os pormenores que rodeiam a sua arquitectura, assumem assim um papel de verdadeiros documentos no que diz respeito à compreensão daquilo que foi a estrutura mental e social que esteve na origem do Monte Estoril. Os pequenos espanta-fantasmas, de ferro forjado e de formas arrojadas, muitas vezes aliados a janelas de águas-furtadas conjugadas com telhados de duas águas muito inclinados acentuando acentuando o seu carácter nórdico, mais não são do que características para serem admiradas do exterior, tanto mais que representavam a possibilidade de estas grandes famílias burguesas lisboetas usufruírem dos lucros que obtinham com as suas práticas comerciais e, assim, demonstrarem a aristocracia cascalense, que continuava a veranear em Cascais sem qualquer espécie de condições, que o seu poderio económico lhe permitia usufruir de excelentes condições de férias, muito embora não fossem bem recebidos nas praias da moda frequentadas pela Família Real e pela generalidade dos membros da corte.

Cascais mantinha nessa altura, praticamente todas as velhas estruturas que possuía muito antes de ser o local escolhido para o fim da época estival da corte. As casas, deterioradas por muitos anos de uso, e pelo completo desajustamento face às novas necessidades, só muito dificilmente se adaptavam às novas necessidades, sendo por isso bastante complicado, à grande aristocracia portuguesa, poder desenvolver umas férias na praia mantendo o estilo de vida que possuíam na capital. Pelo contrário, no Monte Estoril, a nova burguesia enriquecida, dada a facilidade que possuía na construção dos seus chalés, podia facilmente impor-se pela moda, aproximando-se assim daqueles que até aí tinham conseguido manter a supremacia do relacionamento da alta-sociedade portuguesa. Ramalho Ortigão, numa das suas mais conhecidas obras dedicadas ao acto de veranear, não deixa de acentuar que embora Cascais fosse a mais importante praia da Estremadura, possuindo até o palácio real, não deixava de sofrer com a falta de desenvolvimento urbano que a caracterizava (3): «Como povoação, Cascais é a mais importante das praias da Estremadura. É cabeça de concelho. O número dos seus fogos é de cerca de 1.700 - exactamente o mesmo número que existia há cem anos, o que prova que Cascais, se não tem prosperado, também não tem decaído durante o curso do último século». Tal facto é ainda acentuado pela estagnação que caracterizava os preços pedidos pelas habitações na vila de Cascais: «[...] A renda das casas, que se alugam com mobília e louça durante os meses de temporada de banhos, com quanto não seja absolutamente elevada, é ainda pouco menos do que o preço porque as mesmas casas se venderiam, se alguém as comprasse, há quinze anos» (4).

O contraste entre a velha aristocracia portuguesa, desde sempre acompanhando a corte e possuidora de genes que se ligavam directamente a vários episódios importantes da História de Portugal, estava patente em muitas ocasiões em longo deste verão, sendo de salientaro peso que tal diferença teve na forma como foi edificada a nova estância balnear do Monte estoril, e esta, em época subsequente, na mais jovem Estoril. É ainda Ramalho Ortigão que, nas suas “Praias Portuguesas”, muito ao estilo da literatura Nacional da época, melhor descreve esta disfuncionalidade social, responsável por episódios caricatos, divinamente relatados por Ferreira de Andrade na sua “Vila da Corte” (5) e que, pela sua importância na compreensão da ambiência e do enquadramento paisagístico do Monte Estoril, não hesitamos em transcrever: «As senhoras da burguesia destoam neste meio e não fazem bem em sujeitar-se ao contraste desse confronto, a não ser que não tenhamlevado as suas jóias, que não ponham senão vestidos velhos, que usem o mais simples dos penteados e que sejam despretenciosas e boas, - no qual caso todas as mulheres, qualquer que seja o seu nascimento e a sua categoria, são igualmente elegantes e distintas».

Esta necessidade de mostrar aquilo que possuíam, valorizando assim a posição recentemente assumida em desprimor daquilo que eram as bases sólidas da aristocracia de então, demonstra de sobremaneira as tentativas sucessivas que esta classe social desenvolveu com o intuito de se aproximar da elite social do País. Esses esforços, verificáveis quotidianamente através dos ornamentos e das jóias que procuravam ostentar, jóias essas que, na grande maioria dos casos não eram acessíveis à maior parte dos membros da aristocracia depauperada, causavam assim reacções cada vez maiores de encerramento dentro dos diversos grupos, que se protegiam desta forma das investidas cada vez mais audaciosas que eram promovidas pela burguesia.

Em termos mais simbólicos, era nas casas que se podiam encontrar os maiores vestígios da transformação social verificada em Portugal naquela época, sendo que, de entre todas as povoações deste País, o Monte Estoril é, com toda a certeza, aquela que maiores potencialidades de demonstração possui. as suas edificações, ornamentadas excessiva e excentricamente, promoviam o aparecimento de uma ambiência nova, facto que causou grandes transtornos à elite social vigente. As casas do Monte Estoril, principalmente aquelas que foram construídas com intuitos puramente de veraneio, são assim a face visível de uma terrível luta fratricida, que, que culminou em Cascais na tomada de poder por parte das forças revolucionárias republicanas, fruto de um exacerbado ódio criado no seio de uma dicotomia que separava o Monte de Cascais, e depois do Estoril e das restantes povoações da costa litoral deste concelho. Em relação a esta luta, é ainda Ramalho Ortigão quem na obra citada, melhor descreve a forma como se procurava a todo o custo, furar as apertadas teias da modernidade social, servindo-se de um saber instituído, mas também utilizando os estratagemas que derivavam na recente ascensão financeira do grupo: «Os homens novos que quiserem fazer o que se chama a entrada no mundo, a investtidura social, devem procurar esta praia para abrir a brecha, para penetrar na praça. Aconselhar-lhes-emos nesse caso que não emitem os homens que acompanham essas senhoras e são seus pares. Não, caro leitor inexperiente e amigo! Se quiseres ser recebido nesta sociedade portuguesa - em que se pegam os touros, em que se toca a guitarra, em que se dança o fado - não toques o fado, não pegues os touros, não bebas, não fumes, não deites para trás o chapéu dando-lhe um piparote na aba. Tudo isso fazem os fidalgos, mas tu, burguês, nunca parecerás um fidalgo se o fizeres. Parecerás apenas um moço de cavalariça e nenhuma dessas senhoras consentirá em que lhe apertes a mão. Não tenhas também muito espírito, nem maneiras muito acentuadas, nem opiniões muito expressivas. Sê o mais que possas fácil, complacente, obscuro, nulo. Vai à missa, lê o teu ripanço, está de joelhos na igreja, confessa-te uma ou duas vezes, veste-te como um padre ou como um saloio, dá-te um ligeiro ar idiota, inofensivo, pascácio. Terás um sucesso infalível. As senhoras receber-te-ão com agrado, como um auxiliar que não que não compromete, como um passivo, como um neutro. Apresentar-te-ão, rindo, às suas amigas. Pedir-te-ão os pequenos serviços suaves que se encarregam aos procuradores e aos capelães: que chegues uma cadeira, que vás buscar as luvas, o lenço ou o chapéu de sol que esqueceu, que acompanhes esta, que vás chamar aquela, que deites no correio uma carta para aqueloutra, etc.; terás uma incumbência de responsabilidade nos pic-nics, nos passeios em burro, nas soirées de subscrição; serás o ponto ou o contra-regra, o comparsaou o criado que traz a carta nas representações de salão. Converter-te-ás finalmente num personagem que será lembrado, requerido, utilizado. No ano seguinte àqueleem que por estes meios te ouveres introduzido na sociedade, poderás então tocar guitarra, enrolar nos dedos, em pleno clube, diante das senhoras, um pestilento cigarro de papel, arrojar o chapéu da testa para a nuca com o piparote fadista, e falar o calão - porque terás tomado posse, e principiarás a exercer o teu lugar de janota nacional, encartado e inamovível».

A constante luta travada entre os membros da burguesia endinheirada portuguesa e a velha e empobrecida aristocracia de cepa, tiveram o seu pontomais fulgurante na velhíssima vila de Cascais, que assistiu, em poucos anos, a uma radical transformação urbanística. Para responder à chegada da corte, muitos houveram que resolveram escolher Cascais para estância de veraneio, e esses, quando possuíam as posses necessárias para tal efeito, não hesitavam em construir as casas ao estilomais arrojado de então, servindo-se dessa construção e do seu esplendor para alicerçar a sua posição no espectro social nacional. É esse o caso, por exemplo do Palácio dos Duques de Palmela, construído de caordo com elevados parâmetros de qualidade e subordinado à experiência de arquitecto requintado e muito escolhido, com o intuito de fazer frente a uma ostentação que a coroa e a rainha dificilmente conseguiram suportar no seu mal-acabado palácio real adaptado da velha fortaleza de Cascais.

O Monte Estoril, em momento subsequente vai servir de resposta desta nova classe burguesa ao atrevimento social da aristocracia, utilizando para tal os recursos que possuia em maior quantidade: dinheiro, ideias inovadoras e espaço livre.

Foi sobretudo a conjugação deste capital imediato com a liberdade espacial que caracterizava o velho Pinhal da Andreza, que condicionou o aparecimento de uma povoação baseada em novos parâmetros urbanísticos, onde as dificuldades geográficas naturais, de acordo com o projecto de Carlos Anjos, se tornariam um incentivo essencial para a criação de uma ambiência que não existia em mais nenhuma parte do mundo. A construção do lago, e do aqueduto que traria a água da sua quinta de Vale de Cavalos, serve assim de exemplo para demonstrar quão importante era, para a época em questão, a ostentação da superioridade burguesa nacional, dispondo de verbas de valor e de força empreendedora, conseguindo tornar um desinteressante pedaço de terra, em mais um quase celestial povoado cascalense. O cuidado posto neste empreendimento foi de tal ordem, que o próprio Carlos Anjos previu com todo o cuidado o enquadramento necessário à criação de um ambiente novo, preservando as espécies vegetais de maior valor e misturando-lhes os vestígios de outras espécies exóticas trazidas de diversas partes do mundo O ponto a que chegou esse projecto foi tão profundo que o seu mentor previu ainda a cobertura das ruas com areia, como forma de promover a beleza e limpeza do sítio, bem como as aves que vagueariam por entre as ramagens viçosas e fulgurantes das espécies para aqui transportadas. O constante chilrear de pássaros mais ou menos conhecidos, misturado com o esplendor vegetal, completaria assim o conjunto fornecido pelas diversas edificações que possuiam também elas características que as tornavam únicas em todo o País.

A complementar estes aspectos urbanísticos a Sociedade do Monte Estoril, no mesmo projecto, proibiu a construção de muros de grandes dimensões, complementando tais directivas com a obrigatoriedade da recolha de pedras das praias Monte Estorilenses para a sua construção. As copas das árvores, tocando-se sob o azul do céu, em conjunto com os muros rústicos de pedra natural, promoveriam assim a tal envolvência espacial que a burguesia necessitava para transformar a sua estância de veraneio num local onde a qualidade de vida fosse, de facto, altamente apetecível.

Se no Monte Estoril foi possível criar uma povoação com estas bases, e que de facto se tornou única no mundo, tal se ficou a dever, em primeira análise ao envolvimento natural que lhe esteve na origem, sendo que a completa liberdade espacial, mesclada com as dificuldades geográficas que existiam em grande quantidade, promoveria neste sítio o nascimento de uma simbologia dinâmica e definitiva, transformando o Monte em algo de único que o devir histórico cascalense não tem conseguido preservar.








NOTAS:


(1) AGOSTINHO, Santo, Confissões de Santo Agostinho, Porto, Livraria Apostulado da Imprensa, Junho de 1984, pp. 303-304.

(2) COLAÇO, Branca de Gonta e ARCHER, Maria, Memórias da Linha de Cascais, Lisboa, [S/N], 1943.

(3) ORTIGÃO, Ramalho, As Praias de Portugal, Lisboa, Livraria Clássica Editora, 1943.

(4) Ob. Cit.

(5) ANDRADE, Ferreira de, Cascais - Vila da Corte, Cascais, Câmara Municipal de Cascais, 1964.

As Aldeias Rurais e o Futuro de Cascais





Apesar de serem poucos aqueles que as conhecem, as aldeias de génese rural existentes no Concelho de Cascais possuem um potencial turístico e cultural incontornável. A degradação paulatina de que têm sido alvo é completamente descabida num espaço que pretende ver sedimentada a denominada “vocação turística”, e a sua recuperação exige uma intervenção imediata e consequente. A sua atractividade, no contexto de uma urbanidade que tem vindo a perder a identidade cultural, é essencial para que Cascais possa readquirir a qualidade de vida de outros tempos.

Já vão muito longe os tempos em que se consideravam os resquícios da ruralidade portuguesa como exemplos malditos de uma actuação política que se dizia que tinha feito estagnar o País. Hoje, sobretudo nos países mais desenvolvidos, o que ainda resta de uma existência ruralizante e tradicional é aproveitado e rentabilizado turística e culturalmente.

A raiz cultural do nosso País, marcada de forma eminente pelo cunho de um tradicionalismo ligado aos trabalhos do mar e da agricultura, não pode alhear-se dessa realidade.

Contrariamente ao que parece mostrar a intervenção das entidades oficiais ligadas às Autarquias e às instituições governamentais com responsabilidades na área do Ordenamento do Território, da Cultura e do Turismo, o reconhecimento, a recuperação e a promoção dos resquícios da nossa identidade rural são actividades fundamentais para a criação de uma oferta turística que permita a Portugal enfrentar com dignidade os desafios novos que lhe surgirão ao longo dos próximos tempos.

De facto, impedido de produzir em termos agrícolas, incapaz de produzir industrialmente, e marcado em permanência pelo jugo implacável do desemprego, restam poucas saídas para que Portugal possa sustentar-se económica e financeiramente de forma condigna. O sector do turismo, principalmente num Concelho como o de Cascais, transformou-se no fulcro de todo o desenvolvimento, dele dependendo o comércio, os serviços e mesmo a gestão urbana do território.

Aldeias antigas como as da Charneca, Birre, Areia, Torre, Malveira da Serra, Janes, Zambujeiro, Atrozela, Alcabideche, Cabreiro, Murches, Livramento, Adroana, Pau Gordo, Galiza, Murtal, Caparide, Zambujal, Tires, Mato Cheirinhos, Trajouce, Conceição da Abóboda, Polima, Rana ou Rebelva, são apenas alguns exemplos de povoações que possuem ainda bem vivas as memórias de uma ruralidade que alicerçou toda a nossa História municipal. Possuem também, ainda com elevado potencial turístico que se encontra em risco eminente de desaparecer, restos únicos de habitações, fontes, chafarizes, portais, moinhos, fornos de pão e de cal, para além de um enorme manancial de lendas e de histórias locais, que noutros países e concelhos são atractivo turístico essencial e incontornável.

Em Cascais, perdidos nas faldas confusas de um alárvico e permanente apelo às novas construções, os resquícios existentes desta ruralidade perdida estão votados ao abandono e ao esquecimento. Exemplares únicos de casais saloios e rurais, com estruturas construtivas integráveis naquilo que é costume designar como “arquitectura chã”, vão sendo substituídos por prédios de concepção duvidosa e de assumida negação da tradicionalidade local.

Com o desaparecimento destes vestígios, e com a consequente fragilização da nossa Identidade Municipal, fica também posta em causa a vocação turística de Cascais e a possibilidade de voltarmos a ser o destino de excepção de outros tempos.

O turista moderno, culto e bem preparado, já não quer chegar a Cascais para passar cinco ou seis dias estirado ao sol. Hoje, numa lógica de bem-estar social e cultural, o ambiente envolvente, a tradicionalidade, o tipicismo, e a aprendizagem social, são partes importantes na promoção turística dos destinos europeus.

O Concelho de Cascais, apesar de todas as vicissitudes por que tem passado, possui as condições necessárias para encetar os esforços que tornarão possível este desiderato, sempre na certeza de que apostar na tradicionalidade daquilo que resta das nossas aldeias rurais, é garantir o futuro do turismo, do comércio e dos serviços, e o emprego e a estabilidade social dos munícipes cascalenses.

Nas aldeias rurais cascalenses, mais do que num sol e numa praia totalmente envolvidos em betão, reside grande parte do potencial que alicerçará a nossa vocação, oferecendo a todos um futuro socialmente saudável e economicamente sustentado.





segunda-feira

Raquel Henriques Expõe "Duas Faces" em Setúbal





São duas faces de uma mesma obra, misturando estilos, cores e temas que deixam perplexo quem a visitar... A primeira exposição individual de Raquel Henriques, a decorrer no Clube Militar de Oficiais de Setúbal, situado em plena Praça do Bocage,representa o culminar de um período de experiências plásticas, cromáticas e artísticas. A pintora, gerindo gostos e emoções, apresenta uma obra onde se vê e sente todo um percurso de vida rico em experiências, lugares e paisagens. A não perder!