sexta-feira

O Estoril na Implantação da República




por João Aníbal Henriques

Quando em 1910 o regime republicano foi implantado em Portugal, os Estoris, conheciam uma vivência social muito próxima daquela que caracterizava a vila de Cascais, local de eleição da Corte, desde 1870, quando D. Luís I a escolheu como estância de veraneio.

Este facto, aliado à necessidade de capital para alicerçar os grandes investimentos urbanos que acompanham a viragem do século, aproxima o Estoril de uma posição conservadora que, em termos teóricos, deveria garantir-lhe alguns problemas após o dia 5 de Outubro de 1910.

No entanto, e contrariando as expectativas, tal assim não aconteceu, uma vez que a implacabilidade das forças republicanas, que sem grandes esforços movimentaram as suas hostes em todo o concelho a partir do núcleo da Parede chefiado por Nunes da Mata, conseguiu modificar pacificamente o regime, obrigando a sociedade estorilense, embora periclitante face a um apoio que era fundamental para levar a efeito o projecto de transformar este novo local numa estância turística de qualidade que estivesse a par com aquilo que de melhor existia na Europa, a entender que o novo regime, pese embora as suas deficiências, se encontrava preparado para não abandonar as suas conquistas facilmente, facto que contribuiu decisivamente para que tendencialmente se assistisse à criação de um acordo pacífico que facilitou o processo de mudança.



A pacividade desta mudança, no que concerne à Igreja de Santo António do Estoril, garantiu-lhe uma segurança que contribuiu para que em 1919, quando se cria a Junta Paroquial que  posteriormente será entregue a Monsenhor António José Moita, o inventário do seu recheio se mantivesse incólume e intacto, como se comprova pelo documento notarial que sela a entrega de todo o espólio pelo Ministério dos Assuntos Internos à Irmandade de Santo António do Estoril. A riqueza de tudo o que ali existia, e a guarda zelosa que é promovida pela alta burguesia estorilense que, desde 1834 controlava o edifício e tudo o que havia pertencido ao anterior convento, garantem à futura Paróquia um fundo de reserva que lhe permite desenvolver a quase totalidade dos projectos pensados, criados e levados a efeito por Monsenhor Moita.

Sem contactos directos com as correntes laicas e progressistas mais radicais, que noutras partes do País promoveram uma enorme devastação no património da Igreja, o Estoril de 1910 conhece o novo regime de uma forma bastante indirecta, somente através dos representantes municipais que, da Parede e a mando das hierarquias superiores dos partidos, obrigam a um pacifismo que interessa a ambas as partes. Ao Estoril, porque dele dependia o futuro do empreendimento turístico; e à elite republicana, porque ela própria dependia das potencialidades que o Estoril, paradigmático no contexto Nacional, conseguisse manter enquanto pólo atractivo de investimentos e elemento gerador de riqueza para os cofres muito depauperados do Estado.



Este carácter de elite da Paróquia do Estoril, alicerçado no nascimento da Irmandade de Santo António, no dia 15 de Abril de 1916, no nº 24 da Rua Nova do Almada, onde se situava o escritório do muito conceituado e futuro Presidente desta organização, o Conselheiro Ernesto Driesel Schröter, é demonstrativa do valor político e social que já referimos e, sobretudo, do carisma que envolve Monsenhor António José Moita a quem vão entregar a recém criada Junta Paroquial. Do elenco constitutivo na nova Irmandade, detentora de uma personalidade jurídica para a qual muito contribuiu a luta do futuro prior do Estoril, constam nomes como o de Carlos Augusto Velez Caldeira Castel-Branco, vice-presidente em parceria com seu irmão João Arnello Velez Caldeia Castel-Branco; Carlos Eduardo Mahoney, secretário em parceira com José Vianna Ferreira Roquette; António José Vianna, rico proprietário do Estoril; António Vianna Ferreira Roquette; João Sabino Vianna; António dos Santos Jorge; João Jacinto Seabra; Thomas d’Aquino d’Almeida Garrett; Agostinho de Carvalho; Ernesto do Canto Andrade; e José Paulo da Câmara. O Presidente Ernesto Schröter, na época Presidente da Associação Comercial de Lisboa e administrador do Banco de Portugal é, como já referimos, considerado por Manuel Villaverde Cabral como um marco na viragem no regime republicano e na contra-revolução que ditará, em 1928, o início do Estado-Novo, devido à sua intervenção no Ministério das Finanças do Governo de João Franco.

É precisamente este importante e influente Presidente da Irmandade de Santo António do Estoril, apoiado nas suas lides políticas pelas mais altas esferas do catolicismo português, quem escolhe Monsenhor António José Moita para assumir a coordenação da nova paróquia, facto bastante demonstrativo das tendências e dos princípios defendidos pelo prior, bem como da convicção e dinamismo com que ele empreende a direcção dos seus projectos.




Não será assim por acaso que a Paróquia do Estoril, já de si diferente por tudo aquilo que apontámos, se mantêm até quase ao final do século com apenas três priores: Monsenhor António José Moita; O Cónego Manuel José de Sousa; e, por fim, o Padre Armindo, sempre mantendo uma dinâmica de intervenção da qual faz parte um interesse permanente pelo desenvolvimento de medidas de intervenção de carácter social que promovam uma existência concertada e dotada de qualidade de vida na localidade. 



quarta-feira

“Angola – As Ricas Donas” de Isabel Valadão




Os escolhos nos quais se compõe a História cruzam histórias com vidas e com os sonhos que dão corpo à própria existência da humanidade. É nesses espaços oblíquos que transpiram de realidade que se guardam as memórias dos sabores, dos aromas e das cores que serviram de cenário aos acontecimentos que marcaram o devir do Homem.

Mas a História, normalmente incapaz de se afastar do concreto, perde-se quase sempre destes laivos do Mundo real, acautelando-se nos factos inquestionáveis e esquecendo essa plêiade de cores que envolveram os homens e as mulheres que os viveram e os sentiram

Em “Angola – As Ricas Donas”, Isabel Valadão volta a mostrar que, com coragem e determinação, é possível enveredar por este caminho sinuoso que nos faz retroceder no tempo e no espaço. Mostra-nos uma Angola que combina os factos da História com as histórias que envolveram os factos, preenchendo com a emoção própria dos acontecimentos que nos enchem os sentidos o espaço vazio que nos afasta dos factos e da História real…

O carácter irracional da escravatura e do processo histórico que deu forma à sua abolição, cruza-se aqui com a história pessoal das ricas donas, dando vida a uma sociedade angolana marcada pelos anseios próprios de um espaço no qual se misturam gentes, projectos, sonhos e expectativas, e recriando um espectro de cores que nos devolve ao prazer de conhecer a História deste local.

Para quem conhece ou conheceu Angola, este novo romance histórico de Isabel Valadão permite-nos voltar àquele espaço tão especial. Para os outros, que não tiveram a sorte de experienciar Angola, o livro permite saltar sobre o pragmatismo da História para mergulhar apaixonadamente num universo real e profundamente dramático, apercebendo-se do requinte dos detalhes e de todos os pequenos pormenores que permitem sentir o seu carácter de excepção.

Reunir a História e as histórias é a arte com a qual Isabel Valadão tece esta sua nova obra. Numa excelência narrativa que prende desde a primeira página, sem se afastar um milímetro do rigor e da exigência que a documentação nos dá, “Angola – As Ricas Donas” é a obra de referência obrigatória que vai marcar o Verão literário em Portugal. 

terça-feira

As Casas de Cascais



por João Aníbal Henriques

A designação corrente de Casas de Veraneio, termo que se tornou comum no léxico dos Cascalenses desde há já muito tempo, surge em Cascais nos anos anteriores a 1870, dando origem a uma série de modificações que culminam na escolha desta povoação, a partir dessa data, como local de veraneio oficial do Rei e da corte, durante o período outonal.

A escolha de Cascais, mais do que devido aos méritos da terra, pois estes estiveram presentes desde o início dos tempos, deveu-se sobretudo à conjugação de factores culturais, como sejam o interesse pelo mar e pela oceanografia, da qual era grande adepto o Rei Dom Luís, com factores de índole patrimonial, uma vez que antes da chegada da corte já o Visconde da Luz lutara pela introdução nesta vila de uma série de alterações que visavam sobretudo a melhoria das condições de veraneio e de habitabilidade.





As habitações de génese rural e saloia, com uma forte componente arábico-muçulmana, que até essa altura abundavam em Cascais, são assim confrontadas com a necessidade de fornecimento de níveis superiores de conforto aos veraneantes lisboetas da alta aristocracia que aproveitavam a relativa proximidade da vila de Cascais face à capital, bem como a influência social conseguida pela progressiva aproximação à corte, para singrar no complicado panorama político português dessa época.

Uma das condicionantes mais importantes dessa situação, para além da conjugação de factores já apontada, foi ainda o estado físico do burgo Cascalense nesta segunda metade do século XIX. O marasmo edificativo dos últimos séculos, devido à pacatez que sempre caracteriza a vida de pescadores e de agricultores, promovera a continuidade tipológica das casas e das gentes. Uma população maioritariamente pobre, sem grandes recursos para além daqueles que retiraram da terra e do mar, aliados a uma posição geográfica estratégica no que concerne à defesa de Lisboa, e que trouxe a Cascais grande número de tropas que obviamente não necessitavam de construir casas e que habitavam nos aquartelamentos marítimos, fez com que o aglomerado urbano da vila se mantivesse sempre muito característico, facto ainda observável na parte denominada de centro histórico. A agravar ainda mais este marasmo, estava a pouca concentração populacional no Cascais desta época, facto que, inclusivamente, encontra eco na própria imagem que nos é dada da vila de então: «O cerne dessa imagem é, paradoxalmente, o esvaimento do próprio lugar humano - o nome Cascais evoca um sentimento cosmopolita da paisagem, a curva artificiosa da baía, o recorte das falésias que suportam o embate festivo das marés. Esse nome é quase só uma ponte entre a monotonia do quotidiano e o apelo, que se presume aventureiro, do mergulho e da viagem. Às portas de Lisboa, Cascais não é um lugar de entrada na capital mas um privilegiado ponto de partida. Em direcção à não urbe ou seja à natureza, entre o céu e o mar e espaço indefinido do algures». As casas, quase todas de pequeno porte e evidenciadoras de um conservadorismo devido à falta de necessidade de transformação chegam a 1755 com as referências tipológicas medievais praticamente intactas, sendo que o terramoto, mais do que criar a necessidade de novas construções, onde a novidade seria facilmente introduzida, veio criar a possibilidade, devido à morosidade das obras de reconstrução, de se transformar por completo o núcleo edificado da vila, após 1870, adaptando-o às necessidades da nova aristocracia veraneante.





Quando mencionamos o fluxo edificativo dessa época, derivado da chegada a Cascais de uma população que nada tem a ver com as origens do próprio espaço físico cascalense, encontramos também a chegada das novidades arquitectónicas e da arquitectura que designamos de veraneio. As antigas casas dos cascalenses de outros tempos, ou melhor, aquelas que resistiram minimamente à destruição protagonizada pelo grande terramoto de Lisboa, mantiveram-se assim na sua grande maioria sem transformações de maior, muito embora o desenrolar dos tempos, e principalmente as transformações políticas resultantes do fim do regime monárquico, tenham obrigado a que muitas delas assistissem ao acrescentamento de um andar superior que, no entanto, e no que diz respeito à sua classificação tipológica, manteve as características básicas das antigas habitações rurais com primeiro andar, tendo recebido ainda algumas alterações ao nível da decoração e dos acabamentos.

Se em Cascais a situação tende a tornar-se intermédia, no sentido em que as velhas habitações de génese rural e saloia se vão progressivamente misturando com as novas edificações aristocratas que ocupam os lugares abandonados pelas ruínas das construções arruinadas em 1755, no resto da zona litoral a situação é amplamente diversa. 

Povoações como o Monte Estoril e o Estoril, por exemplo, são vastos pinheirais desabitados, ou locais onde o carácter precário das edificações permite a sua demolição completa e a sua substituição por novas habitações. São João do Estoril, Cai-Água e Parede, por seu turno, são pequenas aldeias saloias, onde a precariedade das construções existentes, bem como o reduzido preço das terras, permitiu a sua venda aos recém-chegados veraneantes de largas posses, e a substituição patrimonial de grande parte das suas habitações pela nova tipologia de veraneio. 

Carcavelos, no entanto, apresenta ainda, pela sua origem muito marcada pela presença dos ingleses e pela exploração dos recursos vinícolas, um panorama ligeiramente diferenciado, uma vez que as antigas habitações rurais e saloias, devido à necessidade de mão-de-obra que era fornecida pelos seus habitantes para os trabalhos agrícolas, permitiu uma certa continuidade de ocupação, muito embora hoje seja já difícil distinguir as velhas habitações de Carcavelos completamente abandonadas e em ruínas, de velhos pardieiros e de currais para animais.

quinta-feira

O Casal do Clérigo e a Identidade Urbanística de Cascais




por João Aníbal Henriques

Situado a Este de Manique, na freguesia de São Domingos de Rana, o Casal do Clérigo é actualmente uma das mais pequenas localidades do concelho de Cascais. Com uma população pouco numerosa e envelhecida, esta povoação distingue-se ainda hoje pela sua riqueza natural, quer em termos paisagísticos, quer em termos de solo, quer mesmo no que aos recursos naturais diz respeito. Mais uma vez, e tal como em muitas pequenas aldeias do interior Este deste território municipal, o Casal do Clérigo é rico em pedra Calcária, que utilizou, trabalhou e exportou em grande quantidade.

Se do ponto de vista estratégico esta povoação tem pouco a oferecer, não possuindo significativas infra-estruturas, escolas igrejas, campos desportivos ou outros equipamentos, do ponto de vista patrimonial, é de grande quantidade de monumentos, possui no seu seio belíssimos exemplares de imóveis  de grande interesse histórico e arquitectónico, nomeadamente no que diz respeito às formas rurais destacando-se a presença de dois casais rurais com primeiro andar, um saloio, e de uma captação pública de água, enquadrada dentro de um sistema de aqueduto destinado às regas e à prática agrícola.

O casal saloio é um dos mais antigos vestígios da arquitectura rural do concelho de Cascais. Muito embora seja quase impossível determinar com exactidão a data precisa da sua construção, a volumetria simples que apresenta, bem como o seu característico enquadramento espacial, e a própria forma interna, aparentam a consolidação de uma sobreposição de ocupações, de onde se destaca, pela presença do pátio retirado e pelo recolhimento da sua colocação, os elementos básicos da presença muçulmana.





De facto, se nos ativermos aos elementos arquitectónicos, este casal saloio apresenta características próprias dificilmente verificáveis noutros exemplares análogos deste concelho. A estrutura de suporte do telhado, que ainda possui as velhas telhas de burro, bem como a aparelhagem da parede, apresentam sinais evidentes de um alonga ocupação, ao longo da qual muitas terão sido as transformações aplicadas ao imóvel. muito embora o seu estado de ruína contribua para a sua descaracterização, bem como para o o desagrado com que é vista a manutenção da existência deste espaço, o certo é que o casal saloio do Casal do Clérigo foi já uma peça importante da estrutura habitacional cascalense que, para além de indiciar o modo de vida agrícola do seu proprietário, aponta ainda para o registo das influências norte-africanas, desde meados do século VIII, e para a continuidade e manutenção das inovações trazidas desse espaço. A alvenaria grosseira das paredes, que possuem mais de meio metro de espessura, e a pequena janela aberta possivelmente em períodos mais recentes, indiciam a presença de um exemplar muito antigo da arquitectura popular cascalense.

O exemplar de casal rural que apresentamos indicado com o número 480, é um excelente exemplo daquilo que foi o verdadeiro Casal do Clérigo de outrora. O edifício, com andar duplo e exploração agrícola é um dos exemplos dos velhos casais agrícolas que existem em grande quantidade por todo o concelho, demonstrando, de forma evidente, a forma como as influências muçulmanas, implicaram na criação, manutenção e desenvolvimento das estruturas de pensamento cristãs medievais.






Em termos arquitectónicos, este casal rural do Casal do Clérigo apresenta uma estrutura sólida e quadrada, com paredes de espessura uma estrutura sólida e quadrada, com paredes de espessura superior a cinquenta centímetros e cantarias de rígidas de calcário. A fachada, com uma porta no andar inferior e uma janela de quatro partes no superior, denota a necessidade de solidez na construção inicial, indiciando ainda a forma segura e pouco dispendiosa com que se queria realizar esta habitação. Embora de alguma forma desenquadrada das formas tipológicas mais usuais no concelho de Cascais, pela colocação de espanta-fantasmas nos beirais do velho telhado, este casal rural apresenta elementos apensos que, só por si, são merecedores de especial atenção por parte das entidades competentes. A existência de um poço, onde se insere uma nora de metal, marca a diferença deste espaço, onde a vocação rural rural, mais ainda do que a própria fisionomia sóbria da edificação, se desenvolve em torno do corpo principal da propriedade. O sistema de armazenamento de água a partir do poço, num pequeno depósito colocado junto ao primeiro andar, indicia por seu turno a realização de obras de adaptação em período recente, sendo que, o actual estado de abandono, só pode ser resultado das normais contingências da vida, em que o ciclo do nascimento, desenvolvimento e morte, inadiável em todos os seres humanos, trás implicações difíceis de gerir no que à manutenção do património diz respeito.

O facto de se encontrar à venda, bem como a necessidade que existe de promover as raízes culturais das gentes que vivem nas imediações, parecem apontar este casal rural como uma das peças fundamentais para o desenvolvimento concertado do concelho, assumindo, pelas suas características e pelos elementos que lhe foram apensos, uma vocação pedagógica que dificilmente será substituível pelo mais capaz dos professores.





Fazendo conjunto com o exemplar anteriormente referido, encontramos no Casal do Clérigo outra edificação de grande valor patrimonial. Situado a poente da estrada que liga esta aldeia a Trajouce, o casal rural com primeiro andar, classificado com o número 497, está actualmente em utilização comercial como fábrica de mármore, atestando, como se referiu no início, a importância que a indústria extractiva da pedra assumiu no seio da economia das populações do interior do concelho de Cascais.

O exemplar em questão, possuidor de grandes analogias com o anteriormente citado, possui uma frontaria de dimensões idênticas às do anterior, existindo ainda a mesma disposição de porta e janela. Esta, muito embora possua as mesmas dimensões daquelas apresentadas pelo exemplar já referido, está dividida em três partes, indicando o factor de ser possivelmente mais recente do que a outra. Muito embora não possua as estruturas de espanta-fantasmas referidas anteriormente, este exemplar apresenta curiosos sinais da prévia existência de um telhado a meia altura, possivelmente um telheiro de apoio ao telhado principal de quatro águas que já não existe. A utilização como depósito e oficina de talhe de mármore, bem como a sua situação no seio de um bloco de construções de pouca qualidade arquitectónica e urbanística, cria aparentemente algumas dificuldades à utilização deste espaço. No entanto, e porque de recuperações pretende este trabalho falar, salientamos o facto de ser extremamente vantajoso para o concelho, do ponto de vista urbanístico e cultural, a requalificação destes espaços. Para tal, e porque a manutenção do funcionamento da oficina não pode, obviamente, ser posta em causa, necessário seria investir na reconversão total daquele espaço, de modo a integrar a faceta histórica e patrimonial, numa visão mais ampla de progresso, onde a memória do futuro, elemento chave da identidade Nacional, se possa desenvolver de forma harmoniosa, contribuindo para o desenvolvimento da qualidade de vida dos habitantes do Casal do Clérigo e de todos os habitantes e munícipes de Cascais.





O quarto elemento essencial para a compreensão daquilo que patrimonialmente é o Casal do Clérigo, é a captação pública de água. Este exemplar, integrado num espaço amplo de características agrícolas, apresenta uma estrutura simples datada de 1915, indiciando a manutenção da importância atribuída à prática agrícola até épocas muito recentes. Muito embora o seu estado de conservação não seja caótica, apresentando ainda quase intactos todos os componentes de origem, esta mãe-de-água do Casal do Clérigo necessita de uma intervenção de requalificação urgente. Os acessos, o estudo e a classificação deste espaço, segundo parâmetros de qualidade e de aproveitamento lúdico-cultural, transformaria, assim um espaço desaproveitado num centro de desenvolvimento urbano, tendo em conta, como é evidente, os interesses de Cascais e dos seus habitantes.

A estrutura de aqueduto que envolve este espaço, bem como os diversos tanques de armazenagem e distribuição da água, fazem deste lugar um espaço único de desenvolvimento pedagógico, servindo de exemplo para ensinar à população escolar das redondezas, a forma eficaz e simples como se desenrolava a vida nesta povoação.

A consolidação do espaço histórico do Casal do Clérigo, e a posterior integração dos dois casais rurais, do saloio e desta captação de água, poderiam servir de incentivo á requalificação global do interior do concelho, tendo em conta a forma caótica como se desenvolveram os bairros clandestinos nas redondezas, e o espaço verde e equipamento cultural de que vão necessitar as futuras gerações de cascalenses nascidos nesses espaços sem qualidade urbana.

A reconsolidação da memória, bem com o despertar da identidade são, foram e serão aspectos essenciais na manutenção ideológica do concelho de Cascais. O Casal do Clérigo, bem como a quase totalidade dos antigos núcleos urbanos deste município, decerto tomará parte na construção do novo concelho de Cascais.


quarta-feira

Fertilidade Romana no Espigão das Ruivas




por João Aníbal Henriques

Situado no extremo ocidental do concelho de Cascais, onde desde a Idade do ferro se praticam os desconhecidos para reconhecidos cultos da fertilidade, encontramos o sitio arqueológico do Espigão das Ruivas, num lugar que a tradição designa como Porto de Touro ou Guincho Velho.

A envolvência deste lugar, bastante isolado do resto do território e, por isso, propício ao desenvolvimento de práticas ritualizadas, aliado ao facto de existir nas suas imediações um importante curso de água denominado Rio de Touro, possuía excelentes condições para o desabrochar de relações íntimas com a divindade, facto comprovado pela existência de um templo neste sítio, e que foi repetidamente reutilizado durante várias épocas, desde a pré-história até à actualidade.

De acordo com os dados arqueológicos fornecidos pelas escavações ali efectuadas pela Associação Cultural de Cascais, dirigidas pelo arqueólogo Guilherme Cardoso, o Espigão das Ruivas terá sido um dos principais pontos estratégicos onde se efectuou o culto da fertilidade, ainda hoje bastante vicejante junto das comunidades humanas que habitam ou utilizam as redondezas.



O afastamento do sítio face aos principais aglomerados humanos, bem como a proximidade patente face ao Rio de Touro, carregado com a simbologia da força e da virilidade, transformou este local de culto num sítio onde as práticas efectuadas não eram muito compatíveis com a mentalidade oficial das diversas épocas, factor condicionante da transformação de uma prática comum a quase todas as civilizações, ou seja, a adoração dos astros com o intuito de incrementara a fertilidade da mulher, uma zona profundamente vincada por um misticismo crescente, o que contribuiu para a manutenção, difusão e desenvolvimento dessas actividades. A natural curiosidade humana face ao desconhecido, bem como as especulações que também sob uma forma natural se vão desenvolvendo transformou o Espigão das Ruivas num sítio onde os meros rituais de passagem característicos de quase todas as sociedades ditas primitivas, depressa se transformaram em ritos mágico-religiosos carregados de um misticismo que se explica de forma natural pelas contingências geográficas  e magnéticas  que o local possuía, mas também pelo encantamento e pelo sentido apelativo que estava inerente às próprias acções ali desempenhadas.



De facto, quer a denominação de lugar, onde as ruivas representam, segundo a tradição popular, as antigas ninfas que ali aguardavam o sopro divino que lhes permitia o desenvolvimento da carga sexual com que encantavam os homens, quer mesmo o nome que ainda hoje é atribuído ao curso de água ali existente, em que a relação com o Deus Romano da fertilidade e com o símbolo grego e cartaginês da força e da pujança está extraordinariamente bem patente, demonstram bastante bem a forma como a prática reiterada de um exercício que se afasta da vivência quotidiana pode influenciar as mentalidades, a etnografia e mesmo a vida política de uma comunidade. Essa influência, por seu turno, acaba por influir, sempre de forma positiva, no próprio património edificado, tal como se constata pela listagem patrimonial que apresentamos em anexo.

A chegada dos romanos à Península Ibérica, bem como o esforço por eles desenvolvido no sentido de promover a efectivação de um processo de aculturação do qual dependia a real ocupação deste lugar, acabaram por influir decisivamente no desenvolvimento da nova mentalidade peninsular. De facto, por serem conhecedores de novas técnicas de utilização e de rentabilização do solo, herdadas na sua quase totalidade daquelas que o antigo império grego havia repescado das civilizações antigas do médio oriente, os romanos que se instalaram em Cascais acabaram por transformar, de uma forma bastante radical, o modo de vida das populações indígenas, uma vez que estas últimas, na sua quase totalidade, eram compostas profissionalmente de agricultores e pescadores, razão pela qual se tornou bastante fácil o referido processo de aculturação.

Como se sabe, ambas estas actividades se encontravam bastante dependentes dos elementos naturais para o seu sucesso ou insucesso, sendo que, aqui como noutros locais, os habitantes que a elas se dedicam tendem a respeitar de sobremaneira as expressões do ambiente e do meio envolvente, atribuindo-lhes significação simbólica e religiosa. Não será por acaso, quanto mais não seja porque o acaso não existe, que os grupos humanos formados essencialmente por pescadores e lavradores, tal como acontecia em Cascais no período imediatamente anterior à chegada dos Romanos, são mais propícios ao desenvolvimento de rituais místicos e mágicos.



Não será estranho a nenhum Cascalense, segundo esta ordem de ideias, o encontrar de diversas capelas e ermidas dedicadas a figuras simbólicas do cristianismo católico, edificadas sobre vestígios mais ou menos palpáveis de templos ou espaços sagrados anteriores, nomeadamente atribuídos a cultos pagãos ou indígenas pré-históricos. A continuidade ritual de Cascais será assim, como não poderia deixar de ser, o fruto de uma série de influências recebidas dos mais variados pontos do globo, desde as antigas migrações norte-africanas, até às recentes comunidades afro-brasileiras que aqui desenvolvem as suas acções. A dependência da terra e do mar, mesmo na actualidade, favorece as ligações entre o Homem e Deus, uma vez que o processo de funcionamento da natureza, à partida com características absolutamente aleatórias, se torna incompreensível para o comum cidadão, que é obrigado a procurar noutros sítios as explicações para os bons e maus anos de colheitas e para as boas ou más pescarias.



Assim, as contribuições dadas pelos invasores itálicos para o conhecimento daquelas que eram as melhores formas de controlar a natureza depressa lhes granjeou um respeito e uma fidelidade que veio a permitir a sua vasta interferência nos rituais mágicos e religiosos praticados neste espaço. Só que, nesta como noutras áreas directamente relacionadas com a presença romana no actual território Cascalense, também os invasores superaram o bloqueio ideológico promovido anteriormente. Os recém-chegados ocupantes, como povo desenvolvido à custa de intrincados processos de aculturação promovidos em todo o território imperial, incentivados pela riqueza crescente que a aculturação e a necessidade de homogeneidade promovia, depressa perceberam que a manutenção física do território conquistado, para ser duradoura e para produzir os tão almejados frutos económicos pretendidos, passava mais depressa pelo encetamento de relações amigáveis com os indígenas, do que pela manutenção de uma posição de força militar que, como já outros casos o haviam demonstrado, possui um tempo de vigência muito curto, para além de se tornar bastante dispendioso.

A única solução compatível, no caso peninsular, onde as populações autóctones possuíam um grau de desenvolvimento difícil de definir, uma vez que as suas estruturas de hierarquização social, bem como as principais características de vivência em grupo, se encontravam providas de bases bastante sólidas, o que, para alguns investigadores poderá ser sinónimo de um grau bastante grande de desenvolvimento, foi a de promover o contacto amigável entre os dois grupos, de onde resultou a miscelânea cultural encontrada em Cascais pelo Prof. José da Encarnação. Para outros investigadores, a consequente procura crescente de ritos e rituais paranormais, bem como a existência de uma complicada base ideológica e religiosa, traduz-se na prática pela pouca aptidão comunal pelas matérias relacionadas com o conhecimento científico.




Só que, em nosso entender, esses investigadores esquecem as características que normalmente revestem essa proclamada cientificidade, de onde se destacam, pela observação do devir histórico das ciências, o carácter precário e provisório de todas as descobertas efectuadas em quase todas as áreas do saber. Por esse motivo, e porque o saber mágico-ritual das populações indígenas Cascalenses, no momento imediatamente anterior à chegada dos romanos, era de facto bastante complexo, para além de espelhar grandemente a necessidade de compreensão da natureza e dos seus fenómenos, será lícito pensar que o desenvolvimento comunitário inerente a este facto deverá ser tido em conta, sendo essa, afinal, a única chancela que veio a condicionar o esforço romano de proclamar e desenvolver uma política de respeito face às crenças e à cultura peninsular. É por este motivo, mais do que por qualquer outro, que a miscenização entre romanos e indígenas vai marcar definitivamente a vivência daquele que é actualmente o território concelhio de Cascais, facto que teve o seu seguimento lógico, em momentos seguintes, pela continuidade de utilização desta política de mistura que esteve patente não só durante o período visigótico, com também durante o Árabe e mesmo durante os anos de ouro dos Descobrimentos.

A comprovar esta hipótese e na sequência do trabalho epigráfico do Prof. José da Encarnação, já mencionado anteriormente, está a existência de diversas lápides romanas encontradas em Cascais onde é possível vislumbrar a mistura em questão. Na sua obra «Roteiro Epigráfico Romano de Cascais», embora com algumas naturais reticências, o autor segue precisamente esse cainho: «por conseguinte, parece ter confluído na identificação deste divindade influências orientais. Não será de rejeitar a hipótese de uma relacionação - através do radical ar - com a água corrente, na sequência do raciocínio, apresentado em 1975, a reflectir a importância da Ribeira de Manique para os agricultores de antanho. Ma essa divindade tem um cunho étnico, digamos assim, atendendo ao primeiro sobrenome: protegerá de modo especial os Aranti; já o segundo encomiástico, terá uma função diferente, a de infundir confiança - porque Áraco vencerá todos os obstáculos... [...] É a dedicante uma indígena romanizada: usa o gentilício decerto mais frequente no termo de Olísipo - Iulius - e, por isso, não hesita em o mencionar simplesmente em sigla.»



É óbvio, quando se menciona a vivência psíquica e sagrada de uma comunidade que viveu tão afastada do presente, que o carácter dos conhecimentos que agora se adquirem e se difundem podem ser simplesmente pistas que servirão de bases a novas hipóteses, razão pela qual, e fundamentando a já referida precariedade do conhecimento científico actual, o ilustre autor acaba por concluir mais à frente: «Uma interpretação sedutora, confesso; assaz desprovida de fundamentos válidos, não o nego; mas é nesse campo ainda movediço que, infelizmente, ainda nos movimentamos quando tentamos desvendar o mundo ainda tão hermético da teonímia indígena peninsular».



Portugal: Uma Pátria sem Povo




por João Aníbal Henriques

Num 10 de Junho marcado pelo desmaio do Presidente da República, Cavaco Silva, em se pretendia comemorar o Dia de Portugal e dos Portugueses, assistimos tristemente ao estado de vazio exemplar a que deixaram chegar Portugal.

A cerimónia comemorativa, preparada ao pormenor, foi pensada para a praça principal da cidade da Guarda na qual, em frente à extraordinária fachada da Sé, se conjugavam todas as condições cenográficas para tão importante ocasião.

Mas, estranhamente, destas cerimónias ficou arredado o público – leiam-se os Portugueses – que foram impedidos de aceder àquele espaço. Esta decisão, que nenhuma entidade oficial se dignou explicar, ficou naturalmente a dever-se ao medo da contestação popular. Afinal, no Dia de Portugal e dos Portugueses não é suposto ouvir-se a voz dos próprios…

E, com o desmaio de Cavaco a encher televisões e capas de jornais, fica reduzido ao sorriso cínico do sindicalista perverso perante a adversidade do Chefe de Estado, o estado a que conduziram Portugal.

Sem povo e sem Portugueses, este dia foi somente mais uma oportunidade para o confronto desonroso dos partidos e dos poderes que controlam Portugal, digladiando-se numa luta que coloca os seus interesses à frente dos interesses do País e gerando uma onda de insignificância que se traduz na abstenção eleitoral que todos bem conhecemos e num ódio crescente que ontem todos verificámos.

Dirão que é este o Portugal que temos. Não é verdade.

Este Portugal que encheu a comunicação social, do qual ficaram arredados os Portugueses, é um Portugal artificial, desinteressante, promíscuo, insignificante e reles. É o Portugal do rotativismo eleitoral em que vivemos e que eles teimam em continuar a chamar democracia. Um regime que não respeita os Portugueses, os seus sentimentos e as suas necessidades. Um regime fechado sobre si próprio e a sugar dia após dia, os últimos laivos de uma grandiosidade que a Pátria ainda tem mas que eles estão quase a conseguir matar.

O que ficou deste 10 de Junho?

Nada. Infelizmente para Portugal. 

segunda-feira

Etnografia Simbólica de Cascais




por João Aníbal Henriques

Ao longo da sua extensa História, foram inúmeros os factores directamente condicionantes do desenvolvimento político, económico, social e religioso de Cascais. As suas numerosas linhas de água, serpenteando entre inúmeros montes e elevações de ténue e acentuada inclinação, entrecortadas de maciços calcários repletos de grutas e reentrâncias, propiciaram e condicionaram o aparecimento de estruturas simbólicas que, por seu turno, contribuíram para o aparecimento de estruturas simbólicas que, por seu turno, contribuíram para o desenvolvimento de formas individualizáveis de comportamento.


Esta forma de estar na vida, que é tipicamente cascalense, é diferenciável daquela que se fez sentir em crise em Sintra, onde o clima, o ambiente, os recursos hidrícos e os acidentes geográficos, são substancialmente diferentes dos que existem em Cascais. É de todos conhecida, com toda a certeza, a diferença que existe, no seio da Serra de Sintra, entre a vertente soalheira cascalense, e a encosta sombria e húmida de sintra, factor que, quanto mais não seja, influencia a forma de construção das edificaçõesque naqueles sítios são levantadas. Por outro lado, no que ao concelho de Oeiras diz respeito, as principais diferenças que o afastam do de Cascais, dizem respeito à composição do solo.

No concelho vizinho, tal como também na zona mais oriental do município cascalense, a riqueza do solo propiciou o desenvolvimento de uma vivência rural significativa, traduzível, como poderão constatar pela listagem patrimonial que apresentamos em anexo, na faceta saloia que caracteriza quase todas as construções edificadas nesse espaço até meados deste século. No entanto, e para além das influências que se processam a nível prático, e de onde se salientam as já referidas referências às construções particulares, existem muitas outras formas  de condicionamento à vivência das populações.

A prova disto, como não poderia deixar de ser, está patente nos diversos vestígios etnográficos que ainda subsistem no seio das comunidades que habitam nestes três concelhos. Hábitos antigos, passados de geração em geração e que, de forma mais ou menos exacerbada, acabam por influir no modo de vida da população, seja em termos práticos nas actividades profissionais do quotidiano, quer mesmo em termos simbólicos, nas vivências religiosas e místicas da população. Não será por mero acaso, por exemplo, que a figura de Nossa Senhora dos Navegantes é muito venerada em Cascais, facto que só se compreende pela proximidade das excelentes águas da baía, bem como da arte da pesca que hoje ainda, infelizmente de uma forma muito efémera, continua a funcionar como atractivo turístico para o centro da vila. 

Da mesma forma, as diversas lendas que existem em torno de locais onde foram edificadas capelas e ermidas, muitas vezes praticamente inacessíveis ao comum cidadão, e bastante importantes em épocas de romarias e procissões, só podem ser explicadas se tivemos em conta a organização interna do simbólico das populações e que, como verificámos ao longo dos muitos meses em que durou este trabalho, se pode relacionar directamente com as próprias características físicas do território municipal.

De facto, se nos ativermos aos números concretos daquilo que é hoje a realidade patrimonial do concelho de Cascais ou, pelo menos, àquilo que normalmente é considerado como objecto de valor patrimonial, depressa perceberemos que cerca de noventa por cento desses artefactos se inserem em tabelas tipológicas relacionadas com o simbólico. 





As conhecidas sandálias de calcário encontradas nas grutas artificiais de Alapraia, os artefactos votivos desenterrados do Espigão das Ruivas, as muitas capelas e ermidas, até à maior parte das habitações burguesas de finais do século XIX construídas no Monte Estoril e em quase toda a faixa costeira, são apenas alguns exemplos de facetas patrimoniais relacionadas com esta questão, salientando-se aqui, como resultado da observação directa dos objectos ou edificações em questão, o facto de que o passar dos tempos, com a consequente mudança das mentalidades, não foi factor suficientemente condicionante para influenciar grandemente nem tão pouco transformado de forma significativa a forma de pensar dos cascalenses.

De facto, desde a época pré-histórica até à actualidade, muito embora se tenham modificado os cultos, é possível vislumbrar um factor que serviu de fim condutor e que sempre condicionou a vivência simbólica destas comunidades, não só em termos de ocupação de espaços sagrados, como consequência deste facto, encontrar vestígios nos rituais habituais de modos de agir que possuem as suas raízes envoltas nos mantos cerrados das brumas do tempo. A explicação para este facto, sempre dependente da perspectiva com que se encara o fenómeno e que, de alguma forma pode ser condicionada pela interpretação pessoal da realidade, encontrar-se-á provavelmente no próprio carácter físico da humanidade. 

Desde tempos remotos, quando mesmo os aspectos mais básicos da tecnologia se encontravam fora do alcance da mente humana, que o Homem tem necessidade de explicar as causas dos acontecimentos que ocorrem quotidianamente. No entanto, e como a maior parte deles o transcendem ou ultrapassam a sua capacidade de explicação, a consequência antropológica é a procura no Além do elemento-chave para o deslinde do mistério, factor observável em Cascais como em todos os pontos do globo onde a influência física do Homem se fez sentir. 

Neste espaço, incentivado pelas características do território, onde o estado do mar condicionava a actividade piscatória, e onde os bons e maus anos agrícolas acabavam por influenciar a produtividade da terra, essas características são naturalmente incentivadas, uma vez que a explicação da fertilidade, ou mesmo a natural procura do melhor, condicionam o aparecimento de formas de pensar que se vão interiorizando e transformando em mitos; esses mitos, por seu turno, vão ter de ser enquadrados dentro das actividades normais do grupo, e para tal, com a ajuda das estruturas e instituição próprias da organização social humana criam-se ritos e rituais, que propagavam e consolidavam a primitiva interpretação pessoal do facto em questão; como consequência do desenvolvimento destas formas de agir, e uma vez que a sedentarização de um grupo humano implica, logo à partida, a necessidade de incentivo da ligação entre o indivíduo e a terra, aparecem então as implicações directas no património, seja em termos de construções de carácter puramente sagrado, como são, por exemplo, as necrópoles e os templos, até aos mais básicos vestígios das habitações pessoais, onde se espelham muitos dos aspectos ligados a esta vivência religiosa.