por: João Aníbal Henriques
O panorama habitacional português, definitivamente marcado pela sua conotação mediterrânea, pode ser analisado através de diversos tipos de perspectivas.
Segundo alguns autores, sempre integrando o desenvolvimento urbano dos espaços do sul da Europa num modelo mais amplo onde o desenvolvimento tardio dos equilíbrios capitalistas se traduziu, de uma forma premente, no parque habitacional, a urbanização do actual território português, na sua faceta litoral, é marcado pela discrepância que existe entre as cidades modernas, ou seja, aquelas que resultam dos planos regularizadores que surgem a partir do início do século XX, e aquelas que, por serem anteriores, são vincadamente marcadas pela necessidade efectiva de se utilizarem as estratégias conhecidas, as técnicas comuns, e as capacidades de cada um para levar a cabo a construção do lar.
Se, numa perspectiva mais lata, o modelo regularizado permitiu a vastas zonas de Portugal terem-se tornado em eminentes locais possuidores de uma importância turística sem igual, como aconteceu, por exemplo, com a zona ribeirinha do Porto, com uma área muito vasta do litoral centro português, e sobretudo com a denominada Costa do Sol, numa perspectiva restrita, em que o valor da individualidade permite expressar verdadeiramente o cerne mental das populações, é nos espaços urbanos caóticos pré-regularização, e naqueles que, embora posteriores, não usufruíram dos projectos que lhes permitiriam seguir orientações e definições políticas coerentes, que encontramos hoje verdadeiramente a essência de um sentir individual que permite interpretar as casas como verdadeiras obras de arte.
Segundo Leala Leontidou (1), foi precisamente a inexistência de um Estado dotado de poder efectivo, devido sobretudo a uma falta de representatividade marcada pelo processo que o criou e que o dotou da força que lhe permitiu governar, que assegurou a existência, na faixa mediterrânea e principalmente em tornos dos mais antigos aglomerados populacionais, de vastos espaços em que a construção habitacional, cunhada pela relativa facilidade com que se empreendia a edificação de uma casa, traduz verdadeiramente a essência daqueles que tomaram a iniciativa de produzir e de intervir nestes novos espaços. As cidades e os espaços urbanizados que surgem a partir da segunda metade do século XIX, dignos representantes de uma estruturação cultural em que é possível notar as influências oriundas de sectores políticos, económicos e sociais, espécie de grandes mercados de produtos e de mão-de-obra barata, servem assim os interesses de uma capitalismo nascente, no qual reside a substância daquilo que mais tarde se designará como suburbano.
A grande influência europeia nas estruturas económicas dos países do sul, principalmente por parte da Inglaterra e de França, que trouxeram a Portugal muito daquilo que na época se considerava amiúde como sendo o cerne de tudo o que se considerava progresso, faz-se sentir sobretudo ao nível das acessibilidades e das regalias que delas resultam. O que isto quer dizer, em termos muito simples, é que a iluminação eléctrica, o macadame nas estradas, os telefones e telégrafos e, principalmente, as linhas férreas, dotaram o campo e as populações rurais, de incentivos e de meios que lhes permitiram atingir as cidades. Neste movimento, muito rápido e incisivo, reside precisamente a grande diferença entre a urbanização dita mediterrânea do final do século passado, e a sua homóloga europeia, uma vez que enquanto que a primeira ocorre sobretudo num período pré-industrial, pois a eclosão do progresso é marcado unicamente pela industrialização dos grandes estados europeus, a segunda ocorre somente após terem sido criadas nas cidades as géneses de uma vivência industrial que, como é evidente, afecta verdadeiramente o parque urbano desses espaços.
Nos países em processo de industrialização, em que as estruturas fabris foram acompanhando o desenvolvimento dos postos de trabalho, a migração entre os espaço rurais e os espaços urbanos, faz-se sem grande implicações efectivas na estruturação urbana de cariz natural das cidades. Aqui, ao contrário do que sucede noutros locais, a cidade vai-se adaptando à necessidade de receber os seus novos habitantes, sendo que as construções dos novos espaços, independentemente daqueles que os ao ocupar, são pensadas, criadas e construídas a partir das dinâmicas internas das próprias empresas. Nesta situação, mais do que a liberdade construtivas que encontramos a sul, desenvolve-se uma homogeneidade institucionalizadora, que influi largamente nos equilíbrios políticos e sociais que enformam a existência das próprias empresas. As cidades, complemento directo do espaço de trabalho, deverão urbanizar aqueles que para ali vêm habitar, possuindo assim uma série de características que poderíamos considerar como pedagógicas, uma vez que procuram ensinar e educar os trabalhadores a uma forma de vida a que não estão minimamente habituados.
Nos países mediterrâneos, onde a industrialização é sempre sentida como um factor externo, em que a inovação e a verdadeira produtividade depende quase em exclusivo dos capitais europeus, a nova cidade cria-se livremente pela mão daqueles que a procuram de uma forma cada vez mais incessante. Nestes espaço, em que a empresa não influi, o trabalhador, que muitas vezes não vem trabalhar na indústria que é ainda incipiente, o novo habitante tem grande facilidade em edificar a sua própria habitação, nela introduzindo elementos de ordem diversa, que passa pelas tecnologias utilizadas na sua construção e também pela decoração utilizada, formando assim um espaço que se molda a sai próprio. Nestes casos, ao contrário do que acontece no modelo europeu, os processos de educação funcionam de forma ambígua, uma vez que a orientação, muito pessoal e dinâmica, se debate permanentemente com a heterogeneidade que caracteriza cada um dos seus elementos.
Este processo de urbanização pré-industrial, ao contrário do que acontece no modelo inverso, surge com uma tendência muito grande para inverter as lógicas da cidade, ou seja, invertendo as tendência de escolha e aquilo que naturalmente deveria ser o devir histórico do espaço.
O primeiro problema que se levanta, fundamentalmente imiscuído de todas as problemáticas que envolveram estes espaço no período imediatamente subsequente ao desenvolvimento das doutrinas liberalizantes que se institucionalizaram após a Revolução Francesa, é o da propriedade. Esta, também marcando a diferença face à industrializada Inglaterra e à muito rica França, era aqui fraccionada até atingir unidades de tal forma pequenas que se tornava impossível dividi-las mais. Foi este parcelamento, principalmente das grandes quintas e herdades que envolviam o espaço urbano propriamente dito, que possibilitou o êxodo rural, uma vez que os terrenos, pela sua situação periférica e sobretudo pela desvalorização resultante da delapidação das unidades, que obviamente trazia implicações, por exemplo, ao nível da possibilidade de aceder à água e aos acessos condignos, que tornou acessível a cidade aos que habitavam no campo. Estes, como é evidente, adquirindo ou arrendando os terrenos diminutos que lhes eram acessíveis, formaram os primeiros subúrbios, onde a heterogeneidade, vincada cada vez mais pelas diferenças culturais de cada um, se vai progressivamente esbatendo até de atingir uma certa semelhança nos processos utilizados para construir e para fundamentar os novos espaços.
Nos espaço pré-industriais, onde a segurança social e os apoios estatais eram ainda utopias que ninguém pensava ser possível atingir, a subsistência em minifúndios, a partir de uma auto-suficiência que as técnicas agrícolas e hortícolas continuavam a assegurar, vai transformar a cidade verdadeira num cada vez mais assumido mercado, onde o habitante do subúrbio encontra espaço para vender a sua parca produção, adquirindo os bens que o impeliram a procurar a fuga ao campo. Estes habitantes não possuem laços de relação com a cidade, uma vez que não encontravam aí qualquer espécie de empregos ou de segurança. As suas relações, após terem sido eclipsados os laços que o uniam às tradições milenares de âmbito campestre, são assim vincados a partir de uma reconstrução cultural que se faz fora da cidade, junto ao espaço habitacional, onde, para além do espaço e da acessibilidade, o novo citadino vai encontrar toda a liberdade que lhe permite recriar, com arte e com fundamentos culturais que misturam o campo com toda a apetecível novidade que traduz a essência da urbe, um novo espaço ou, para utilizar uma terminologia que esteja compatível com a situação actual nestas zonas, uma nova cidade.
Segundo Leontidou, a principal característica desta urbanização mediterrânea é o facto de ser informal, ou seja, de se processar com diversos ritmos muito próprio e sem qualquer espécie de homogeneidade, criando vastas empatias e equilíbrios que, sendo muito próprios e pessoais, não permitem estudar com o aprofundamento suficiente, a globalidade destes aglomerados habitacionais.
O carácter informal, mais do que resultante das tendências culturais, políticas ou legais dos espaço onde se inserem, traduz realidades económicos e educacionais. Os novos habitantes, que utilizam as suas casas como forma de efectivarem um poder que a cidade não conseguiu fornecer-lhes, são cada vez mais constrangidos a educarem-se mutuamente, criando paradigmas sociais que lhes permitam usufruir da cidadania que perderam quando abandonaram o campo, e que a grande cidade lhes não conseguiu conferir. A casa, com o espaço envolvente, geralmente transformado numa horta ou num pequeno quintal, é assim um instrumento de sociabilização, no qual reside, na maior parte dos casos, o elo de ligação entre este habitante e os seus vizinhos. A forma, a cor, a decoração, as espécies vegetais que cultiva ou planta, ou mesmo a vedação e as técnicas utilizadas para construir o espaço, são na grande maioria dos casos, instrumentos de afirmação, que permitem ao indivíduo recriar a sua personalidade e criar. É precisamente aqui, no sentido artístico que envolve o processo de criação, que reside a análise que procuraremos promover às habitações do concelho de Cascais.
Na península de Lisboa, principalmente na zona situada a poente da capital, a urbanização dos novos espaços, com especial incidência naqueles que surgem desde o final do século XVIII, segue um modelos de concretização muito próximo daquele que nos transmite a urbanista mencionada. Os grandes aglomerados históricos, recebendo no seu seio uma população descaracterizada que ali procura encontrar os benefícios de um progresso que só faz sentido nas cidades, são assim adaptados às novas existências, adquirindo um conteúdo formal que os aproxima dos modelos paradigmáticos das grandes cidades europeias. Em termos decorativos, com um amplo vínculo de âmbito educacional, as principais bases que norteiam o processo construtivo prendem-se assim com esta necessidade de recriar laços de cidadania que se perderam no momento da chegada ao novo espaço. Por outro lado, sempre com um cunho muito particular na efectiva vinculação que os novos habitantes vão sentindo face ao espaço em questão, é importante assegurar que se vão construindo novos equilíbrios sociais que, para serem verdadeiramente representativos dos valores que procuram transmitir àqueles que por ali se vão instalando, têm de fazer uso de uma vastidão de princípios, de ideais, de valores culturais, políticos, económicos e mesmo religiosos que, nalguns casos, e numa perspectiva imediatista, se afiguram como verdadeiramente desadequados e incompatíveis. É precisamente da reunião desta diversidade de saber, que numa perspectiva antropológica faz crescer uma riqueza cultural que poderíamos até considerar sumptuária, que nasce a essência decorativa da urbanidade cascalense, a qual envolve, de uma forma permanente e em permanência, todos os actos e todas as decisões dos que para ali vão habitar.
Em termos políticos, ou seja, em termos daquilo que eram as decisões tomadas em relação ao nascimento e à consolidação destes espaços, há pouco a dizer, uma vez que o Estado, centralizado e forte, dava muito pouca liberdade aos órgãos locais para decidirem e para organizarem o seu espaço. A consciência dos construtores, bem como de todos aqueles que para ali, através do arrendamento, vinham viver, era unicamente a sensibilidade do ser capaz de possuir uma habitação que estivesse de acordo com as perspectivas de vida de todos eles. A precariedade do emprego, conjugada com as crises cíclicas que afectavam amiúde a vivência dos países industrializados, que afectavam indirecta mas com muito mais fulgor ainda a existência daqueles que delas dependiam, obrigava estes novos habitantes a encontrar espaços que, a preços módicos e ajudando a evitar o pagamento incomportável de rendas, lhes permitissem usufruir das regalias da sua nova vida. Enquanto que nos países mais desenvolvidos, o próprio aluguer urbano servia de forma perene de controle das massas operárias por parte dos empresários, que construíam as casas que eram pagas como parte integrante do salário semanal ou mensal daqueles que delas usufruíam, nos países pré-industrializados, como era o caso de Portugal, o arrendamento derivava sempre da capacidade empreendedora dos que iam conseguindo possuir as suas casas e os seus terrenos.
Em espaços como o Monte Estoril, por exemplo, encontramos exemplos significativos da forma como esta existência urbana, marcada pelo binómio que se caracteriza em permanência pelo contraste entre a existência burguesa e a aristocracia tradicional, acaba por influir na criação de uma nova identidade local, na qual o próprio carácter cénico da paisagem, do vestuário e da decoração das diversas casas, garante a manutenção das prerrogativas que mantêm no seu lugar cada uma das partes que compõem a nova totalidade social.
No local actualmente designado como ‘As Cocheiras do Monte Estoril’, encontramos um exemplo paradigmático dessa situação. Com uma colocação geográfica extraordinariamente boa, situada muito próximo da zona mais nobre daquela que foi na época a mais nobre das nobres localidades da Costa do Sol, o pequeno complexo das cocheiras possui características cénicas que permitem entendê-lo como uma espécie de tradução da sua singularidade face à totalidade do espaço envolvente. Muito próxima dos outros, de que depende para sobreviver, a comunidade de assalariados que habita nas cocheiras possui um espaço próprio que, em termos do seu enquadramento estrutural, se alicerça em princípios estéticos que lhe garantem não se confundir com as partes restantes da paisagem urbana. Construídas de raiz para albergar os empregados da Companhia do Monte Estoril, principalmente os operários que trabalharam na construção da linha férrea que ligava o Monte Estoril a Pedrouços, as cocheiras possuem no seu andar térreo uma série de espaços para guardar animais. Com todo o terreno vago que envolve o Monte Estoril, no qual facilmente se poderiam construir as instalações necessárias à colocação dos animais, a Companhia opta por colocá-los em conjunto com os seus operários, demonstrando assim que a centralidade do espaço construído para esse efeito, contrariamente àquilo que seria de esperar, não é definidora de uma qualidade e de uma excelência na sua existência, mas sim de uma certa discriminação, essencial para que se possa alicerçar a educabilidade que deveria enformar a criação da nova sociedade estorilense.
Em termos estéticos, a decoração utilizada para a concretização destas ideias, misto de beleza que deveria envolver uma zona nobre por excelência, e de uma certa particularidade que garantisse a satisfação da diferença, alicerça-se na utilização de uma cor diferente daquela que era utilizada para a generalidade das restantes habitações daquele novo espaço. Assim, enquanto que o ideal estético da denominada ‘Casa Portuguesa’, com a sua luminosidade alva nas paredes, envolvida nos pormenores rocambolescos de uma exuberância que dota aquele espaço de características que o vão transformando numa zona única em todo o panorama turístico português, assenta na pintura em tinta branca, fazendo recriar os laços existentes entre a nova vivência e aquilo que se pretendia consubstanciar como a existência tradicional do País, as cocheiras adoptam uma luminosidade opaca, baseada nos tons amarelados, ao qual se apensam alguns elementos decorativos em madeira. A utilização da cor, marcando a distinção do espaço servil face ao espaço nobre da localidade, e a decoração em madeira, marcando uma aproximação aos ideais estéticos de índole romântica que garantiam a dependência de ambos os espaços, é assim fundamento de uma formalização objectiva do património edificado enquanto elemento gerador de educação na nova comunidade.
Em contrapartida, em espaços onde o vínculo se faz pela negativa, ou seja, em espaços em que o poder instituído não intervém directamente, a decoração patenteada pelas casas faz nascer uma individualidade que está, de uma forma eminente, enquadrada na vivência artística.
Um dos exemplos mais paradigmáticos desta situação, tal como se pode observar pela tabela que apresentamos em anexo, é o da Parede, ou seja, uma localidade nascida deste útero de periferia, marcada desde sempre pela negligência ao nível das instituições municipais e Nacionais, e profundamente constrangida pela necessidade de se auto-definir ao nível do seu carácter comunitário. Nascida de uma situação semelhante àquela que apontámos genericamente como enquadrável nos modelos evolutivos mediterrâneos, a Parede até no seu topónimo deixa antever uma necessidade de afirmação que resulta do processo histórico da sua concretização. Muito embora só existe, em termos institucionais desde o início do século XX, a localidade da parede, hoje sede de Freguesia resulta teoricamente da evolução de uma existência que havia sido marcada pela antiga aldeia de Cai-Água e essa, por seu turno, marcada também pela existência de diversas comunidades pré-históricas que utilizaram o seu espaço. Em termos práticos, no entanto, e tal como o comprova o levantamento patrimonial que apresentamos agora publicamente, não existem praticamente laços de união entre as duas realidades, uma vez que, a moderna Parede, de cariz republicano e revolucionário, e assumidamente a mais proletária de todas as localidades do concelho de Cascais, é uma realidade que resulta da chegada dos novos habitantes pré-industriais que para ali vão trazer um sentimento de suburbanidade que a antiga aldeia rural não conhecia. Os paredenses, hoje entendidos como parte integrante, a todos os níveis da vivência cascalense, foram, durante várias décadas, o resultado da existência de uma comunidade proletária em que o estabelecimento urbano se alicerçou nos princípios, nas orientações e nas motivações que anteriormente mencionámos.
Em termos físicos, com base na divisão dos terrenos que faziam parte das grandes quintas que o Comandante Nunes da mata ali adquiriu para mandar edificar, a preços módicos e acessíveis, uma nova povoação que correspondesse às necessidades efectivas da classe trabalhadora que não suportava habitar na cidade de Lisboa, onde os preços das acessibilidades eram pagos com valores que eles não podiam aguentar, a Parede do século XX conhece a auto-construção como forma eminente de se urbanizar. As velhas azenhas e moinhos, colocados estrategicamente para receberem sem encargos de maior os produtos agrícolas do interior do território, e para poderem enviar apara Lisboa as farinhas após terem sido manufacturadas, deixaram de fazer sentido num espaço onde todos eram iguais e onde todos sabiam fazer o mesmo. Os operários que se instalaram na Parede, oriundos de muitas partes do país, e observando o mesmo ritual quotidiano de utilização do comboio para chegar à capital, tornaram obsoleta a economia tradicional deste espaço, facto que obrigou a que se destruísse quase todo o parque habitacional antigo e tradicional, que hoje praticamente é impossível observar no interior da localidade da Parede, e o substituísse pelas novas casas de cariz operário e burguês, que seguiram quase à risca, as orientações apontadas por Leontidou.
Estas novas edificações, longe de seguirem os modelos desde sempre utilizados pela tradicionalidade local, impuseram-se através da diferença, fazendo apelo a formulações estéticas e decorativas que permitiam a utilização de muitas das bases culturais que traziam das suas terras de origem, e que eram sistematicamente adaptados à nova vivência de conjunto que aqui procuravam estabelecer. Vivendas como a do ‘Gato’, bastante próxima do centro da urbanidade paredense, são exemplos paradigmáticos da forma como a utilização decorativa de novas formulações, acaba por influir na capacidade de efectivarem, através do cunho artístico pessoal dos seus criadores, uma afirmação pessoal e comunitária da qual depende o próprio nascimento da povoação.
De facto, se nos ativermos às necessidades culturais da população, depressa compreenderemos a importância que assume a possibilidade de, através da decoração das suas casas, ganharem uma forma de afirmação que está em consonância com tudo aquilo que é o espírito que enforma o nascimento da institucionalidade e do poder da própria povoação. As casas, espelho muito fiel do sentir cultural de cada um dos seus habitantes, são, no seu conjunto um misto da harmonia que resulta da afirmação pessoal dos diferentes tipos de comunidade que ali habitam, com a heterogeneidade que marca a diferença que entre eles, de uma forma permanente e quase imutável, se vai efectivando.
A nível da estrutura urbana, ou seja, da forma como se dispõem os edifícios no seio da complexidade real que resulta da necessidade de se conseguir, na teia emaranhada de edifícios que compõem as diversas ruas marcadas pela construção não-planificada, discernir linhas orientadoras que promovam o entendimento sobre as bases culturais que a enformam, é possível perceber que existe uma competição básica, de âmbito individual, dela resultando a grande maioria das orientações que agregam as casas, a sua decoração, e os próprios quarteirões onde se inserem. Desta forma, ao nível da visibilidade e do ordenamento do território, no seio de todas as incongruências que caracterizam a falta de plano e de previsão urbana, é possível encontrar linhas mestras, em que a colocação espacial de cada edifício, mais do que propriamente a sua localização paisagística ou as acessibilidades, é definidora dos fundamentos que regem as relações sociais. Esta situação, assaz curiosa se entendermos que no seio destas povoações a visibilidade da casa, muitas vezes construída num interstício sem quaisquer condições, é mais significante do que a própria qualidade da sua construção ou as vistas que dela se fruem, permite-nos ainda perceber qual é, verdadeiramente, a importância que a imagem e, logo, a própria decoração, exercem sobre aqueles que a constróem.
Como o comprovam os diversos casos que mencionamos em anexo, cada uma das casas construídas arbitrariamente pelos proprietários dos terrenos, sem terem de se reger por quaisquer regras fixas ou planos directores que enformassem as suas características, é um repositório de âmbito psicológico de tudo aquilo que são as personalidades dos que as constróem. Assume sempre maior importância neste contexto aquilo que a casa parece ser, através dos elementos decorativos que coloca na sua fachada, do que propriamente aquilo que ela verdadeiramente é. Os espaços em questão, muitos deles tão afastados socialmente entre si que é difícil entender a relação existente, apresentam características únicas ao nível da singularidade.
Mesmo nos casos em que existe alguma partilha, como acontece, por exemplo, nos bairros ditos ‘alentejanos’ da zona norte de São Domingos de Rana, ela é baseada na necessidade de afirmação pessoal. Nestes casos, embora utilizando um plano comum para a construção das casas, uma vez que um conjunto muito vasto de famílias adquiria de comum acordo um terreno onde, com custos muito mais reduzidos, construía as dezenas de casas de famílias que tinham obrigatoriamente de ser exteriormente semelhantes, cada casa é um caso, adoptando formulações estéticas que permitem asseverar que a decoração que lhes está apensa, é definidora de uma singularidade a que todos aspiram. As fachadas brancas, incólumes na alvura da sua construção, após terem recebido no seu seio a família que transforma aquele edifício num lar, imediatamente lhe desvirtua a imagem, de modo a singularizar a habitação, dotando-a assim de uma identidade que permita identificar quem lá habita.
Em termos sociológicos é comum fazer assimilar esta busca da identidade a uma espécie de necessidade natural de ostentação das condições de vida melhoradas que se foram conseguindo adquirir. Neste caso específico, mediante a observação sistemática do património edificado cascalense, tal parece não fazer sentido, uma vez que, por exemplo no caso do Bairro dos Sete Castelos, situado muito perto da Quinta da Torre da Aguilha, encontramos cerca de três dezenas de habitações, estruturalmente semelhantes mas que, à primeira vista, parecem estar situadas a níveis de existência completamente diversos. Estas casas, pertencentes a um mesmo grupo de operários que trabalhou nas obras de grande vulto que ocorreram em meados do século na cidade de Lisboa, para além de terem sido construídas no mesmo período, utilizando os mesmos materiais e as mesmas técnicas, apresentam características que hoje, pese embora o facto de a generalidade dos seus habitantes possuir uma base económica e cultural semelhante, se torna difícil perceber a sua identidade comum. Como é evidente, e facilmente entendível através de uma observação sistemática daquilo que se passa neste espaço, não foi a necessidade de ostentação que levou à modificação decorativa das casas. Essa observação, feita de um modo constante ao longo dos anos, foi suportada pelo próprio evoluir das estruturas mentais da comunidade que, de uma forma equilibrada entre os interesses individuais de cada um e as necessidades colectivas do grupo, foi conseguindo levar a bom termo a inclusão de elementos que definiram e orientaram a edificação face às restantes.
O valor da casa, mais do que dependente daquilo que ela é, ou mesmo daquilo que ela representa, deriva assim daquilo em que ela se transforma com os elementos que decorativamente lhe auguram a possibilidade de ela se afirmar face às restantes, fazendo com que o seu proprietário se afirma também. Nalgumas situações paradigmáticas, como acontece por exemplo, também na Parede, com a denominada ‘Casa das Pedras’, pertença do eminente biólogo Azevedo Gomes, o carácter decorativo do edifício não tem tão pouco nada a haver com as suas características interiores. As pedras que compõem a fachada, decorando-a, mais não são do que um símbolo da magnificência do edifício face aos restantes, uma vez que lá dentro, num espaço onde seria propícia a excentricidade que o exterior patenteia, nem sequer se faz sentir o mínimo sinal da rudeza da sua face externa. Neste caso específico, em que a decoração se assume como um elemento fundamental na estrutura arquitectónica da edificação, esta é pura e simplesmente direccionada para os outros, uma vez que aqueles que nela habitam, e que se responsabilizam pela escolha dos elementos que compõem a fachada, escolheram também para o seu conforto pessoal e para a interioridade do seu lar, qualquer coisa diferente, pois ali já não chegam os olhares do mundo.