por João Aníbal Henriques
Por detrás das lendas, muitas
vezes escondendo sub-repticiamente os laivos maiores da identidade de um local,
estão factos da História que marcam de forma efectiva o sentimento de cidadania
e promovem a coesão que é determinante para que as comunidades se imponham
equilibradas e saudáveis a bem de todos os que dela fazem parte integrante.
É o que acontece em
Linda-a-Pastora, no Concelho de Oeiras, onde a memória colectiva define a
Senhora da Rocha como plataforma potenciadora daquele agregado populacional, unido
sempre em torno da loca (ou gruta) onde o sagrado e o profano se cruzam a
partir de uma devoção sentida à imagem maior da Virgem Maria no seu orago
associado aos mistérios da conceição.
Reza a lenda que em 1822, num
mítico dia 28 de Maio, um grupo de crianças locais deambulava pelos campos
junto à Ribeira do Jamor em busca de coelhos que lhes fugiam através dos matos
que enchiam este local. Um dos animais, despertando a cobiça dos fedelhos, terá
ousadamente entrado numa lura de difícil acesso e os rapazes, acicatados pelo
desejo de o caçar, entraram atrás dele, desviando os arbustos e os silvados.
Para sua grande surpresa, porque
rapidamente se viram envolvidos pelo negrume da escuridão, perceberam que
estavam dentro de uma gruta desconhecida e que à sua volta, num registo de
terror que lhes potenciava o medo, um grande conjunto de ossadas humanas os
contemplava da lonjura das suas vidas ancestrais.
Incrédulos com o achado, e
interpretando os ossos que viam como uma alucinação, resolveram trazer alguns
para a luz do dia e levaram-nos para as suas casas contando a sua aventura aos
aldeãos. Como ninguém acreditou neles, organizou-se então uma nova visita ao
espaço com a presença dos adultos que viviam nesse lugar e, para grande
surpresa de todos, não só confirmaram o relato das crianças como também
encontraram, singelamente perdida no meio das ossadas, uma pequeníssima imagem
de Nossa Senhora feita em barro, que imediatamente interpretaram como um sinal
da presença divina naquele lugar especial.
Ajoelhando-se à sua frente em
profunda devoção, os fiéis que encontraram a imagem da Virgem Maria deparam-se
com novo mistério. Repentinamente, sem que ninguém desse conta disso, a imagem
desaparece da sua vista, como se tivesse fugido deles e desaparecesse de forma
inesperada. Alvoroçados, procurando perceber o que aconteceu, os devotos acabam
por encontrar a imagem pousada numa oliveira situada junto à porta da velha
gruta oeirense, interpretando este sinal como sendo a Providência Divina a
comunicar com eles.
O sucesso desta história, com
ecos insuspeitos que se estenderam até à capital, levaram o Rei Dom João VI a
interessar-se pelo acontecido. Procurando controlar o fervor popular e ao mesmo
tempo tentando recentrar o potencial da devoção na Sé de Lisboa, o monarca
manda transferir a imagem para a capital. Temendo a sublevação popular, são
enviadas tropas para acompanhar o processo mas a população, provavelmente
condicionada pela presença sagrada que emanava da imagem, manteve a compostura
e acompanhou o andar ao longo de todo o percurso.
Precisamente 71 anos depois da
aparição da imagem, agora no mesmo dia 28 de Maio, mas do ano de 1893,
conclui-se enfim a obra de construção de uma capela no local onde outrora
estava a oliveira onde a imagem reapareceu. Com a presença da Rainha Dona
Amélia, que promoveu uma devoção que havia marcado anteriormente os Reis Dom
Miguel, Dom Pedro V e Dom Luís I, a consagração do espaço acontece com toda a
pompa e circunstância marcando o regresso da singela imagem de barro a terras de
Oeiras.
A devoção simbólica a Nossa
Senhora da Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal, é um dos mais importantes
apoios da portugalidade. Transversal a todo o território, a todas as eras da
História e a todas as classes sociais e culturais de Portugal, esta ligação
perene entre os portugueses e este dogma tardio da Igreja Católica é
verdadeiramente ancestral, provavelmente antecedendo historicamente o próprio
nascimento real da Mãe de Jesus Cristo.
Os cultos ancestrais da
portugalidade, eivados de um apelo permanente à natureza e ao mito da Deusa-Mãe
adaptaram-se escatologicamente à ideia do desejado, mito que promove o apelo
imaginário a um quadro de futuro que mitiga as maleitas do presente e transfere
divinamente para a Mãe Primordial o ónus do acompanhamento e protecção pela
qual sempre se ansiou em Portugal.
Maria, a Virgem Santíssima que
alquimicamente transmuta a matéria, conjugando os sonhos da comunidade com as
oportunidades que o real vai oferecendo, é devoção profundamente entranhada na
Portugalidade. É ela quem determina a construção da escada que salvificamente
transporta os seres viventes até ao Céu, sendo por isso mesmo a grande
padroeira das causas maiores que se prendem com as angústias determinadas pela
existência.
A Senhora da Conceição, que na
gruta da Rocha, junto à Ribeira do Jamor, foi sempre a guardiã dos restos
humanos dos muitos que por ali viveram as suas vidas ao longo dos séculos,
oferece uma réstea de luz para iluminar a escuridão que esta nossa existência
fugaz sempre acarreta. Do fundo da caverna, espaço privilegiado para a
introspecção e para o pensamento, a Mãe Celeste prepara o neófito para o
regresso à luz do Sol e à terra. Até porque é lá dentro, naquele útero
primordial onde a vida se estabelece, que o espírito se prepara para o desafio
enorme que representa o seu regresso à terra.
Em Linda-a-Pastora, envolvida
pelo carácter idílico de um espaço onde naturalmente a água do Jamor e o verde
da floresta original se conjugavam para criar um cenário úbere e pleno de
fertilidade, é nesta ponte que se faz entre as crenças e a Fé da comunidade e
os desafios próprios do quotidiano e da vida, que se estebelecem os laços
essenciais de um espírito de cidadania participada, coerente e significante.
Nossa Senhora da Rocha foi, desde
a sua origem, fenómeno de Fé. Movimentou as gentes dos arredores e foi pedra
angular na criação da matriz identitária de Linda-a-Pastora e do Município de
Oeiras.