por João Aníbal Henriques
Agitador de massas, de consciências e de paradigmas, Joaquim
António Pereira Baraona, nascido em Ourique, no Alentejo, no ano de 1930 e
falecido em Cascais em 2018, foi uma das figuras mais marcantes e controversas
da História recente de Portugal.
Enorme, na sua capacidade de compreender o Mundo e os Homens
e de se entregar sem pejo na luta convicta pela justiça e pelos valores que
vivia de forma justificante e plena, era simultaneamente humilde na relação com
todos aqueles que ele sabia que viviam de acordo com os princípios que sempre
nortearam a sua existência.
O Comendador Joaquim Baraona nunca deixou ninguém indiferente
nos locais por onde passou. E, gerando de forma desconexa uma multiplicidade de
amores e ódios que determinaram a sua passagem pela Terra, deixou atrás de si
um rasto pujante e pleno de significado, que se multiplica e multiplicará
durante séculos de forma exponencial na medida em que muito do que fez e
defendeu teve, tem e terá repercussões duradouras na vida de muita gente e que
se estenderá por várias gerações.
Logo desde muito jovem, quando na Vila de Ourique aprendia as
primeiras letras, Joaquim Baraona deixou nota da sua diferença.
Oriundo de uma família ligada ao pequeno comércio local e à
exploração agrícola das terras, empenhou-se com muito sucesso na generalidade
das poucas iniciativas de âmbito social que existiam naquela região nessa
altura. Da Mocidade Portuguesa à Banda de Música Local, Baraona foi sempre
figura de destaque nos locais por onde passou. E tal facto, contrariamente ao
que dita a mediocridade da História, não resultou de grandes feitos e de
enormes iniciativas, até porque a sua tenra idade nessa época impediria tal
forma de estar e esse alcance normativo. Veio precisamente do facto de ele ser
figura diferente no devir social e anímico da sua terra, tendo assim construído
e reforçado a personalidade que o caracterizou até ao final da sua vida.
Sempre preocupado com o bem-estar de quem o rodeava, e com a
sua capacidade de contribuir para o sustento dos seus, logo desde muito jovem
foi um empreendedor nato, tendo trabalhado arduamente na criação de riqueza em
todos os locais por onde passava.
Na sua biografia “A Montanha” publicada quando comemorou o
70º aniversário, dizia-se que ainda em criança comprava fruta pelos pomares dos
arredores de Ourique, que revendia com lucro no centro de vila, melhorando a
vida de quem lhe comprava os seus produtos e também de quem, com esta sua
capacidade empreendedora, acabava por ser contributo inestimável na venda desses
produtos e no alargamento dos muito escassos mercados dessa época. E era uma
criança somente quem assim pensava e fazia, num ímpeto de construir e de criar
que nunca o largou até ao fim.
E nas terras do seu pai, cumprindo os afazeres que os
progenitores lhe encomendavam de acompanhar os trabalhos agrícolas que gente
assalariada era paga para realizar, nunca ninguém o viu de braços cruzados
dando ordens conforme seria de esperar. Desde cedo, chegando sempre antes dos
outros e sendo o último a largar o trabalho, campeava lado-a-lado com quem
trabalhava, endurecendo as mãos e o espírito e reforçando de forma inequívoca
os valores e os princípios que tão importantes serão nos episódios rocambolescos
que deram forma à sua História pessoal.
Durante a pujança da sua juventude, Joaquim Baraona foi
consubstanciando as suas potencialidades e amadurecendo o espírito, de uma
forma tão sentida que, nas descrições que dele fazem os seus contemporâneos,
surge envolvido por uma aura de concretizador sem par, que o há-de acompanhar
ao longo dos anos.
Quando se mudou para Cascais, num acto de entrega total e
absoluta e de adopção assumida de um novo destino que escolheu para corporizar
a vida adulta, fê-lo novamente de Alma e Coração, multiplicando de forma
abissal a sua lógica de concretizadora e deixando um legado de tal forma
impactante que as próximas gerações nunca o conseguirão esquecer.
Na terra de adopção, enquanto consolidava a sua família recém
constituída, Joaquim Baraona trabalhou afincadamente em vários projectos em
simultâneo e, mais uma vez, os frutos do seu empenho foram de tal maneira
fortes que alterou por completo a praxis social do seu local de residência.
Da Conservatória do Registo Predial, onde desempenhou funções
desde muito novo mas sempre com uma capacidade de criar que fazia toda a
diferença, até às instituições sociais da localidade, como a Paróquia de
Cascais, a Santa Casa da Misericórdia e as muitas academias e tertúlias
culturais que o Cascais de então ainda conseguia ter, Baraona recriou rotinas e
dinâmicas, instituiu novos procedimentos e gerou projectos-sobre-projectos num
ímpeto de criação de transformou as ditas instituições e as pessoas que com ele
participavam nos seus muitos projectos.
E, para além dos grandes empreendimentos de vulto e
circunstância que lhe granjearam o reconhecimento público e a notoriedade que
se prolongou durante a vida inteira, Joaquim Baraona interessou-se, participou,
empenhou-se e trabalhou de forma incessante em centenas de pequenos projectos
pessoais, em ajudas a todos quantos lho pediam e no apoio desmesurado a
incontáveis instituições de visibilidade nula, dos quais quase ninguém ouviu
falar, dos quais não ganhava nenhuma fama, mas que alteraram de forma brutal a
vida de muita gente…
Nesta sua faceta menos conhecida, na linha de benemérito e de
benfeitor recatado, foi sempre o mais discreto dos intervenientes, zangando-se
mesmo quando aqueles a quem ajudava, por entenderem que ao reconhecerem a sua
ajuda estavam a reforçar a gratidão que sentiam por ele, tornavam públicos os
actos de grande abnegação e humanismo que só ele tinha capacidade de
empreender.
Em termos da sua vida pública, são conhecidos e reconhecidos
os projectos enormes em que se envolveu. Bairros sociais construídos de raiz;
um novo, moderno e pujante hospital distrital pelo qual a vila ansiava há
tantos anos; uma praça de toiros construída a partir da conjugação do trabalho
empenhado e da dedicação comunitária de milhares de Cascalenses; a maternidade
na qual nasceram sucessivas gerações de Cascalenses; jornais e revistas;
colectividades; e tantas estátuas, monumentos, escolas, academias e associações
que nasceram pela sua mão e com a ajuda dele…
Não
existem palavras no léxico Português onde caiba a obra e o legado do Comendador
Joaquim Baraona. Porque ela, sendo reconhecidamente enorme na parte pública,
era incomensuravelmente maior na componente que poucos tiveram a sorte de
conhecer.
A grandiosidade do seu trabalho, trilhando caminhos quase sempre
improváveis mas sempre marcados pelo ferro do bem-fazer, espraiaram-se por
áreas das quais a sua obra transpira quotidianamente. Baraona foi erudito,
escritor, diplomata, político, empresário, benfeitor e tantas outras coisas
onde expressou a profundidade da sua excelência.
E, quando foi agraciado pela Presidência da República com a condecoração
máxima que existe para a área da benemerência, recebeu os louros do seu
trabalho perante uma multidão que todos os dias, na sua vida pública e privada,
vivia e usufruía dos resultados de tudo quanto ele estava a fazer.
Dias depois, quando a revolução aconteceu, foram muitos aqueles que
correram de imediato a defendê-lo. E ao contrário do que seria expectável, até
porque na vida de Joaquim Baraona nunca nada foi aquilo que seria de esperar
que se supusesse acontecer, os meses seguintes àquela mudança destruturante na
vida de Portugal, foram de continuidade e de luta constante para que o universo
dos Portugueses não se desmoronasse e para salvar postos de trabalho, ensejo e
projectos. Contou nessa altura com o apoio de quase todos os que estavam há
muito tempo ao seu lado mas, na força maior da raiva e da inveja, outros houve
que não foram capazes ou quiseram honrar os compromissos e as dívidas de vida
que com eles haviam contraído e que, de forma fácil e com o apoio dos novos
poderes emergentes, num registo de injustiça atroz e de um desprezo que Ser
Humano algum merece sofrer, ousaram apunhalar a sua confiança e sacar da sua
posse os instrumentos de que ele necessitava para se defender.
E Baraona surpreendeu novamente.
Perseguido pelo bem que tinha feito e sofrendo injúrias e as mentiras que
uns poucos usaram para toldar a rectidão da sua vida e a dedicação a tantos
projectos, teve de salvar os filhos ainda menores e de encontrar um caminho
alternativo que os salvaguardasse do sofrimento causado por motivos que ainda
nem sequer tinham capacidade de perceber. Rumou para o Brasil, para onde seguiu
praticamente sem nada, deixando para trás a casa, os bens pessoais, as memórias
da sua vida e o legado dos seus pais. Levava consigo a Alma Grande de Português
e a força avassaladora de quem tem a convicção de que esteja onde estiver a
força da sua determinação impõe-se a qualquer vicissitude conjuntural que possa
surgir.
No Brasil repetiu tudo aquilo que fez durante a infância em Ourique e
durante o tempo em que trabalhou em Cascais. Construiu projectos inovadores,
arrasou com uma visão estratégica fulminante e mudou a face e o rumo do Estado
do Espírito-Santo que o recebeu de forma esfusiante por nele ver uma
perspectiva de futuro total e radicalmente diferente. Em Vitória moveu
montanhas, criou um resort turístico de fama mundial e dirigiu uma operação sem
precedentes de plantio de videiras e de produção do que ele chamava “o melhor
do vinho Português”. Criou empregos, gerou riqueza, mudou uma vez mais a vida
de muita gente.
No meio desse processo, quando o espectro melindroso dos efeitos da
revolução começava a dissipar-se em terras de vera gente, foi contactado pelo
novo Estado e, sondado acerca de um qualquer natural rancor que pudesse ter
depois de tudo aquilo que de terrível lhe haviam feito em Portugal, de imediato
se dispôs a abraçar a causa de sempre e, com Portugal no peito, logo se
transformou no mais pujante e dinâmico pilar das pontes diplomáticas a
estabelecer entre a democracia nascente e o potencialmente brilhante Brasil que
estava então a renascer.
Contra tudo e contra todas as expectativas criadas por aqueles que
miseravelmente e de forma cobarde o tinham atacado, geminou cidades e gerou
irmãos, recriou vínculos e laços fraternos entre academias e associações
sedeadas em ambos os lados do Atlântico, e fomentou negócios e dinâmicas
empresariais que muito contribuíram para a afirmação de Portugal no Mundo com o
denodo que só ele sabia ter.
Foi generoso acima do que seria expectável. Foi generoso com aqueles que o
apoiaram e com aqueles que o atacaram. Olhou sempre de cima para o lodo da
sociedade e impôs-se pela ligeireza com que regia os ódios, as implicâncias, as
maledicências e as invejas mesquinhas que a sociedade humana tem grande
dificuldade de ultrapassar e esquecer. Soube, porque era figura maior
do que os pequenos personagens com quem se cruzou na vida toda, virar a página
e abraçar Portugal como causa sua, continuando, praticamente até ao último dia,
a trabalhar a favor de toda a gente.
Quem teve a sorte de o conhecer bem recorda a sua boa-disposição, a
educação primorosa, o saber estar e o saber fazer e, acima de tudo, o carácter
implacável perante a ignomínia e a falsidade. Era irredutível em tudo o que
dizia respeito ao desleixo, ao desinteresse à incúria e à falta de rigor. E
isso gerou-lhe amores e ódios que foram marcantes ao longo de toda a vida.
Em Cascais, tudo transborda à obra de Joaquim Baraona. Ele está em cada
canto e recanto, em cada esquina e nos pequenos e grandes pormenores das ruas,
das casas e das instituições de Cascais.
Quando inaugurou aquele que seria o mais moderno e inovador hospital
Português, numa Vila de Cascais que ansiava pelo mesmo há muitas décadas e que
sempre se mostrou incapaz do o desenvolver, logo se deparou com outros
projectos e ideias que marcaram a vida da comunidade e que mostram bem a fibra
que sempre teve.
Numa entrevista concedida em 1970 ao
jornal “A Nossa Terra” o (demasiado) jovem Provedor Joaquim Baraona promete
iniciar de imediato as obras de remodelação do velho hospital e dotá-lo da mais
moderna tecnologia existente nessa época, num ímpeto de ousadia que não deixou
indiferentes os poderes instituídos de então. Considerando que o que existia
não era compatível com a vocação turística que Cascais vivia, Baraona menciona
os avanços técnicos e científicos que a medicina havia alcançado e refere como
exemplo uma máquina denominada “auto-analizer”, existente em vários hospitais
Norte-Americanos que era considerada um dos mais revolucionários equipamentos
do seu tempo. E, perante a estupefacção do repórter que o entrevistava, desde
logo promete que o Hospital de Cascais seria o primeiro a tê-lo em Portugal!
E assim
o fez! Procedendo a angariações de fundos e à captação de investimentos, o
jovem provedor consegue rapidamente obter os meios para proceder à reconstrução
do hospital, para o equipar com as mais modernas tecnologias e com o dito
“auto-analizer” que de imediato adquiriu nos Estados Unidos.
Mas
levantava-se um problema prático que o previdente provedor não tinha conseguido
prever: o hospital era demasiadamente pequeno e não existia espaço físico onde
se pudesse colocar este equipamento!
Mas
Joaquim Baraona não desistiu. Procurando em redor do hospital espaços vazios
onde fosse possível construir as instalações para montar o tão desejado
“auto-analizer” encontra ali mesmo ao lado, num terreno que pertencia ao Estado
e que se encontrava ocupado por um edifício onde tinha funcionado há algum
tempo um posto de apoio à tuberculose, a tão desejada solução para o seu
problema. Mas surpreendentemente foi muito mais fácil encontrar os meios para
adquirir o equipamento do que obter as autorizações governamentais para o
instalar no edifício devoluto já existente…
E uma
vez mais Joaquim Baraona não esmoreceu. Com o apoio unânime da Mesa
Administrativa da Misericórdia, o jovem provedor dirigiu-se ao prédio devoluto,
arrombou a porta oficialmente selada e iniciou de imediato a instalação do
equipamento. Como seria de esperar, as vozes críticas de sempre logo se
levantaram e as ameaças surgiram imediatamente. Mas Baraona sabia que o espaço
continuava legitimamente no domínio público e assim concretizou sem mais
atrasos o seu projecto que contribuiu de forma imediata para uma melhoria
significativa dos serviços médicos do hospital e que foi responsável pela vida
de milhares de Cascalenses. O novo hospital foi inaugurado em Abril de 1974,
dias antes da revolução, com a presença do Presidente da República e das mais
altas individualidades do Estado e da sociedade desta terra.
Teria
sido impossível com outra pessoa qualquer! Com outro provedor é mais do
que certo que ainda hoje teríamos o “auto-analizer” por estrear e guardado numa
arrecadação qualquer. Mas a coragem e a determinação de Joaquim Baraona foi
essencial na defesa dos interesses legítimos de Cascais e dos Cascalenses, resultando
numa benfeitoria que funcionou até 2010…
Quando
partiu em 2018, o Comendador Joaquim Baraona deixou atrás de si um vazio
difícil (senão impossível) de preencher. Diz-se que não existe ninguém
insubstituível e que o ritmo da vida impõe que alguns partam e deixem o espaço
para outros fazerem e brilharem também. Mas isso não se aplica com Joaquim
Baraona. O espaço que ficou, num registo que era só dele, vai ficar vazio para
sempre. Infelizmente.
Na
grandeza do seu desapego e na coragem única que usava para enfrentar os
problemas, foi figura de tal forma grande que cobria com o manto do
desinteresse os pequenos personagens que nem sequer o conseguiam perceber.
Era o
Senhor Comendador. Era pai, amigo e companheiro. Era mestre e professor. Era
uma figura de tal maneira grande que qualquer homenagem que se lhe queira fazer
ficará sempre aquém da realidade efectiva com que viveu.
Que
descanse em paz. Porque por cá, ninguém o vai esquecer.
Obrigado Comendador.