O
Cascais que conhecemos e em que hoje vivemos, resultante das grandes alterações
havidas na vila a partir do último quartel do Século XIX quando o Rei Dom Luís escolheu
este espaço como destino privilegiado de veraneio, esconde de forma literal
todo um enquadramento histórico que deriva do processo natural de nascimento,
crescimento e afirmação da urbe no contexto nacional. O Alto da Bela Vista é
exemplo paradigmático desta situação, pois reúne em si mesmo um conjunto de
memórias consubstanciadas em património urbano de primeira importância para
Cascais, que ficou encoberto pela assimilação daquele espaço pelo perímetro
histórico consolidado da vila que agora temos. Conhecer a génese
histórico/urbanística do Alto da Bela Vista é, desta forma, um importante
contributo para a recuperação da Memória Histórica e, por extensão, da
Identidade Municipal de Cascais, reafirmando a capacidade de enquadramento dos
projectos que surjam para aquele local e potenciando o seu valor enquanto
factores consolidadores da cidadania local.
por João Aníbal Henriques
A Génese do Espaço e as
Memórias de Cascais
Ninguém sabe, de forma efectiva,
onde Cascais nasceu. A urbe que hoje temos, tradicionalmente marcada pelo
epíteto de “Vila de Reis e de Pescadores”, é o resultado efectivo de um enorme
conjunto de acontecimentos que por aqui se desenvolveram ao longo dos séculos.
Sabendo-se que a ligação de Cascais
ao mar é realidade inata à própria existência de aglomerados habitacionais
neste espaço, o certo é que a ligação da vila aos seus ilustres pescadores nem
sempre se desenhou a partir dos cenários que hoje conhecemos.
Nos primórdios da existência humana
em Cascais, quando as primeiras comunidades deambulavam em busca de segurança e
alimento, o espaço agora ocupado pela vila oferecia condições excepcionais de
habitabilidade.
O mar, fonte praticamente
inesgotável de alimentos, assegurava praticamente ao longo de todo o ano, o
sustento necessário à sobrevivência humana. E, se o clima e a paisagem eram (e
são cada vez mais) paradisíacos, faltava assegurar somente uma dessas
componentes básicas que dão sustento a existência de comunidades humanas: o
abrigo e a segurança perante ataques e intempéries.
Mas neste campo, possivelmente
diferenciando Cascais das demais enseadas arenosas e desérticas que abundavam
na região, possui no seu subsolo um conjunto de grutas e cavidades que, furando
a pedra calcária que dá forma ao nosso solo, formam um vasto complexo de
cavernas que apresentavam excelentes condições de acesso e habitabilidade.
Torna-se fácil perceber, desta
maneira, a razão de ser de ter sido provavelmente nas actuais Grutas do Poço
Velho, situadas no sopé do morro da Bela Vista, que Cascais nasceu
efectivamente. E de, nesses tempos imemoriais do Paleolítico, terem sido
ocupadas por caçadores-recolectores que naturalmente utilizavam o mar como sua
fonte principal de alimentos.
Cascais nasceu ali, há dezenas de
milhares de anos atrás, a partir do binómio que ainda corporiza o inconsciente
colectivo da grande maioria dos Cascalenses: o Sol e o Mar, definindo na sua
lógica de desenvolvimento urbano uma componente que vincula ambas as realidades
perante a necessidade maior de oferecer qualidade de vida a todos os seres
humanos que ali se instalaram e que escolheram este como o local ideal para
viver.
Suficientemente afastadas do mar
para poderem salvaguardar a segurança desejada mas, ao mesmo tempo, próximas o
suficiente para serem acessíveis no labor quotidiano, foi no espaço das Grutas
do Poço Velho que nasceram as primeiras comunidades piscatórias locais. Foi
também ali, a partir dos pressupostos atrás elencados, que nasceram e se
criaram as técnicas, as práticas e os conhecimentos que aproximam Cascais do
mar até à actualidade.
A consolidação e a sedentarização
destas primeiras comunidades humanas na génese do território Cascalense inicia
então um processo de paulatina aproximação física ao mar e às praias. O
desenvolvimento de conhecimentos na área das construções e a pacificação que
resultou do processo de Neolitização, tornou possível virar costas aos abrigos
naturais proporcionados pelas grutas e optar por formas de abrigo mais
precárias e melhor posicionadas relativamente ao mar. Nascem assim os primeiro
aglomerados pré-urbanos, possivelmente localizados em torno da Baía de Cascais,
a partir da construção de casas feitas com materiais perecíveis e cujos
vestígios não chegaram naturalmente até à actualidade.
Na época Romana, na qual a
urbanidade já tinha atingido outros níveis de conhecimento, já encontramos
vestígios arqueológicos de ocupação humana na actual zona do castelo, de cara
voltada para o mar mas ainda assim aproveitando o desnível do terreno para
assegurar alguma segurança suplementar (ver as Cetárias Romanas situadas na Rua
Marques Leal Pancada), ao mesmo tempo que o espaço antigo das velhas grutas de
outros tempos vai ficando olvidado.
Durante muitos séculos a vida de
Cascais recentrou-se em volta da Baía. Era ali que se situavam as velhas
cabanas abarracadas onde pernoitavam os pescadores que aqui chegavam, era
também ali que se situavam as indústrias de salga e conserva de peixe que
tornaram próspero o lugar.
Utilização e Usufruto
Mas como nada é linear na
História de Cascais, importa perceber que a concentração de esforços e o
assentamento das primeiras comunidades na actual zona junto ao mar, não
representou necessariamente o abandono dos velhos espaços. Pelo contrário.
Nas Grutas do Poço Velho e, de
forma muito progressiva nas encostas do morro da Bela Vista, foram ficando
pequenas comunidades humanas que trabalhavam e rentabilizavam esses espaços.
A primeira notícia que temos
desta realidade situa-se precisamente junto à entrada nas Grutas do Poço Velho
numa das ruas que dá acesso às mesmas para quem vinha da zona saloia situada no
triângulo verdejante e próspero que liga a Serra de Sintra ao mar. Na
pequeníssima e quase desconhecida Capela de Nossa da Conceição de Porto Seguro,
está ainda hoje uma placa votiva que refere que o templo e o hospício que lhe
estava anexo foi construído em 1691por Paschoal Dias e Maria da Costa,
originários de Oeiras e que ofereceram esse espaço aos Frades Capuchos de Santa Cruz da Serra de Sintra.
E por ali, contrariamente ao que
hoje se sabe, consolidou-se um núcleo de povoamento dependente do apoio social
proporcionado pelo hospício e, concomitantemente, pelo amparo espiritual da
invocação maior que Nossa Senhora da Conceição represente em Cascais e em
Portugal…
De tal forma foi importante esse
povoamento do local, demonstrando a documentação existente que houve
efectivamente um afastamento real entre esse espaço e o da consolidação
urbanística da Vila de Cascais e seus arrabaldes, que já no Século XIX, quando
a Corte escolhe a vila como estância de veraneio, Francisco Marques Leal
Pancada, um benemérito Cascalense também relacionado profissionalmente com a
conservação do peixe, adquire a capela e o hospício e efectua amplas obras de
conservação e restauro.
É importante não esquecer que foi
precisamente Leal Pancada que, tempos depois, oferece à população de Cascais o
terreno onde virá a ser construído o Hospital dos Condes de Castro Guimarães,
situado mesmo em frente ao local onde se situava o Campo Santo e o cemitério
principal da localidade.
A Vila Nova de Cascais, por
ironia do destino localizada precisamente sobre o local onde Cascais nasceu,
cresceu assim com uma dinâmica própria e a pujança de um local que detinha
meios próprios de subsistência. Sendo um arrabalde da vila propriamente dita,
preservou a sua identidade e consolidou a sua importância no crescimento e
consolidação geral da vida Cascalense.
Memórias e Identidade
Na caracterização da unidade
urbanística que resulta do devir histórico da Aldeia Nova de Cascais e do
próprio Alto da Bela Vista, importa recuperar muita da informação presente no
“Levantamento Exaustivo do Património Cascalense” (Fundação Cascais: 2000) onde
se elencavam cada casa e cada detalhe com relevância para a compreensão deste
importante núcleo Cascalense.
As peças que hoje restam, para
além do aglomerado habitacional que foi sendo construído a partir da criação do
velho hospício e da Capela de Porto Seguro, ambos peças-chave para compreender
e contextualizar eventuais intervenções futuras a realizar naquele espaço,
cingem-se tão somente aos detalhes arquitectónicos que sobreviveram às agruras
impostas pelos novos tempos e pelas novas necessidades. As cantarias das portas
e das janelas, muitas delas com decoração singela em memória de realidades que
não existem já, foram reutilizadas em processos de demolição e reconstrução
sucessivas que por ali se foram fazendo. E na divisão dos lotes, mesmo com as
contrariedades impostas pelo emparcelamento, ainda é possível encontrar os
vestígios daquele que foi o Cascais primordial de outros tempos, com as suas
courelas e pequenas quintas, os velhos currais de gado e até as actividades de
apoio à vida quotidiana no coração da vila.
Esta vertente “saloia” da Aldeia
Nova, o local onde se produzia muito daquilo que se consumia na vila de então,
foi-se consolidando com o desenvolvimento industrial. Em primeiro lugar, logo
ali ao lado, a Real Fábrica de Lanifícios de Cascais e, mais adiante, a Fábrica
de Conservas de Peixe que ajudou a definir a margem direita da ribeira. O
hospício, que entretanto foi evoluindo para um verdadeiro hospital (e cujo
edifício ainda lá se encontra transformado em espaço residencial), era destino
eminente para os mais pobres e desfavorecidos da sociedade de então.
Convergiriam para ali os que tinham menos posses e meios, sendo certo que
pescadores e mareantes ali encontravam o consolo físico e espiritual para os
males que os afectavam.
Será eventualmente por isso que,
a título de explicação, se mantém a ligação perene entre o mar e este arrabalde
“longínquo” do centro de Cascais onde, aliás, se situava o cemitério onde
encontravam os pescadores o seu eterno descanso. Possivelmente por isso
igualmente, e parecendo pôr em causa toda a lógica e discernimento, ali é
construído em época mais recente o “Bairro de Nossa Senhora dos Navegantes”
(vulgo Bairro dos Pescadores) que, até há muito pouco tempo era cenário de
velhos barcos esventrados ou em operações de reconstrução, pousados em pequenos
terrenos cheios de redes e apetrechos velhos de pesca.
Enquadramento
Urbanístico
A apreciação de operações
urbanísticas neste espaço, natural por sabermos que o envelhecimento do espaço
determina necessariamente a sua recuperação, actualização e modernização,
deveria ter em conta esta identidade própria do Alto da Bela Vista e a sua
importância efectiva na definição daquilo que ainda hoje é Cascais.
O enquadramento dos futuros
projectos nesta realidade, bem como a rentabilização das memórias patrimoniais
que ali subsistem, ajuda a qualificar as intervenções e, desta forma, consolida
a Identidade Municipal e promove a memória colectiva.
Interpretar desta maneira a realidade
que temos em linha com as pré-existências dos diversos lugares, assegura aos
que projectam nos mesmos condições ímpares para reforçarem igualmente a sua
atractividade e, por extensão natural, o valor intrínseco dos empreendimentos e
espaços.
Por esse motivo ganha redobrada
importância a proposta de requalificação do edifício situado na Rua da Bela
Vista, cuja Certidão Urbanística foi discutida na última reunião de Câmara.
Toda e qualquer intervenção efectuada no âmbito do contexto urbanístico e patrimonial
que seja sinónimo de melhoria da qualidade dos edifícios, e que o faça sem
desvirtuar o seu enquadramento genérico na realidade local, é contributo
decisivo para o reforço da vocação turística municipal, sendo que esta,
conforme está plasmado no próprio Plano Director Municipal, deverá ser
resultando de um acréscimo na identidade dos moradores e frequentadores do
local.
O potencial educativo e
pedagógico do Alto da Bela Vista, tal como acontece em tantos outros cantos e
recantos de Cascais, é imenso. É ali que reside a possibilidade de as novas
gerações criarem laços e vínculos perenes com quem os antecedeu na ocupação
deste espaço. Só assim, com esses laços bem evidentes e com uma abordagem
politicamente consciente desta importância, será possível fazer crescer Cascais
com qualidade, motivando os equilíbrios sociais com as necessidades de
prosperidade e empreendedorismo, e zelando por um reforço efectivo da
Identidade Municipal, essencial para uma cidadania consciente e, em última
instância, para uma democracia saudável.
Conclusão
A Aldeia Nova de Cascais é uma
realidade desconhecida de quase toda a gente. E esse facto, associado aos
naturais processos de rejuvenescimento dos nossos espaços habitacionais
consolidados, acaba por fazer perder potencialidades que um conhecimento enquadratório
daquela realidade almejaria alcançar.
Compreender a razão de ser
daquele espaço, os motivos que levaram a que tivesse chegado até nós com as
características que nele reconhecemos e as potencialidades imensas que possui
para a definição da qualidade que todos desejemos para Cascais, ajuda os
técnicos que formulam e apreciam os projectos para aquele lugar, os professores
e educadores das escolas locais, os políticos que decidem os destinos da nossa
terra, e até o cidadão comum que pretende construir ali (ou reconstruir) a sua
casa, a tomar as decisões que melhor correspondem aos interesses de todos os
Cascalenses.
Porque sem consciência de quem
somos, de onde viemos e para onde vamos, as discussões acabam naturalmente por
perder-se nos interesses mais mesquinhos e imediatos, delas resultando pouco
mais do que uma pequena peça na engrenagem imensa com que o sistema político
que temos nos constrange.
Porque como dizia Pedro Falcão no
seu “Cascais Menino”, este é “o Cascais com que sonhamos”.