por João Aníbal Henriques
Na busca incessante dos trilhos mais significantes de Alcabideche, urge desvendar aquela que é uma das mais impactantes lendas da freguesia. Saída directamente da encruzilhada que junto à Biscaia liga o Caminho das Almas à encosta de São Saturnino, a Poente da Ermida de Nossa Senhora da Peninha, a lenda que corporiza este espaço traduz na sua essência a amplitude milenar das convicções e das crenças de sempre dos Cascalenses.
A subida desta encosta, atravessando o caminho de pé posto que começa nas Almoínhas Velhas e se estende até ao que resta do velho palacete ali construído por António Carvalho Monteiro, o conhecido “Monteiro dos Milhões” que viveu na Quinta da Regaleira e que, do alto da sua iniciação, traduzia na matéria os valores espirituais mais relevantes da Portugalidade, faz-se por entre o exotismo de uma flora artificialmente disposta como se de um cenário se tratasse, propiciadora, por seu turno, de uma fauna pujante que não deixa indiferente quem tem a sorte de por ali poder passear.
Reza a lenda que, algures durante o reinado de Dom João III, uma pastorinha muda e esfomeada nascida na localidade das Almoínhas Velhas (Malveira-da-Serra, Cascais), terá subido à Serra de Sintra com o seu rebanho onde encontrou Nossa Senhora. A figura com a qual falou, respondendo ao seu anseio de alimentos para si e para a sua família, disse-lhe para regressar a casa e abrir uma determinada arca onde encontraria o pão de que necessitava. Correndo de regresso para casa, a pastorinha recuperou a voz e indicou à sua mãe onde encontrar o tão almejado alimento. A velha imagem tosca de Nossa
Senhora da Penha, colocada na arca, terá sido então exposta para veneração na velha Capela de São Saturnino, situada a poucos metros do local da aparição. Mas, teimosa, saia subrepticiamente do altar onde a colocavam e reaparecia no cimo dos rochedos situados atrás do templo. Tantas vezes se repetiu a travessura que se construiu em sua honra a capela actual no topo do monte da peninha.
Não se sabendo exactamente quando tudo isto aconteceu, e havendo várias notícias da existência de edifícios que precederam aquele que actualmente ali se encontra, sabe-se, no entanto, que a Capela de Nossa Senhora da Peninha terá sido construída por um tal Pedro da Conceição, que tinha na altura somente 28 anos, e que se encontra sepultado junto ao monumento.
Nas inscrições lapidares de Sintra, vem descrita a indicação que se encontra na sepultura do fundador, dizendo que ali jaz o Ermitão Pedro da Conceição, falecido em 18 de Setembro de 1726, e que pede a todos os que por ali passem um Padre Nosso e uma Avé Maria
pela Alma dos seus benfeitores. Numa das paredes do
templo, existe uma segunda lápide confirmando a
identidade do construtor original e afirmando que a obra
foi efectuada em 1690. Sendo muitos e rocambolescos os
episódios pelos quais passou o singelo templo Sintriano, o
certo é que foi alvo de muitas obras de construção e
reconstrução que lhe conferiram o aspecto que hoje
conhecemos.
Sabe-se ainda que no final do Século XIX, em 1892, a
Peninha é comprada pelo Conde da Almedina que em
1918 a revende a António Augusto Carvalho Monteiro.
O
empreendedor e filósofo espiritualista, como ficou
conhecido o construtor da Quinta da Regaleira, situada junto à Vila de Sintra, era na altura um dos mais
conhecidos e ricos empresários lisboetas, com
investimentos variados na banca de então que, do alto da
sua prosperidade, adquire uma visão ecléctica do Mundo e
das suas gentes.
Profundamente místico e grande conhecedor de tudo
aquilo que dizia respeito ao destino de Portugal, Carvalho
Monteiro pauta a sua vida por um conjunto de valores e
de princípios que, apesar da distância que o separa do
antigo Ermitão Pedro da Conceição, lhe são muito
próximos e semelhantes.
Adossado às penhas que sustentam a capela, o
proprietário prepara a construção de um palácio onde
pretendia passar temporadas em meditação e em
recolhimento.
Projectado por Júlio da Fonseca em 1920, o
palácio fica por acabar mercê da morte de Carvalho
Monteiro, tendo posteriormente sido adquirido pelo
advogado José Rangel de Sampaio que concluiu as obras e
legou o palácio em testamento à Universidade de Coimbra
Em 1991, pela importância de 90.000 contos, o imóvel é
adquirido pelo Estado Português, através dos Serviços de
Parques e Conservação da Natureza, que efectuou
algumas obras de restauro e conservação.
A Poente da Capela de Nossa Senhora da Peninha,
subsiste em forma de ruína avançada, o que resta da
velhinha Ermida de São Saturnino, originária do Século
XII, e cuja importância em termos patrimoniais contrasta
de forma evidente com a incúria em que tem sido deixada.
O conjunto patrimonial da Peninha, composto pela
Capela, pelo palácio de Carvalho Monteiro e pela velha
Ermida de São Saturnino, está inserido numa das mais
impactantes paisagens da Região de Lisboa, abraçando em
termos visuais desde a Ponte Sobre o Tejo, em Lisboa, até
ao Cabo da Roca.
A singeleza da lenda, apelando aos sentidos de pureza
primordial e fazendo a apologia da pobreza extrema e
abnegada, enquadra-se no conjunto ritualístico próprio da
Serra de Sintra, numa lógica cruzada de paganismo
cristianizado e de apelo constante ao Quinto Império
Português.
A devoção pela Senhora que concebe, a
Senhora da Conceição que tão linearmente devolve à
pastorinha das Almoínhas Velhas (ou Almas velhas), a sua
voz e lhe mata a fome, é concretizada pelo Ermitão, ou
seja, pelo que assume a pobreza como fio condutor da sua
vida, Pedro da Conceição, em ligação permanente ao culto
ritual antigo.
Na Ermida Medieval, onde o culto é de São Saturnino, a
linha orientadora é a mesma, apelando ao eterno retorno e
ao culto obscurecido dos Mundos Internos, numa lógica
que corre em linha com o útero materno, a Deusa-Mãe
primordial, por aqui venerada desde tempos imemoriais.
Enfim… Nossa Senhora da Conceição.
Os trilhos da Conceição, muito comuns através de todo o
território municipal de Cascais, ganham uma importância
acrescida e redobrada na área actualmente incluída na
Freguesia de Alcabideche.
Os mananciais de água que descem da serra em direcção
ao mar, franqueando de forma livre as vastas charnecas
que envolvem aquele lugar, deixam atrás de si um rasto de
fertilidade que promove a vida, a saúde e o bem-estar
daqueles que deles usufruem. A dependência directa
destes mananciais, aqui como em qualquer outra parte do Mundo, ajuda a definir a estreita ligação que
consistentemente se estabelece entre o quotidiano de cada
comunidade e o seu profundo saber.
A sabedoria popular, tão importante para a generalidade
das tarefas do dia-a-dia, assume-se em Alcabideche como
sustentáculo essencial para a formação da identidade local.
E espraia-se, desde sempre, através de campos diversos
que influem directamente nas escolhas que todos os dias,
nos seus momentos de trabalho e de lazer, que os
habitantes vão fazendo na sua vida.