por João Aníbal Henriques
Quando se entra em Marvão, depois da subida de 862 metros da Serra
ancestralmente designada como Hermínios Menores, em contraponto com a Serra da
Estrela, que se vislumbra no horizonte e que se chamava Hermínios Maiores, os
sentidos ficam impregnados de uma singela sensação de deslumbramento.
As ruelas, marcadas pelo desenho ancestral da sua origem árabe, serpenteiam
através da orografia do território, compondo um cenário idílico que nos
transporta de imediato para outras eras e para outros tempos. As fachadas das
casas, fazendo contrastar a brancura da cal com as cores fortes e duras do
granítico, apresentam-se majestosas, ostentando orgulhosamente os seus ferros
forjados e as cantarias góticas que denotam a importância e relevância que o
burgo já teve ao longo da sua história.
Construída provavelmente sobre os restos de um assentamento castrejo ainda
pré-histórico, basicamente porque a sua localização elevada e estrategicamente
disposta de forma a prever eventuais ataques inimigos e a defender a população
e as suas riquezas minerais assim o determinou desde o dealbar dos tempos,
Marvão foi inicialmente um burgo romano. Naquele lugar, por onde se cruzavam
importantes rotas viárias essenciais para a sobrevivência e para a pujança do
império, confluíam interesses diversos que definiram a necessidade de povoar o
local e de promover condições de atractividade para todos aqueles que por ali
viviam cumprindo as suas obrigações sociais.
Será dessa época o desenho inicial da sua estrutura edificada que,
aproveitando as características naturais do povoado, define um perímetro
protegido de ataques e de perigos e, dessa maneira, promovendo a segurança
necessária ao estabelecimento de comunidades humanas que escolheram o local
para edificar as suas habitações. A sua forma alongada, prolongando
artificialmente até ao castelo a orografia natural do território, controla
visualmente uma vasta região que vai até à já mencionada Serra da Estrela, num
plaino abrangente que lhe confere características únicas de habitabilidade no
contexto de então.
Durante a ocupação árabe, depois do Século VIII, Marvão ganha a
configuração definitiva que hoje lhe conhecemos. Até porque a sua importância
estratégica e militar, numa lógica de aculturação que os ocupantes africanos
consigo trouxeram e que aplicaram na generalidade das terras conquistas na
Península Ibérica, exigia que um ponto tão relevante como este fosse
devidamente cuidada, ocupada e defendida.
Terá sido encarregue de tal desiderato o importante chefe muçulmano de
Coimbra Ibn Meruam que ali se instalou e se encarregou de adaptar o espaço às
necessidades de defesa destes novos tempos. Terá sido, aliás, a deturpação do
seu próprio nome que definiu o próprio topónimo da localidade. Meruam que
evoluiu para Mervam depois da reconquista cristã e, por fim, a palavra Marvão
que hoje conhecemos.
Integrada no novo Reino de Portugal desde 1166, ainda durante o reinado de
Dom Afonso Henriques, Marvão depressa assumiu a sua importância enquanto
guardiã da fronteira e dos ataques vindos do actual território de Espanha. E,
precisamente nessa perspectiva, recebe em 1226 a sua primeira Carta de Foral
que lhe foi conferida pelo Rei Dom Sancho II. Mais tarde, já por decisão do Rei
Dom Dinis em 1299, vê a sua velha estrutura defensiva intervencionada e
transformada num verdadeiro castelo capaz de desempenhar as suas importantes
funções no contexto bélico que caracterizava aqueles tempos.
Em 1512, quando o Rei Dom Manuel lhe confirma a sua Carta de Foral, já
Marvão era um importante e influente centro administrativo, dotado da
capacidade de contribuir de forma evidente para o reforço da própria capacidade
autonómica de Portugal.
A pacificação da fronteira, sentida durante essa época, terá porventura sido decisiva na perda da importância estratégica de Marvão nos anos subsequentes. E, por esse motivo, assiste-se a uma fuga da população para as vilas e aldeias existentes no sopé da serra, mais abrigadas das agruras do clima e com uma acessibilidade melhorada para motivarem o comércio e os transportes. A situação tornou-se de tal forma dramática que ainda no Século XVI se estabelece um Couto dos Homiziados como forma de motivar a instalação de nova população.
De acordo com essa legislação, que perdurou até 1790, a instalação em
Marvão libertava os moradores que ali se fixassem de acções judiciais de que
tivessem sido vítimas por crimes que tivessem cometido anteriormente… E a
limpeza do cadastro criminal foi motivo para a instalação de muita gente!
Digna de nota especial, por entre o extraordinário conjunto de monumentos
religiosos que a povoação apresente, é a Capela de Nossa Senhora da Estrela,
construída fora de portas e abrigada no seio de um convento do Século XV.
Reza a lenda que por ali se venerava desde o tempo dos Visigodos uma imagem
de Nossa Senhora trazida pelos povos Hermínios desde a longínqua Serra da
Estrela. E depois da Batalha de Guadalupe, onde sanguinariamente o Rei Godo
Rodrigo foi derrotado pelos mouros, de forma a proteger a imagem de ultrajes
que viessem a ser perpetrados pelos infiéis, foi a mesma escondida no meio das
penedias que envolvem Marvão onde ficou até se lhe perder por completo o rasto
ao longo de três séculos.
Quando da Reconquista Cristã, numa noite cálida do verão alentejano, um
pastor que por ali circulava com o seu rebanho terá sido deslumbrando com uma
estrela com uma fortíssima luz que o foi guiando até ao esconderijo onde se
guardava a imagem. E, redescoberta, foi construída a capela e encetado um culto
muito significante que é parte essencial da devoção identitária do povo de
Marvão.