quarta-feira

Comércio e Urbanismo em Cascais




Por João Aníbal Henriques



Apesar de nem sempre parecer, a actividade comercial, com toda a implicação que tem no devir social das comunidades, é um dos mais importantes vectores de desenvolvimento das cidades.

O comerciante, idilicamente caricaturado como uma espécie de repositório de informação, surge naturalmente no seio de um grupo como o elemento central da cadeia comunicativa. O seu negócio, mais do que pela componente financeira, assume-se como contributo efectivo para a consolidação da identidade e da cidadania de um determinado espaço.

O papel do comerciante, sobretudo daquele que, no comércio dito de proximidade, se encontra mais próximo do potencial cliente, é deveras interessante e normalmente bastante incompreendido. Perante os seus vizinhos, quer da concorrência que daqueles que com ele respondem de forma cooperativa aos anseios da população, ele é parte integrante do processo decisório, sendo a sua opinião e entendimento permanentemente assumido como fundamental na gestão diária do espaço público. Perante o visitante, esse mesmo comerciante é a primeira cara e contacto que se encontra no novo espaço, dele dependendo a imagem de marca de uma determinada terra ou região.

Os constantes afazeres, aliados à especulação necessária à prosperidade do negócio, alteram radicalmente esta perspectiva de observação. Na óptica do cliente, mais do que aquele que lhe facilita o acesso a determinado tipo de bens e de produtos, o comerciante é uma figura vilipendiosa, através da qual esse acesso se torna mais caro e não raro, mesmo inacessível.

A posição dúbia assumida pelo comércio junto das comunidades, para além deste conjunto de inflexões que contribuem para a fundamentação da análise que mais à frente apresentaremos, é ainda agravada por um outro conjunto de factores de ordem financeira que, por vezes de forma assaz curiosa, vêm contribuir para a destruturação de um determinado grupo coeso, e para a recriação de uma nova comunidades.

Pelo seu carácter dinâmico, mas sobretudo pela necessidade permanente de adaptação a novos produtos e mercados, o comerciante é tradicionalmente uma das figuras mais progressistas no seio de um determinado grupo. É ele, numa primeira fase, quem primeiro contacta com as novas realidades que, mais do que meramente conhecer, ele tem de saber trabalhar e controlar, sob pena de ser ultrapassado nessa novidade por um qualquer concorrente e, consequentemente, perder a sua posição perante um qualquer mercado. Por outro lado, para além deste carácter inovatório, que obriga o comerciante a uma evolução constante, o comércio tradicional obriga os seus agentes a uma permanente busca de novas formas de trabalhar.

A modernização de espaços, mesmo quando pouco visível ao cliente desatento, é sempre obrigatório numa loja comercial. A disposição dos produtos, e a sua exposição ao público, Bem como a curva de preços que altera os equilíbrios e a forma de relacionamento com fornecedores e clientes., faz do comerciante um ser que, no seio das sociedades tradicionais que caracterizaram o urbanismo português ao longo de muitos séculos, está em permanente evolução e mudança.

Dessa situação até à criação de estigmas e de formas complementares de rejeição, baseadas na premissa de que é fundamental a estabilidade como forma de criação das raízes de que dependem os valores e amoral pública, vai um pequeno passo, que normalmente condiciona a relação entre o comerciante e a comunidade envolvente. A clivagem resultante desta situação, marcada amiúde pela falta de comunicação e de uma vontade mútua de empreender esforços conjuntos com vista à criação de um desenvolvimento harmonioso, consubstancializa-se em arreigada rejeição de parâmetros e dos circunstancialismos que envolvem um determinado período conjuntural de uma sociedade.

O comerciante é, em primeiro lugar, aquele que evolui mais depressa; o comerciante é, em segundo lugar, aquele que mais constrange o acesso do público aos bens e serviços disponibilizados através do seu estabelecimento; o comerciante é, por último, a única figura da cidade ou aldeia portuguesa até finais do Século XIX, que reúne as condições que lhe permitem investir, de forma descarada e frontal, mesmo nos períodos em que a crise grassa afectando a generalidade dos habitantes de uma comunidade.

A gestão financeira dos seus produtos, aliada à inevitável criação de excedentes que devem ser reinvestidos para se tornearem rentáveis, sob pena da criação de uma situação de estagnação que não promove o negócio nem a evolução do próprio grupo social, faz do comerciante uma figura incompreendida e absolutamente desconforme perante a face comum do cidadão da sua época. Muitas vezes, mesmo em períodos onde a prosperidade geral é o mote, a cidade evolui à custa das inovações e do espírito empreendedor do seu comércio. Este sector, mais do que nenhum outro, está sempre um passo à frente no caminho da novidade, diferenciando-se da envolvência e assumindo a sua vanguarda como único caminho viável no sentido da criação de riqueza e de prosperidade.

Num núcleo urbano com uma vivência social saudável, a tensão latente entre o sector comercial de vanguarda e actividades marcadas pelo seu bastão de conservadorismo, transforma-se numa espécie de motor que reage às circunstâncias e condiciona os desequilíbrios e reequilíbrios que compelem ao desenvolvimento. Um dos principais sinais de debilidade social, desde sempre associado à degradação patrimonial e social e, consequentemente à insegurança urbana e ao marginalismo, é precisamente a estagnação do sector comercial ou, alternativamente, a sua incapacidade de gerar consensualidades que contribuam para a consolidação das bases comuns que sustentam o aparelho social.

O posicionamento do comerciante na pesada teia da comunidade local, condiciona o urbanismo, a gestão do espaço público e o processo decisório. Da aceitação ou não dessa posição, bem como da forma como se processa o estabelecimento do comerciante, depende a capacidade de inovação e de adaptação de uma comunidade ao devir natural do meio que a rodeia.

A proximidade inquestionável que agrega os diversos sectores comerciais com os demais ramos de actividade existentes dentro de uma qualquer vila ou cidade, cria consequentemente consequências que se alastram no tempo e no espaço, transformando decisões que à partida parecem simples e imediatas, em actos com profundas ressonâncias em espaços por vezes distantes em termos de espaço e de tempo. Na sua posição de fulcro, que depressa se transforma em factor gerador de consensos e de clivagens, o comerciante e os organismos que tutelam esta actividade são geralmente o ponto nadir da saúde social de um espaço. Se conhecem, compreendem e entendem reciprocamente as posições e os interesses dos diversos grupos que intervêm no processo, transformam a diferença em apelo ao progresso; se, pelo contrário, assumem posicionamentos antagónicos e radicais, de um ou de outro lado, depressa se cria um processo praticamente inexpugnável na sua gestação, mas que se vai paulatinamente transformando num obstáculo que inibe a vitalidade da localidade.

Em situações deste género, nas quais a tensão acumulada inibiu o consenso, as consequências foram terríficas para todos os intervenientes, assistindo-se a uma degradação geral dos diversos sectores de actividade e, mais tarde, uma espécie de processo de expurgação de defeitos que altera necessariamente todas as raízes ainda perenes do comunitarismo preexistente.

A coesão social de que hoje tanto se fala nos meios académicos, fundamentada na cumplicidade social, cultural e económica de uma determinada comunidade, baseia-se sempre na capacidade intrínseca de corresponder primeiramente àqueles que são os alicerces financeiros desse grupo. Só assim, criando ou recriando as condições para que o empresariado possua os meios necessários ao seu desenvolvimento, é que se torna possível o investimento que dá vida ao conjunto patrimonial e à agregação de vontades no todo social envolvente.

A saúde de um espaço, eivado de todas as características qu4e actualmente se consideram essenciais ao conforto urbano, como sejam os jardins, o mobiliário público, a informação, o estacionamento, e os correctos fluxos de trânsito, depende necessariamente da riqueza e da capacidade de inovação e de investimento do comércio. E muito embora, numa perspectiva inversa, se possa pensar que também o comércio interdepende da comunidade habitacional e do empresariado envolvente, o certo é que, sem o suporte efectivo oferecido por este sector em termos de acesso aos bens e de obtenção de mais valias que se afigurem adaptadas às necessidades de investimento dos organismos públicos, raramente é possível gerar comunidades equilibradas de forma natural.

Sempre que artificialmente se pondera a possibilidade de recriar fenómenos de dinamização externa ao próprio comércio, geram-se situações de anomia social que derivam do facto de não ser possível criar e consolidar uma verdadeira identidade local. Nesses espaços, nos quais o conforto habitacional se assume como elemento essencial, surgindo a actividade comercial como complemento., a generalidade dos factores de coesão e de agremiação comunitária são substituídos por conteúdos que, apesar de adaptados aos circunstancialismos, acabam por inibir uma correcta fruição do espaço envolvente e da dinâmica social em que residem. O vazio e a desordem, mesmo num cenário de grande estabilidade e controlo social, são inevitáveis se comercialmente não se criarem os espaços onde se processam as relações e onde se encontram as bases de trabalho para a consolidação de relações que promovam a cidadania.

Os ciclos de nascimento, crescimento, vida e morte dos centros urbanos, marcados, aqui e ali, pela eventual agressividade de um condicionalismo que lhes apôs um percalço pontual, são processos inexoráveis e permanentemente pertinentes. Conhece-los e compreende-los, analisando as premissas e as condicionantes que os afectaram no seu quotidiano, é perceber, de forma assaz vigorosa, a forma como se processou o desequilíbrio entre o comércio e as actividades congéneres. Mesmo em casos pontuais, nos quais uma intervenção externa, como uma guerra, uma epidemia ou outro qualquer cataclismo, afecta esse equilíbrio sempre precário, é o sector comercial o primeiro a ser afectado, desencadeando o processo de destruição generalizada do bem estar social envolvente, sendo também ele, algum tempo mais tarde, que inicia o processo de renovação e requalificação geral do espaço onde se insere.

Para perceber de forma fundamentada a verdadeira rede de interesses vastíssimos que envolvem uma determinada teia comercial, na qual as interferências externas, por parte do Estado, das Autarquias, e mesmo da iniciativa privada, assumem especial importância, é muito importante que se abordem de forma condigna variadíssimas condicionantes que ajudam a clarificar responsabilidades e a delimitar áreas nas quais se torna essencial intervir para requalificar e dinamizar.

As posições politicamente extremadas que actualmente têm caracterizado o sector comercial português, com a atribuição sistemática e simultânea de culpas pelo estado de caos que vive nesse sector em Portugal, só tem servido para alimentar discussões estéreis e inconsequentes, que nada contribuem para dotar o País de uma rede comercial estável e ao mesmo tempo dinâmica, preparada para enfrentar condignamente os desafios renovados deste século que agora começa.

A modularidade do comércio actual, baseado numa constante dicotomia entre os grandes espaços fechados, geridos de forma global e sujeitos a regras firmes e efectivas, e os espaços tradicionais, sujeitos às vicissitudes do mercado e aos fluxos ocasionais de clientes, implica uma forma completamente diversa de o abordar. Em primeiro lugar, e numa lógica de complementaridade, é fundamental que se perceba que os ciclos comerciais são uma realidade incontornável e inultrapassável, que periodicamente obrigam o comércio a crises de adaptação e de crescimento. Apesar de, como dissemos anteriormente, ser essa instabilidade um dos principais motores de desenvolvimento e de modernização no sector comercial, é preciso não esquecer, numa abordagem que se pretende globalizante e adequável ao esforço de reconversão que se espera poder inverter a situação actual, que a realidade comercial actual foi largamente modificada com o advento de novas formas de comércio, como as grandes superfícies, os centros comerciais e a internet, que muitas vezes não são compatíveis com determinado tipo de condicionantes políticas e administrativas que impedem o movimento modernizativo do sector.

É perfeitamente inconcebível, num País como Portugal, no qual a Lei do arrendamento se baseia em princípios revolucionários ditados por imaginosas sociedades utópicas de cariz socializante, que a responsabilidade geral pela situação de crise grave que vive o sector comercial tradicional, seja atribuída unicamente aos comerciantes. Esta classe, que ao longo dos anos tem demonstrado capacidade de adaptação e de crescimento, encontra-se hoje constrangida por uma pesada teia de burocracias e de condicionalismos que muitas vezes impedem a renovação e a mudança. Como é evidente, a solução de encontrar um bode expiatório que corporize o descontentamento geral, ao mesmo tempo que contribui para esconder os verdadeiros princípios que regeram a crise, é sempre apetecível e confortável. No entanto a realidade actual obriga a esforços mais consistentes que, para além de inverteram a situação, e de promoverem formas novas de responsabilização política e social, tornem viável a reconversão de um sector que se afigura essencial para o bem estar social e para a qualidade de vida urbana nas nossas cidades.

Não faz sentido pensar em modernização e revitalização do sector comercial, se nesse esforço não for possível congregar outras realidades e vontades. Sem que se construam novas condicionantes para o sector, dificilmente, pelo menos nos moldes em que conhecemos estas actividade, continuaremos a ter um comércio de proximidade que se caracterize por ser o fulcro do nosso dinamismo social e urbano.

Em segundo lugar, e principalmente se nos ativermos aos desafios mais prementes que o comércio cascalense deverá ser capaz de ultrapassar, é fundamental que se encontre uma base de trabalho que coloque em pé de igualdade os diversos vectores do sector comercial local. A título de exemplo, e avançando já um pouco no sentido de determinar causas e motivos que enformaram a crise que actualmente abala o sector, é essencial que se percebe que a legislação laboral em vigor é totalmente inibidora do esforço de modernização que todos preconizamos. A razão de ser deste facto, mais do que nas características intrínsecas e na dinâmica interna do comércio tradicional ou de proximidade, prende-se com o facto de nas grandes superfícies existirem regras diferentes que, oferecendo condições opostas aos empresários que ali trabalham, permitem uma maior rentabilidade e uma enorme capacidade de adaptação. Os horários dos estabelecimentos, obviamente diferentes nas grandes superfícies relativamente aos espaços urbanos tradicionais, são consequência directa desta discrepância legislativa e, muito embora sejam compreensíveis as razões de âmbito social e cultural que trazem aos comerciantes responsabilidades acrescidas no contacto e no garante do trabalho aos seus funcionários, não é justo nem aceitável que esses constrangimentos não se apliquem directamente da mesma forma nas grandes superfícies.

A capacidade de alteração e de renovação dos grandes espaços comerciais, facilitada por legislação congruente e eficaz, traduz-se no imediato numa enorme apetência para o acompanhamento da inovação e do progresso da actividade. No sector mais tradicional, pelo contrário, aquele que deveria ser um desafio novo que naturalmente impeliria a generalidade dos empresários a uma renovação que lhes permitisse ombrear com os novos concorrentes, tornou-se num fardo demasiado pesado e impossível de carregar.

As leis de mercado, fazendo jus à capacidade de criar estímulos que propaguem economicamente todas as iniciativas capazes de gerar dinamismo na cidade, deveriam, no que concerne ao comércio tradicional, trazer a possibilidade de se criarem condições semelhantes na sua forma de funcionar. Só assim, retraindo por força das circunstâncias impostas pelo Estado, o conjunto de empresários que por sua livre e espontânea vontade mantêm estagnado o seu negócio, será possível fazer das vilas e cidades portuguesas entrepostos comerciais livres e saudáveis que contribuam para a consolidação da nossa cidadania, e para a recriação de um ambiente urbano adaptado às nossas mais modernas necessidades.

Em espaços como o da Vila de Cascais, no qual o quotidiano se mantém marcado profundamente pelas vicissitudes da mudança, à qual se vêm juntar as inovações e melhoramentos que a actividade turística se viu obrigada a implementar, o comércio de proximidade está condenado a uma de duas soluções: ou se actualiza, rentabilizando as inúmeras potencialidades que ainda possui, e reassumindo a posição de destaque na gestão urbana como sempre aconteceu desde há mais de cem anos; ou então está condenado a desaparecer, esfumando-se num confronto desigual com os grandes centros comerciais que, um pouco por todo o lado, se têm vindo a afirmar junto dos nossos mais endinheirados visitantes.

A gestão global do espaço público, inserindo o comércio num todo mais vasto do qual também fazem parte o trânsito, o estacionamento, os jardins, a conservação patrimonial, etc., etc., é essencial para que se revitalizem e se redignifiquem os nossos mais importantes estabelecimentos comerciais. Para que tal se concretize, na perspectiva de mudança e adequação que temos vindo a frisar, têm de se criar politicamente as condições que ofereçam a comerciantes, a moradores e a visitantes, a possibilidade de fruírem conjuntamente de toda a mais valia que está inerente a um espaço que é, em todos os sentidos, dotado de qualidade excepcional.

Se nas grandes superfícies comerciais os atractivos e incentivos ao consumo são colocados na base do tríptico marcado pelo preço, pela acessibilidade e pela animação, deixando de lado aspectos essenciais como o consumo e o ambiente, é fácil perceber que ao comércio tradicional estão acessíveis uma série de condicionalismos que os colocam numa excelente posição concorrencial ou mesmo de vantagem relativamente aos primeiros. A grande questão, num comércio tradicional que está inserido num espaço urbano como o da Vila de Cascais, no qual a excelência do ambiente se conjuga com uma paisagem incomparável, é a de saber se existem ou não as capacidades de adaptação àquilo que são as premissas mais modernas da actividade. Ou seja: na Vila de Cascais, oferecendo a qualidade que os centros comerciais não estão habilitados nem habituados a procurar; oferecendo uma paisagem composta por um conjunto incomparável de imóveis em que a patine da história os matizou com uma beleza sem igual; e rentabilizando um ambiente excepcional que nenhuma espécie de climatização pode substituir; dificilmente o comércio de proximidade deveria ser afectado pelos condicionalismos concorrenciais dos grandes espaços globais.

No entanto, e apesar de tudo, a grande vantagem desses centros comerciais reside no factor novidade. Enquanto que o comércio tradicional cascalense se enforma em estabelecimentos que, na maior parte dos casos, estão instalados há várias décadas no tecido urbano da Vila, oferecendo produtos que, apesar das sua reconhecida qualidade, não são a novidade que motiva à visita e ao consumo, as grandes superfícies possuem as condições que lhes possibilitam a mudança constante e a adaptação às novas realidades e necessidades sociais. Não faz sentido, numa Vila como a de Cascais, pensar em espaços comerciais de grande qualidade como a Rua Direita, a Avenida Valbom ou o Largo Luís de Camões, sem os perspectivar num prisma de globalidade. Não faz sentido nenhum que, em termos da criação de uma dinâmica conjunta num, espaço com essas características, sejam as entidades públicas a decidir, a organizar e a pagar em exclusivo uma animação que tem como principal objectivo promover a dinamização que garanta o futuro do comércio de proximidade.
Em termos de negocio, e vislumbrando por esse meio a possibilidade de se dotar centros urbanos como os da Vila de Cascais, da Parede ou de localidades de fulgor intermédio como Carcavelos, Alcabideche ou São Domingos de Rana, das condições de dinamização que salvaguardariam a qualidade do comércio de proximidade ou tradicional, o único caminho é o da gestão global do espaço público. E nessa perspectiva, tal e qual como acontece com qualquer condomínio mesmo de diminutas dimensões, os principais interessados devem considerar o investimento na rua e na porta da sua loja como um investimento na própria sobrevivência do seu estabelecimento.

A edilidade, bem como todas as demais instituições que lidam com o erário público e que são responsáveis pelo garante da nossa qualidade urbana, devem ser responsabilizadas pelo cumprimento das suas obrigações e constrangimentos. No entanto, e por força das circunstâncias, todos sabemos que o actual sistema legislativo não nos permitir antever a possibilidade de as câmaras municipais e as juntas de freguesias serem compostas por grupos de pessoas que verdadeiramente representem os interesses efectivos daqueles que habitam nas localidades. Esse impedimento, imposto pela lógica dos partidos políticos e de fundamentos ideológicos que, a nível autárquico não fazem qualquer espécie de sentido, inibe o poder municipal da possibilidade de intervir de forma congruente no espaço urbano de índole comercial. Seria muito mais fácil, nesta lógica de cooperação institucional e de gestão global das cidades, que as diversas agremiações de interesses se juntassem e fossem capazes de concretizar planos gerais de rentabilização e de renovação da urbanidade que, ao mesmo tempo que garantissem a salvaguarda dos interesses gerais da população, fossem também capazes de intervir de forma satisfatória ao nível da concretização dos grandes desideratos que enformam a actuação comercial.

A gestão global do espaço público, criada à semelhança do que se passa no interior das grandes superfícies comerciais, pode de forma efectiva ficar entregue aos cuidados de terceiros. Nos países mais desenvolvidos em termos urbanos, ou pelo menos naqueles que, por força de erros urbanísticos cometidos no passado, se viram constrangidos a encontrar soluções imediatas e exequíveis que minorem os malefícios da sua degradada urbanidade, é usual e permanente, o acesso a empresas de capitais privados ou mistos que se responsabilizam pelo cumprimento dessas obrigações. Especializadas naquilo que é comum designar nos meios académicos por ‘urbanismo comercial’, essas empresas possuem técnicos que acompanham os processos decisórios, e que enquadram as medias avulso num pacote mais vasto que englobe a generalidade dos interessados numa determinada intervenção. É hoje reconhecido por todos que, ao contrário do que se passava há algumas décadas atrás, qualquer transformação, melhoramento, ou adaptação imposta numa qualquer loja da Rua Direita, para já não falar de alterações ao nível de horários de funcionamento ou de ramos de actividade, possui implicações imediatas no comércio e na habitação envolvente. Sem que exista uma espécie de consciência global do espaço em questão, que suscite uma intervenção crítica congruente e fundamentada nos interesses gerais, é impossível garantir que de um pretenso melhoramento circunstancial não resulte uma pioria geral da capacidade de funcionamento comercial e habitacional daquele espaço, com consequência graves para todos os intervenientes, e até para o agente que produziu a mudança.

O assumir destes princípios, baseados na criação de uma espécie de código de conduta, permitirá ao comércio cascalense o usufruto de uma série de benefícios que resultam da institucionalização de um conjunto de direitos que, de forma perene e inultrapassável, se assumem por parte de todas as entidades com responsabilidades nesta área. Por outro lado, e como sempre acontece em situações semelhantes, onde existem direitos também têm de existir responsabilidades e obrigações, às quais ficam automaticamente sujeitos todos os comerciantes que desejem ver salvaguardado o futuro dos seus investimentos e dos seus negócios. Neste início de um novo século, no qual a primazia do económico sobre o social é obrigatória, pois sem suporte de âmbito económico dificilmente se tornam exequíveis o conjunto de ideias que podem melhorar a componente de apoio social que todos sabemos ser fundamental, o comércio tradicional ou de proximidade deve ser sujeitos a normas e a critérios que façam convergir os seus interesses com os interesses dos demais interessados na criação de uma vivência socialmente saudável. Dentro de um espaço urbano, no qual a cooperação cada vez se faz mais sentir, e na qual a interdependência, numa lógica de reciprocidade, obriga à criação de formas novas de cooperação institucional, o papel do comércio reassume especial relevo e pertinência.

Para fundamentar uma cidade viva e perspicaz, permanentemente habilitada para se auto-conhecer e para integrar o factor novidade sem com isso constranger a possibilidade de se promover os aspectos relacionados com a tradição, é essencial que se perceba que não pode existir equilíbrio urbano sem que se estabeleça um relacionamento congruente entre as diversas partes. Comércio, habitação e serviços, para utilizar expressões de uso comum que traduzem o essencial da forma como a degradação progressiva das cidades tem vindo a fazer-se sentir junto daquelas que nelas habitam ou trabalham, fazem parte de um todo que é totalmente indissociável. O freguês do comerciante, até aqui aquele que habitava ou trabalhava nas redondezas e que, por isso mesmo, encontrava nas imediações os bens e serviços de que necessita para poder sobreviver, teve acesso a meios de transporte, públicos e privado, que alargaram de sobremaneira o espaço de funcionamento do comércio tradicional.
Muito embora discordemos, por princípio doutrinário, daqueles que querem fazer dos diversos núcleos urbanos consolidados do Concelho de Cascais um grande espaço global, não podemos deixar de frisar que, sem entender o conjunto de mudanças que afectaram a vida quotidiana das comunidades, dificilmente se poderão encontrar soluções eficazes para resolver os problemas que afectam o comércio tradicional. Se há alguns anos, o habitantes de Alvide, de Matos Cheirinhos, da Abóboda ou da Charneca, circunscrevia o seu espaço de mercado ao eixo marcado pela capacidade de confortavelmente caminhar, reduzindo para um ou dois mil metros a área de intervenção e de capacitação negocial do comerciante, a facilidade de acesso ao conjunto de transportes que hoje existe, alargaram muito esse âmbito, fazendo assim com que um determinado tipo de negócio, pouco rentável, pouco evoluído e sem concorrência numa qualquer localidade, passe, a partir deste momento, a sentir a concorrência de um seu colega situado num local mais distante, mas possivelmente mais acessível ao automóvel e ao parqueamento do habitante local. A modificação das relações dinâmicas que afectam a relação comercial, principalmente quando nos debruçamos sobre a sua componente mais tradicional, trouxe implicações importantes que muitos comerciantes tardaram a compreender.

É neste sentido mais concreto, sobretudo eivado da necessidade de gerar consensos e equilíbrios que garantam a sobrevivência ou, pelo menos, a evolução da maioria, que advogamos uma forma nova de entendimento dos fundamentos da relação negocial, apelando à consolidação as actividades económicas existentes a partir de uma parceria estratégica com os demais intervenientes no todo global que forma a nossa urbanidade.

Pensar no comércio de Cascais do Século XXI é sobretudo considerar que essa actividade não pode continuar a possuir as mesmas características de sempre. No entanto, e para inverter a tendência de relativizar o conjunto de circunstancialismos que envolvem a prática comercial, não pode também deixar de sublinhar, num esforço de frisar permanentemente as suas principais mais valias, grande parte dos fundamentos estratégicos que historicamente o caracterizaram. Nesta dicotomia entre a manutenção do melhor e a anulação do pior, encontrará o comerciante cascalense do futuro, o pano de fundo que servirá de cenário à total reconversão e revitalização da sua actividade.


MUNICIPALISMO COMERCIAL


Muito embora seja um dos temas que mais vezes volta à discussão pública, pelo seu cunho de tradicionalidade e de alargada aceitação, o denominado municipalismo português está longe de ser bem conhecido em Portugal.

Assente na prática corrente de que as actuais estruturas municipais resultam do elevado sentido organizacional do ocupante romano, quando na penumbra do passado os povos intitulados indígenas se viram constrangidos ao jugo opressor do invasor itálico, o Município foi sempre considerado como parte integrante da nossa cultura e, pelas suas características intrínsecas, parte também da generalidade das nossas actividades comunitárias.

No entanto, e apesar de tudo, estudos recentes parecem apontar origens diferentes e, consequentemente, formas díspares de influência municipal na organização das nossas principais estruturas urbanas.

A criação de uma investidura municipal, durante o período de ocupação romana, baseava-se na estruturação e na organização da vida nos diversos locais a partir do denominado municipium, que conferia um determinado estatuto jurídico a algumas cidades. Esse estatuto, assumido como princípio organizador que tornava fortuito qualquer espécie de esforço de fuga ao controle administrativo promovida pelos itálicos, Ter-se-ia consolidado em termos eficazes, agregando estruturas organizativas autóctones e preexistentes, que depressa se vincularam aos benefícios desta importante inovação. Dentro destes municipiuns, mais do que em qualquer outra parte do território romano, era possível encontrar formas efectivas de gestão do espaço público e das relações interpessoais, consolidando assim uma cidadania que suportou a nossa Identidade Nacional.

Foi nessa génese longínqua, na qual funcionavam amiúde as lógicas impostas pelo exterior, que se criaram as condições efectivas para que, alguns anos mais tarde, viéssemos a assistir ao surgimento do concelhos tal como hoje os conhecemos.
As diversas crises que se instalaram nos domínios romanos, principalmente a partir do momento em que se inicia o processo de desagregação política da unidade anteriormente existente, tiveram repercussões de índole diversa nos diversos pontos do território imperial. Mesmo nos espaços mais longínquos, como era o caso da Península Ibérica, o desmembramento da economia totalitária do império, centralizada no controle efectivo exercido por Roma, acabou por tornar inevitável o choque comercial que se ficou a dever ao aumento excessivo das liberdades de movimento e, consequentemente, das facilidades de transação. O espaço enorme até aí existente, no qual o trânsito se fazia com relativa facilidade, tornando muito eficaz o processo de pequena produção e venda de produtos agrícolas e hortícolas, transformou-se de repente numa área onde a instabilidade grassava e no qual as dificuldades de trânsito e de comercialização se avolumavam.

Os pequenos proprietários rurais que exploravam pequenas parcelas de terreno nesta zona mais ocidental do império, nas quais encontravam a viabilidade que lhes permitia viver desafogadamente, dependiam da capacidade de escoamento de produtos, bem como dos muito benefícios fiscais e portageiros que o império, com o seu cunho forte, lhes concedia. Como todos os caminhos iam dar a Roma, facto incontornável num espaço político onde o fundamento económico se baseava na segurança e na integridade dos cidadãos, fácil se torna perceber que o lucro se tornava num objectivo de fácil acesso, e o reinvestimento nas explorações um modo de vida de grande rendibilidade.
A inversão deste quadro geral, sobretudo com o início das investidas nórdicas do povos designados comummente por bárbaros, veio impor formas novas e drásticas de reorganização comercial. Nos espaços até aí seguros pelo controle de Roma, criaram-se zonas onde o trânsito se tornou cada vez mais difícil, inseguro e caro, factos que consolidaram uma crise que se iniciou a nível social e político bastante tempo antes. Os produtores locais, levando atrás de si os muitos intermediários que contribuíam para a criação da qualidade especulativa nos domínios romanos, entraram num processos de crise que impôs o fim dos grandes mercados e o estabelecimento de formas mais arcaicas de organização económica e empresarial.

As parcelas de terreno de dimensões diminutas que até aí, por força das circunstâncias políticas, se haviam revelado extraordinárias formas de rendimento, depressa se tornaram fardos pesados demais para exploradores que poucos ou nenhuns conhecimentos tinham de formas alternativas de assegurarem a rentabilidade dos seus espaços. Manietados por formas cada vez mais opressivas de jugo económico, dos quais fizeram parte os empréstimos e outras formas de acesso ao capital fiduciário, os pequenos proprietários foram perdendo o controle dos seus terrenos, em prol de senhores de grande importância que, de forma paulatina e praticamente irreversível, foram controlando parcelas de terra de cada vez maior dimensão e, consequentemente, de maior rendibilidade comercial.

Esta questão do acesso à riqueza, sobretudo no que concerne à capacidade de investimento no negócio, é de extraordinária importância neste processo. Tal como hoje, os comerciantes romanos necessitavam de se adaptar ao processo de mudança que estava em curso, e que obrigava à criação de formas alternativas de ultrapassar as vicissitudes impostas pelo novo sistema. A partir do momento em que o trânsito terrestre se tornou inviável, por força da falta de segurança e do valor extraordinário das portagens que foi aumentando com o aumento da concentração da riqueza fundiária, somente os grandes produtores e intermediários, fazendo uso de barcos de maiores dimensões, com um risco mais elevado, e exigindo mais disponibilidade, passaram a ter a capacidade de aguentar a crise que passou a caracterizar o sector.

E das duas uma: ou os pequenos proprietários tinham essa caopacidade de inovar, recriando unidades de maiores dimensões que resultassem da conjugação dos esforços e das capacidades individuais de cada um deles, ou, alternativamente, sucumbiam pesadamente (como veio a acontecer), sujeitos à tutela dos mais poderosos. A Villa Romana, espécie de cadinho de diminutas dimensões do actual Concelho, mais não é do que a conjugação do conjunto de pequenas parcelas de terrenos que haviam suportado individualmente o período de maior pujança comercial do império Romano e que, por força das mudança, haviam sido totalmente embutidas em propriedades de maiores dimensões. É aqui, nestas vilas mais vastas e plurifacetadas, que trabalham,, agora por conta de outrém, aqueles que outrora haviam sido os pequenos proprietários que a romanidade fez crescer e sobreviver.

Nas novas unidades agrárias do império, os ritmos de produção tornam-se muito mais diversificados, diminuindo assim a dependência estrutural de formas transitórias de governabilidade. Mais do que de Roma, que influi de uma forma cada vez mais ligeira na economia destes espaços longínquos, os colonos e cidadãos dependem sobretudo da capacidade organizativa e estruturante do seu senhor local. De acordo com José Hermano Saraiva (1), a villa romana assume-se como o principal garante da manutenção do estatuto jurídico do municipium, agregando em seu torno conjunto de condições que o fazem evoluir para formas ,modernas de governabilidade: “A Vila é uma extensa propriedade – composta pela terra directamente explorada pelo proprietário ou pelo vílico seu representante, e pelas numerosas parcelas desde o início confiadas à exploração individual dos servos, ou pelas que ao núcleo original se foram adicionando lentamente, amanhadas agora pelos colonos livres, descendentes de antigos pequenos proprietários”. Mais à frente, quando desenhava aquelas que eram as linhas mestras que orientavam a organização administrativa das villas romanas, o mesmo autor não teme exagerar quando considera que a vivência colectiva da comunidade ibérica, mais do que pelo esforços político do antigo império, se institucionalizou a partir da vida prática do quotidiano destas propriedades: “No seu conjunto, a vila constituída um sistema que se caracterizava por ser ao mesmo tempo uma unidade jurídica – em que toda a autoridade pertencia ao dominus – e uma autarquia económica que bastava às suas necessidades. Todos os problemas nascidos da vida colectiva – necessidades de abastecimento, a administração da justiça, a direcção da lavoura, a regulamentação dos pastos comuns aos colonos das parcelas, a cozedura do pão, o fabrico do azeite e do vinho -, tudo isso se fazia na residência senhorial, verdadeira capital do pequeno mundo económico da vila”.

A institucionalização deste modelo, já muito próximo daquele que vigorará durante toda a Idade Média portuguesa, e que se manterá com poucas modificações até ao início do Século XX, é assim o resultado de alterações efectivas sofridas ao nível do grande mercado imperial romano que, como é evidente, acabaram por ter um grande impacto nas economias locais e, principalmente, junto dos produtores e comerciantes das pequenas vilas e aldeias desta parcela ocidental do território romano. Os agentes mais residuais deste sistema, mesmo lutando de forma atroz contra os malefícios provocados pela mudança política, ficaram sujeitos às leis inexoráveis do tempo, submetendo-se àqueles que haviam sido capazes de se adaptar à nova realidade e de sobreviver de forma por vezes difícil num vale de desencantos promovidos pela deslealdade dos seus servos.

A recriação de formas novas de organização local, nas quais a produtividade se sujeitava à feroz concorrência do escoamento de produtos, o comércio foi sempre elemento de primordial importância, tendo sido nesta actividade que se fundamentaram todos os esforços modernizativos deste início de uma época nova. A qualidade de produção, bem como a rapidez e o preço, até considerados elementos de Segunda importância num espaço que se baseava unicamente na mais valia oferecida pelo império para sedimentar a sua opulência, tornaram-se elementos de essencial importância, factor que constrangeu e obrigou à criação de formas novas e alternativas de sustentação económica.

Nos novos campos de grandes dimensões a produtividade deixou de se reger pela capacidade ou conhecimento do explorador fundiário. Pelo contrário, numa área mais vasta na qual assumiram essencial relevância os muitos contributos oferecidos por novas forma técnicas, é a complementaridade entre culturas e produções, que determina a paisagem e a forma de exploração da terra. A prática comercial e a rentabilidade produtiva, deixa assim de estar sujeita unicamente Às vicissitudes da natureza, passando a agregar a capacidade e a iniciativa do conjunto dos habitantes da villa e, por vezes, da personalidade do seu dominus ou senhor.

Nos períodos subsequentes, principalmente durante a dominação visigótica e árabe, embora se tenham modificado os princípios activos que suportavam a orientação da actividades, muito pouco se alterou no panorama organizativo da Península Ibérica e daquele que é actualmente o território português.

A transmutação do poder romano para o poder oriundo das monarquias nortenhas, nascidas num berço de génese guerreira e muito pouco preparadas para enfrentar os desafios organizativos impostos por um pedaço de terra que, pela sua situação e condicionalismos, se afastava daquele que era até aí o estereótipo reconhecido em grandes partes do território sob seu controlo, teve como principal consequência na organização desatas villas a substituição progressiva da figura do senhor pela do novo conquistador recém chegado. Os grandes senhores romanos de outrora, assumindo a sua condição de colonos em território que não era seu, depressa perceberam a forma de funcionamento do novo espaço, integrando-se perfeitamente na nova realidade e mantendo estatuto e luxo, num local onde o seu conhecimento e capacidade administrativa era o único garante da produtividade da terra.

Longe da realidade de outros tempos, nos quais a pacividade do dia-a-dia deu lugar a constantes lutas e querelas virulentas, os colonos e senhores contrariavam as incertezas fechando-se sobre os seus espaços internos, e evitando a tudo o custo sair fora da estrutura defensiva que economicamente utilizaram para se proteger. Os pequenos feudos nascentes, aproveitando a organização da villas senhoriais, deram lugar a verdadeiras unidades de administração local, nas quais a supressão das necessidades de todos foi sempre o principal objectivo de funcionamento. Agora que estavam esgotadas todas as possibilidades de gerir de forma conveniente negócios de longo curso, porque a realidade individual, circunscrevendo ao espaço de cada villa a unidade máxima de expansão comercial dentro do feudo, as impedia, era necessário encontrar no seio do grupo, através de uma especialização provavelmente artificialmente criada e fomentada pelos senhores dos novos espaços, a generalidade dos bens e serviços de que todos dependiam para a sua sobrevivência.

O comércio, espécie de actividade em permanente perigo de extinção sempre que um acontecimento muda ou transforma o rumo dos acontecimentos, depressa reassume o seu papel de fulcro social, reorganizando-se em moldes renovados no seio de espaços mais pequenos. O constrangimento imposto a esta actividade, fruto do nascente desafio provocado pelas novas refregas, desvirtuou um pouco a realidade organizativa local, uma vez que, de acordo com as regras impostas pela força bruta do invasor meliante, o controle efectivo do pseudo Estado passava a depender exclusivamente da capacidade efectiva de efectuarem os seus pagamentos.

Nesta lógica confrangedora, a irracionalidade do processo sobrepunha-se à tradição remanescente. A produtividade de cada um, mais do que para o reinvestimento, destina-se em exclusivo ao pagamento das inúmeras taxas e emolumentos impostos pelos novos poderes. Ao colono trabalhador, restava somente a esperança de, num futuro mais ou menos longínquo, e possivelmente à semelhança do que havia acontecido num passado recente, se encontrarem outros povos na circunstância de controlarem de forma perene o espaço agora castrado da sua capacidade de evolução crescente.

A invasão berbere do Século VIII, com a chegada de um poderio militar altamente marcado pelos novos conhecimento científicos e técnicos, veio a assumir-se como a mudança que propiciou nova alteração geral do sistema urbano peninsular e mais um contributo para a sua aproximação ao modelo municipal que agora pretendemos tratar.

Ao mesmo tempo que cria uma barreira nova perante o ocidente cristão, ao impor o grande espaço muçulmano como o centro comercial da excelência peninsular, o domínio árabe abre também novas portas até aí de acesso impossível ao comerciante ibérico. Na especificidade portuguesa, nascida do contraste oriente/ocidente, bem expresso nos mais variados aspectos da nossa cultura, a chegada do sarraceno representa o princípio de uma nova forma de estar e de viver que se manterá em permanência durante quase oitocentos anos de história Nacional. O Mar Mediterrâneo, até esse momento uma espécie de grande lago romano, no qual a navegação se processava com relativa facilidade e segurança, vai-se progressivamente transformando num espaço de fronteira e de demarcação territorial. As cidades ibéricas, permanentemente eivadas da necessidade de escoar os produtos que resultam da sua fertilidade, depressa vão assumindo o seu espaço neste novo mundo islamizado.
De acordo com Henri Pirenne (2), numa das suas mais conhecidas obras sobre o desenvolvimento das cidades na Idade Média, a instauração de um domínio islâmico marca uma clivagem definitiva na forma de actuar da velha Europa. Os espaços até aí consignados ao culto cristão, em torno do qual se organizavam a maior parte das actividades comunitárias europeias, vão-se adaptando às novas circunstâncias, e o grande espaço comercial enraizado na enorme quantidade de terras do Império Romano, é substituído progressivamente pela enormidade do Império Islâmico que absorve progressivamente o Império Persa, o Império Bizantino, a Síria, o Egipto, a quase totalidade do Continente Africano e, finalmente, a antiga Espanha. Na opinião de Pirenne, quando se esgotou a capacidade ofensiva dos exércitos islâmicos, o Mundo Ocidental está irremediavelmente transformado, e as cidades europeias, longo do legado cristão de outros tempos, assumem-se como autênticos entrepostos comerciais dos muçulmanos: “Mas se a sua força de expansão estava esgotada, mudou a face da Terra. O seu súbito impulso destruiu o mundo antigo. Foi um facto na comunidade mediterrânica em que este se agrupava. O mar íntimo e quase familiar que reunia todas as partes do império vai formar uma barreira entre elas. Em todas as suas margens, desde há séculos, a existência social, nos seus caracteres fundamentais, era a mesma, a religião a mesma, os costumes e as ideias as mesmas ou muito próximos de o serem. A invasão dos bárbaros do Norte não modificara nada de essencial nesta situação. E eis que subitamente os próprios países onde nascera a civilização lhe são arrancados, o culto do profeta substitui-se à fé cristã, o direito muçulmano substitui o direito romano, a língua árabe toma o lugar da grega e da latina. O Mediterrâneo fora um lago romano; tornou-se, na sua maior parte, um lago muçulmano. Doravante, separa, em vez de unir, o Oriente e o Ocidente da Europa. Rompeu-se o laço que ainda ligava o Império Bizantino aos reinos germânicos do Oeste”.

A expressão deste desgosto, sentido de forma atroz pelos povos ditos civilizados do norte da Europa, pouco ou nenhum sentido faz numa Península Ibérica que, pelas vicissitudes próprias da sua História, desde há muito que vivia de forma diferente. O controle latifundiário das terras, que analisamos anteriormente e que havíamos considerado uma espécie de cadinho a partir do qual se formaram os modernos Concelhos, é, na perspectiva dos que neles trabalham, um jugo opressor que em nada contribui para a sua felicidade. E nesta perspectiva, sobretudo tendo em conta que a grande inovação árabe, precisamente resultante das suas necessidades transaccionais e comerciais, foi a de ter trazido para o ocidente europeu uma forma nova de ser e de estar na qual a tolerância se assumia como principal característica, a chegada do sarraceno, acompanhando de inovações técnicas e científicas que melhoraram substancialmente a produção agrícola, foi visto e sentido como o caminho mais fácil e viável para a liberdade.

Os colonos de outrora, que já haviam sido, algumas gerações antes, os pequenos proprietários das pequenas parcelas de terra que incessantemente cultivavam, vêem agora desaparecer do seu horizonte o proprietário latifundiário, o senhor da villa romana e o Homem Bom daquele espaço global, para o substituírem por formas novas de governabilidade.

Algumas inovações técnicas trazidas pelo islão, por seu turno, vêm também trazer novidades à gestão da terra e da produtividade do trabalho. O moinho de vento, por exemplo, aliado a outras formas de exploração da terra, fazem aumentar a produtividade e, consequentemente, a qualidade de vida dos habitantes ibéricos. Os que outrora dependiam do senhor, que detinha os principais conhecimentos técnicos que lhes garantiam o controle efectivo sobre o fruto do trabalho e da produção dos seus colonos, passavam agora, com um investimento mais reduzido e muito mais adaptado às suas capacidades produtivas, a deter a possibilidade de construírem o seu próprio engenho que lhes permitia moer os cereais, produzir o pão, e tornarem-se mais independentes do jugo do antigo proprietário.

Libertos das obrigações de serviços militar e de participação nos exércitos, que ficavam adstritos aos que possuíam direitos e estatutos no seio da comunidade bárbara, os trabalhadores rurais viram no invasor muçulmano não uma nova forma de opressão, mas sim uma oportunidade única de criarem os meios necessários à sua efectiva independência.

A chegada ao islão à Península Ibérica, modificando por completo a pesada teia de relacionados e de dependências sociais e políticas estabelecidas entre os que detinham o poder e aqueles que se viam obrigados a sujeitar-se às vicissitudes e à vontade dos seus senhores, fornece independência, autonomia, e cria as condições económicas para que os cidadãos encontrem formas de fundamentar a sua autonomia política.

No seio das antigas villas romanas, eivadas do poder narcísico do grande senhor, os trabalhadores braçais vão conseguindo recontrolar as suas pequenas courelas e veigas, que se iam demarcando, numa lógica de paulatina autonomia, das enormes e desconformes unidades agro-urbanas de outros tempos.

Apesar de se manterem grande parte das antigas necessidades comuns, como por exemplo a gestão comunal das pastagens, a distribuição de águas e o abastecimento de géneros de primeira necessidade, é cada vez mais evidente que a desagregação das unidades politicamente consolidadas de outros tempos, se foi esbatendo no decorrer do domínio árabe, dando lugar a formas alternativas em que a gestão do espaço privado e do espaço público se iam mesclando, ao mesmo tempo que recriavam, decalcando o modelo administrativo das villae de origem romana, uma unidade nova já muito próxima daquilo que consideramos ser o município actual.

Nestes novos espaços, e contrariando o domínio hegemónico do senhor de cariz feudalizante, o gestor público assume o seu papel de orientador e de garante da ordem geral, funcionando ao sabor das necessidades dos pequenos proprietários e habitantes e fornecendo-lhes a possibilidade de institucionalizarem oficial e definitivamente uma forma nova de estarem nos espaços.

A delimitação do espaço administrativo e económico entre o islão e o ocidente, sobrepondo-se de formas arcaicas de gestão do espaço, abriu caminho à cooperação, ao esforço e à responsabilidade, gerando uma consensualidade sentida e interiorizada por todos que deixava já antever no horizonte uma clivagem cada vez mais efectiva com a Europa Ocidental, e uma aproximação aos modelos de gestão urbana do Oriente.

Segundo alguns autores conceituados, é precisamente nesta viragem que reside grande parte da autonomia portuguesa. Ao contrário dos seus congéneres europeus, Portugal está habituado, desde tempos que chegam a anteceder a sua independência política, a lidar com formas diferentes de viver. Não faz sentido, por exemplo no fim da Idade Média, quando toda a Europa se envolve em lutas e guerras intestinas nas quais as motivações políticas impõem uma cortina diáfana que não permite aos povos anteverem a racionalidade de tais procedimentos, que os portugueses se não virem para os povos mais pacíficos do Oriente, encontrando através deles, o caminho novo e congruente que alicerçará os descobrimentos, e alterará, de forma insuspeita e muitíssimo consequente, a totalidade da face ao Mundo então conhecido. Expoente máxima da capacidade comercial portuguesa, os descobrimentos e a renascença Nacional, mais não são, na intrinsecalidade dos seus virtuosismos próprios, do que o resultado de uma aculturação permanente imposta pela assumpção de modelos de gestão trazidos pelo islão do oriente.

Damião Peres, na sua “História dos Descobrimentos Portugueses” (3) abre as suas considerações sobre o conjunto de circunstancialismos que envolveram o arranque do processo expansionista precisamente com algumas alegações sobre o domínio islâmico. De acordo com este autor, mais do que à herança romana, que pouco ou nada trouxe de novo em termos do incremento da produtividade ibérica e europeia, o controle islâmico veio agregar às suas inovações e descobertas, toda uma nova panóplia de saberes que consolidaram a produtividade e deram base à possibilidade de se alargarem os mercados. O incremento das motivações económicas que estiveram por detrás das descobertas, aliadas ao saber, à vontade e ao misticismo português, ficou a dever-se à herança cultural de mais de quatro séculos de poderio muçulmano: “Assim, ao domínio árabe do Mediterrâneo atribui uma moderna corrente historiográfica económica o mérito de ter favorecido, logo nos primeiros tempos da sua expansão para Oeste, o movimento comercial europeu, pelo descongestionamento, como hoje se diz, do ouro guardado nos tesouros sírios e egípcios e pelo incremento da exploração aurífera sudanesa; e é também facto sabido que, sobretudo na Península Hispânica, ele concorreu para o progresso da agricultura e da indústria, tornando-se Córdova, no Século X, um centro industrial criador, e simultaneamente um importante facto de cultura intelectual”.

A pujança económica que resultou do controle árabe, aliada ao fulgor produtivo que caracterizou a sociedade ibérico do início do segundo milénio, transformou radicalmente os usos e os costumes dos povos que habitavam nestas paragens. Os modestos mercadores que, no decorrer dos últimos tempos da ocupação romana e durante o período de vigência das monarquias bárbaras do norte da Europa, assumiam papel preponderante na organização da economia local, deram lugar a grupos mais organizados e de maiores dimensões que, rentabilizando o manancial produtivos dos pequenos proprietários, e simultaneamente viabilizando em termos financeiros essas mesmas explorações, foram abrindo nos rumos e mercados, e contribuindo para a institucionalização de uma forma diferente de viver. Damião Peres, quando analisa as repercussões económicas deste primeiro impulso expansionista, ou pelo menos o processo de génese do conjunto de alterações que então se fizeram sentir, relaciona as modificações com os árabes, fundamentando a opinião atrás exposta, e oferecendo provas de que a alteração da vida nas cidades foi, antes de mais, uma consequência directa da forma como se alterou o próprio comércio: “Pouco a pouco, foi-se assim operando uma crescente movimentação interna de produções, que das zonas de maior ou única existência, por utilização de excedentes ou por conveniências de permuta, se encaminhavam àquelas onde escasseava e eram desejadas, cruzando-se, em quantidades cada vez maiores, nas vias comerciais traçadas no solo da Europa, desde a Península Hispânica até aos confins das terras bálticas e russas e desde a orla do Mediterrâneo e seus mares às costas do Mar do Norte, os vinhos das regiões temperadas, as peles e as madeiras escandinavas e bálticas, as peles e os escravos das terras eslavas, o âmbar do Báltico, as lãs de Espanha ou da Inglaterra, o ferro da Suécia, o sal marinho das costas ocidentais, as pescarias do Mar do Norte, além de outros géneros de menor vulto, que seria ocioso enumerar”.

Os centros urbanos ibéricos, eivados da necessidade de progresso imposto pela nova elite dirigente, depressa perceberam que o caminho a seguir deveria centralizar-se na concretização de um plano geral que salvaguardasse a organização de formas alternativas de administração.

Os espaços da cidade, até então centrados naquele que seria o fulcro característico de todas as cidades medievais, deixou de ser o local mais próximo do lugar onde vivia a classe dirigente, para se deslocar para o espaço onde se praticavam a maior parte das relações comerciais. O mercado, pólo aglutinador de interesses simultaneamente díspares e comuns, era nas cidades de índole árabe, o ponto fulcral a partir do qual se estabeleciam as regras urbanas do povoado.
Era no mercado, aliás, que se estabeleciam todas as actividades não oficiais da cidade muçulmana, uma vez que a Medina, espécie de espaço de elite nas urbes islâmicas, estava reservado a acontecimentos que nada tinham a haver com o quotidiano das populações.

Contrastando em definitivo com as características impostas pelas civilizações que haviam sido forjadas a partir do ferro cunhado pela civilização greco-romana, fazendo jus à beleza e ao rigor estético, as cidades islâmicas caracterizam-se pela sua simplicidade e funcionalidade. O Corão, fonte suprema de onde emanavam todos os ensinamentos, exigia que o espaço comum fosse destituído de adornos, uma vez que tais aspectos decorativos, impediam uma correcta adoração a Deus e o ritual de consagração ao profeta, afinal único princípio efectivo do islão.
Por esse motivo, o espaço urbano da cidade muçulmana divide-se entre o interior e o exterior das habitações. No interior do lar, templo vivo de adoração ao Deus Supremo – Ala –, quase tudo é permitido, e aí, num clima de sumptuosidade que resulta da condição social e económica de cada um, o clima de ostentação contrasta com o exterior onde quase nada é possível fazer. A noção de rigor familiar, vincada na rigidez de uma religião que, em tradução literário significa obediência, é no islão um dos princípios básicos de existência social. Dentro da família, num clima de sã convivência e de constante aprendizagem e de troca de experiências., o muçulmano encontra a liberdade para aproveitar os muitos benefícios concedidos àqueles que cumprem os mandamentos de Ala e a vontade do Profeta.

É aliás o próprio profeta quem, enveredando por um caminho de salutar convivência familiar, define com estreiteza o espaço que se destinava ao uso comum do muçulmano. Nas cidades muçulmanas, onde o comércio vivo mistificava um pouco daquilo que eram as raízes comuns entre os defensores dos diversos credos existentes, o espaço público não tem qualquer importância e é usual, mesmo em urbes bem desenvolvidas e consolidadas, encontrar arruamentos outrora principais que se vêm cortados, sem qualquer espécie de respeito pela sua funcionalidade pública, por anexos ou acrescentos de habitações particulares. O beco, hoje considerado um erro urbanístico de projecção, foi sempre, nas cidades islâmicas, a marca indelével da importância atribuída à família e ao espaço situado no interior das portas.

Muito embora se conheça muito pouco da vila islâmica de Cascais, apesar de ser possível traçar um quadro orientador comum que se inicia no período romano e se desenvolve até ao grande terramoto de Lisboa de meados do Século XVIII, outras localidades das redondezas apresentam traços de origem sarracena que são demonstrativos da forma como a gestão do espaço público influiu na sua existência comercial.

Em Sintra, por exemplo, a determinação da génese urbana da localidade fina-se naquilo que são os resquícios das primeiras formas de ocupação islâmica. Ainda hoje, quando o transeunte passeia descontraidamente pelas ruelas estreitas da vila romântica assim recriada pela pena sonhadora de poetas e arquitectos do Século XIX, encontra amiúde pequenos pormenores que ajudam a perceber as raízes fundamentais que aquele espaço possui no terreno norte africano.

Ao contrário do que pretenderam fazer crer algumas correntes historiográficas de outros tempos, a chegada dos muçulmanos à península Ibérica foi sinónimo de riqueza, prosperidade e desenvolvimento. A destruição por vezes resultante dos confrontos que possibilitaram a conquista, era imediatamente substituída pelo esforço reconstrutivo dos novos senhores, bem patente na forma como a grande maioria das estruturas cristãs pré-existentes se mantiveram , apesar de alterações de pormenor relativamente ao culto e ao ritmo de viva que nelas se praticava. No caso já mencionado de Sintra, Concelho a partir do qual se constituiu, já no Século XIV, a independência jurídica de Cascais, essa forma de estar e de constituir a cidade é bem visível, conforme se pode vislumbrar nas palavras eloquentes de Sérgio Luís de Carvalho (4): “Assim se instalaram os árabes na região de Sintra a Colares, moldando duas povoações onde bem patente se observava a pujança de uma natureza no seu esplendor, e onde se desenvolvia o «amor pela liberdade», timbre de caracteres nobres. Aí implantaram as suas quintas, com seus pomares e vinhas, com seus riachos e fontes, as chamadas «almoínhas» (do árabe al-munya), tão frequentes nos contratos medievais sintrenses. Sem prejuízo de considerarmos as esparsas habitações que na zona já existiam, e sem olvidar alguma ocupação humana desde imemoriais tempos na zona (ver a propósito os estudos mais recentes de Cardim Ribeiro), o que a nós se nos afigura certo é que a «urbe» como tal, é de assentamento muçulmano. E deste modo, chegou à região de Sintra a civilização árabe; e desde modo foi edificado na própria vila o Paço de Sintra, morada dos «walis» (governadores), testemunho maior dessa mesma civilização, marca desse fulgor artístico por todos ao tempo reconhecido.
O esforços de desenvolvimento da cidade por parte do ocupante muçulmano, oferecendo-lhe um esplendor que raramente o anterior senhor cristão se vira habilitado a conferir-lhe, fez dos povoados que se criaram ou se adaptaram nesta época, uma espécie de modelos urbanos, nos quais as diversas actividades do quotidiano, se arrumavam em parcelas e espaços que fomentavam a especialização e a organização sistemática. Mesmo não usufruindo de um rigor de planejamento que as ajudasse a criar uma tipificação comum, as orientações programáticas oferecidas pelo Corão são normalmente suficientes para recriar na cidade muçulmana, um ambiente comum que lhes confere um romantismo sem igual. Na obra já mencionada, e depois de calcorrear o conjunto sinuoso das velhinhas ruas sintrenses, nas quais a falta de regra e de objectivo parece um aspecto remanescente, o autor da “História de Sintra” explica em termos mentais e culturais a forma como se processava o surgimento da dicotomia urbana sintrense: “Falemos claro: as cidades muçulmanas de um modo geral não possuem um plano inicial de base, nem se desenvolvem de acordo com qualquer esquema estabelecido. Para o islâmico, o espaço privilegiado não é a rua, mas a casa. É aqui que o crente reza, jejua, medita e descansa; é aqui que vive a intimidade da sua intimidade e repouso. A rua torna-se meramente o espaço de comunicação entre casas, tanto mais dispensável quanto mais soalheira é. Não é na rua que os crentes convivem quando necessário, é na mesquita, ponto sempre central de qualquer urbe; não é na rua que as mulheres convivem, é no recato dos pátios interiores, longe dos olhares forasteiros e perto dos regatos frescos”.

As actividades comunitárias, essencialmente masculinas pelas características próprias de uma religião que se fecha no essencial das palavras do profeta, são assim relegadas para um plano secundário na cidade muçulmana. O comércio e o mercado, fundamental numa região como a da várzea sintrense, onde a produtividade era enorme, e o excedente permitia alicerçar uma excelente relação com a capital em Lisboa, processava-se em torno do recatado confronto de saberes dos anciãos de cada família. A especialização familiar, com cada membro a representar um papel bem definido e assaz complementar em relação aos desempenhados pelos restantes, determinava que a forma de organização da cidade fosse pouco importante para a rentabilidade do negócio.

A compra a venda de produtos, bem patente, ainda hoje, nas milenares feiras e romarias que existem em espaços onde a ocupação muçulmana foi efectiva, faz-se essencialmente no mercado público, sem estruturas especializadas neste tipo de actividade, ou de forma ambulante, de casa em casa, do recato individual da família, para situação idêntica do vizinho mais próximo.

A figura do saloio, ainda hoje conotado com o ocupante islâmica das envolvências da capital, é em si mesmo o repositório mais fidedigno da organização comercial que regia as urbes de origem magrebina. O pão saloio, o queijo saloio, e os demais produtos ligados e relacionados com esta forma cultural, identificam uma forma de estar e de ser que se manteve incólume neste País durante quase novecentos anos. A componente comercial da vivência saloia, num termo de Lisboa que assim caracterizava todos aqueles que compravam e vendiam os produtos agrícolas e hortícolas, conferia ao saloio uma autonomia que lhe permitia rentabilizar os seus tempos livres.

Na cidade muçulmana, mais do que nas antigas urbes cristãs, o acto de comprar e vender associava-se em permanência ao culto que acompanhava a generalidade das actividades do magrebino. Num dos seus interessantes artigos sobre a génese da portugalidade, Teresa Mesquitella sublinha que o carácter saloio estava vinculado também à actividade comercial que em permanência se exercia neste tipo de espaços. Segundo esta autora, o tempo de lazer do saloio é dedicado às feiras e às romarias, facto que consolida uma forma alternativa de vivência comercial que se instituirá nesta altura e se propagará ao longo dos séculos até à actualidade (5): “[...] ali se vende de tudo, do gado aos cestos, das alfaias agrícolas, legumes, enchidos, queijos, ovos, pão, bolos saloios, sementes, frutos, flores para plantar, cravos, amores perfeitos, ligam-se com fetos, apertados num cordel, para manter a humidade. Patos, galinhas, perus, há de tudo um pouco. Azeitonas, tremoços, etc.”

De facto, e sobretudo se nos ativermos àquilo que são as bases da culturalidade muçulmana, depressa perceberemos que, com excepção das actividades de lazer e comércio descritas por Teresa Mesquitella, muitas delas cristianizadas algum tempo depois e vinculadas a práticas que ainda hoje se mantêm quase incólumes, muito pouco sobrava de liberdade social ao indivíduo árabe para estabelecer relacionamentos que contribuíssem para a generalização da sua Identidade. A prática do comércio, bem como de serviços análogos que revertiam em prol do crescimento social dessa cidadania, traduzia-se amiúde na recriação de uma forma diferenciada de gestão de conflitos, que se exercia de forma plena sempre que se estabeleciam as bases vigorosas de um novo entreposto urbano.

À cidade muçulmana, eivada das consequências lógicas impostas por uma História já muito antiga que havia caracterizado a existência dos povos que habitavam na Península Ibérica, juntam-se agora balizas sociais muito fixas, que necessitavam da harmonia imposta pelo relacionamento muitas vezes vilipendioso que resultava da prática do comércio, para fazer regurgitar a tendência sempre presente, embora muitas vezes de forma velada, de harmonizar condutas em função de um sentimento de partilha que se baseava no próprio espaço.

As estruturas orgânicas do poderio muçulmanos, em permanência vincadas pelo estímulo municipalistas que as antigas villae acabaram por promover, reconverteu a funcionalidade meramente circunstancial do povoamento paleo-cristão numa forma nova de existência de base política. Neste novo espaço, bem como nas zonas francas criadas por uma tolerância de prática religiosa que se afigurava essencial para garantir a paz e a estabilidade necessárias ao sustento do aparelho produtivo criado pelos novos invasores, o cosmopolitismo e o plurifacetado proselitismo de todos os que habitavam no novo império, permitia rentabilizar diferenças e recriar um ambiente novo que absorvesse as bases culturais de todos e aproveitasse o vasto espaço criado pelo poderio vigente para desenvolver económica e financeiramente a generalidade dos habitantes.

No antigo espaço senhorial que havia subsistido ao declínio do Império Romano, reinava agora uma enorme amálgama de poderes políticos, agregados, cada um deles, à génese cultural e religiosa de todos os povos e etnias que ali viviam, e assegurando uma cada vez maior necessidade de fomentar a gestão global da res-pública, como único caminho para gerar os tais consensos e promover a tão necessária harmonia. Os concelhos de raiz visigótica, por sua vez decalcados das antigas villae romanas, haviam-se tornado em entidades com cunho vincadamente jurídico, nas quais se processavam toda a espécie de decisões que tinham como objectivo manter os equilíbrios internos das comunidades, e zelar pela salvaguarda dos interesses colectivos da sociedade.

Para além da complexidade que naturalmente envolve a constituição social de um espaço urbano, pois a conjugação de saberes e de vontades implica sempre a sujeição de princípios e de vontades comuns, outros problemas, muitas vezes esquecidos dos investigadores, contribuem para dificultar uma análise verdadeiramente operativa deste conjunto de problemas.

Como é evidente, mesmo dentro do actuais espaços urbanos, a noção e o conceito de família, assumidamente núcleo central da operatividade social, alteram amiúde a forma como se sustêm os processos governativos da urbe. Na cidade muçulmana, génese residual da cidade actual, a motivação social suportou sempre um conjunto de princípios económicos que esventraram grande parte das motivações teóricas de constituição das cidades apontadas pelos investigadores.

De facto, mais do que os rigores impostos pela contratualização religiosa, a dinâmica orientadora da construção e regulamentação dos espaços urbanos, obedeceu primeiramente a critérios de índole economicista. Só assim, entendendo a economia como suporte intrínseco da capacidade concretizativa dos diversos aspectos de génese cultural ou cultual destas comunidades, é que se torna possível compreender a forma como se orientaram em termos efectivos as diversas medidas de governação da cidade.
 
A doutrina política do islão, exigindo capacidade e eficácia nas concretizações do dia-a-dia, coíbe assim a cidade de se estender por domínios que impeçam a sua operatividade. As cidades muçulmanas, monótonas na forma como repetem de maneira incessante e estereotipada os ritmos e padrões de construção urbana que em nada deixam transparecer os diferentes registos culturais dos locais onde se inserem, rasteiam também grande parte das necessidades dos seus naturais e recolocam-nas na amálgama por vezes conflituosa do seu tecido urbano. Segundo Fernando Chueca Goitia, numa das mais sucintas abordagens à História do Urbanismo (6) a indiferenciação da cidade muçulmana fica a dever-se principalmente a essa razão prática, sublinhando que as consequências desta situação, sobretudo no que concerne à prática do comércio, são por demais evidentes: “De todas maneras, el aspecto de la ciudad musulmana es mucho más indeferenciado que el de la ciudad clásica y de la ciudad moderna. Una ciudad cuanto más compleja funcionalmente, más diferenciada resulta en sus estruturas. De aquí la monotonía de las orientales, en esto herederas de las urbes prehelénicas. El mundo islámico recoge buena parte de la herencia del mundo primitivo orientale, de las ciudades egipcias y mesopotámicas. Si conociéramos mejor éstas, podríamos establecer más fácilmente cuál há sido el precedente y la génesis de las del Islam, que hoy nos parecem insólitas”.

A grande lição a retirar deste tipo de estrutura urbana, sobretudo se pensarmos que o modelo teórico da cidade muçulmana se espraiou por um império vastíssimo, no qual coexistiram de forma pacífica diversos tipos de culturas, de tradições e de saberes, é que o cerne económico que suporta a existência do burgo, ultrapassa largamente a envolvência física e a moldura humana que o acompanha. Nestas cidades, a pratica comercial, ontem como hoje, reveste-se de uma simplicidade que permite ao produto comercializado impor-se como tal, ou seja, desvinculando-o de procedimentos conjunturais e oferecendo-lhe uma importância que se basta a si própria.

A delimitação efectiva dos espaços, com a zona habitacional perfeitamente definida em com uma gestão que se poderia caracterizar como antagónica relativamente à zona comercial, contribui para que o comércio e o urbanismo surjam como realidades de gestão conjunta neste tipo de estruturas. Ao recriar, no seio da complexitude que as envolve, uma dicotomia perfeita entre o ambiente totalmente calmo e sossegado do espaço habitacional, no qual a família encontra todas as condições que lhe permitem fruir da sua intimidade, e o buliçoso espaço comercial, no seio do qual quase tudo é permitido, o islão impõe uma forma nova de estar na cidade que, complementando as faces diversas de uma mesma cidade, rentabiliza os verdadeiros assentos de cada uma das vivências, ao mesmo tempo que impede a criação de eventuais problemas resultantes de uma mistura forçada de interesses e de ideias. Na sua componente comercial, a cidade muçulmana faz jus da sua capacidade de se efectivar como fulcro das actividades quotidianas da população, enquanto que na zona residencial, sem interferência com o barulho e com a necessária expressão que constrange o viajante, a paz, a calma e o sossego se assumem como elementos essenciais. Pierre George (7), numa das poucas obras sobre urbanismo europeu que dedica um espaço importante à organização da cidade muçulmana, traça com mestria o quadro típico desta dicotomia, ao mesmo tempo que explica como se organizam as duas componentes neste mesmo espaço: “El silencio y la calma hacen olvidar la extraordinaria acumulación de la población. Pero ésta se presenta com una exageración multicolor en el zoco, mercado de barrio o mercado general. Aquí aparece la outra faz del oriente, com su ruido de multitud y su olor acre de especias, polvo y sudor. Todos los pueblos, todos los tipos, parecem haberse dado cita: campesinas de Ghuta com amplios velos claros, rosa o azul pálido, hauraneses de cara tatuada y severo traje azul oscuro, judíos de Bagdad todos de negro, la cara bajo la visera a la moda de la Persia, beduinos del desierto envoltos en sua harapos y en su dignidad, curdos com turbantes multicolores, afganos vestidos de blanco, negros del Sudán en bubú y maghrebíes en su chilada”.

A especialização urbana das cidades muçulmanas, marcada de forma efectiva pela permanente troca de actividades e de costumes, era assim o garante da sã convivência entre os diferentes tipos de habitantes que nela residiam. Em torno da medina, espaço que tantas e tantas vezes é ainda hoje a base toponímica dos bairros mais típicos das actuais vilas e cidades portuguesas que tiveram uma origem islâmica, organizavam-se, no seio da aparente desorganização geral, os bairros residenciais e os arrabaldes. Enquanto que na medina se situavam as principais e mais atractivas actividades da cidade, como por exemplo as mesquitas, as instalações do alcaide, e as zonas comerciais, nas restantes zonas da cidade a população agrupava-se de acordo com os seus ofícios e modo de vida. Esta forma de existência, mais do que qualquer outra forma mais moderna de planificação urbana, garante um efectivo controle das tensões sociais e, contrariamente ao que actualmente alguns ditos especialistas procuram veicular, a uma maior capacidade de diálogo e de cooperação social.

A noção de gueto que tanto constrange as cidades actuais, ou seja, um espaço fechado onde se colocam as actividades ou as etnias que possuem características próprias ainda muito vincadas, é totalmente despropositada neste tipo de cidades. O espaço de especialidade, zona onde se concentram os habitantes e trabalhadores entre iguais, obriga necessariamente à criação de uma rede de permutas que diminua os problemas que resultam da inexistência de uma série de bens ou de produtos que só existem no espaço seguinte. O trânsito social, expressão que utilizaremos daqui em diante para designar a permanente migração de populações de raízes diferentes que coabitam num mesmo espaço urbano, obriga a um clima de convivência sã e de respeito mútuo que faz da cidade uma zona global onde todos podem encontrar a melhor forma de se fazerem entender.

De qualquer forma, dentro da medina, a diferenciação de imediato se esbate no seio da amálgama de odores e de cores que vão caracterizando cada um dos habitantes. A prática do comércio, principal motor desta miscenização social, é assim a base e o sustento da criação dessa paz, sendo, consequentemente, a principal orientação para a criação da própria cidade.

Apesar do carácter pitoresco das estruturas urbanas legadas pelos primórdios da existência urbana deste império, a grande valia das cidades muçulmanas reside no seu dinamismo comercial, sendo nele que se funda a própria estrutura habitacional.
No Portugal de hoje, dependente em permanência da capacidade de receber visitantes estrangeiros numa audaz magnificência turística que os laços e tratados assinados com o estrangeiro acabaram por impor, a lógica da consolidação empresarial deve sobrepor-se, num esforço de permanente procura de novas formas de consolidação da actividade, a todo o qualquer outro desiderato.

O comércio cascalense, marcado pelas vicissitudes de um período de declínio da qualidade urbana do Concelho, e sobretudo pelas consequências nocivas de um fim de ciclo que obrigatoriamente terá de resultar num prolixo processo de mudança e de renovação, é obrigado, sob pena de ver desaparecer grande parte do seu actual empresariado, a encontrar um caminho de total independência, baseado na qualidade dos seus produtos e serviços, que se sobreponha às eventuais vicissitudes que ainda resultarão da governação política Nacional.

No caso concreto da evolução urbana e comercial do municipalismo português, a transição de poderes políticos foi assim uma espécie de embrião efectivo da nossa nacionalidade.

Depois de invasões e perturbações políticas, religiosas e sociais permanentes, desde praticamente os primórdios da instalação do Homem no seu espaço, a Península Ibérica debateu-se com a necessidade de recriar as condições que lhe permitissem salvaguardar em todos os momentos de mudança os principais resquícios da sua própria identidade. A chegada do romanos, numa primeira fase sinónima de alguma anomia no seio dos habitantes autóctones, dá lugar à instalação de um clima de convivência pacífica e de aculturação eminente, assistindo-se mesmo a situações extremas de divindades de origem não romana que passarão a fazer parte, de pleno direito, do panteão romanizado. Esta abordagem contemplativa das origens culturais locais, comuns a todos os invasores, funcionou da mesma maneira com a chegada dos denominados povos bárbaros do norte da Europa.

Destituídos de toda e qualquer espécie de hábitos sedentários, e eivados da necessidade permanente de apelo à guerrilha como forma até de manterem a sua capacidade governativa, uma vez que se baseavam na existência de uma monarquia electiva pouco dada à estabilidade que tanto desejavam os habitantes peninsulares, os novos invasores não vacilaram em aproveitar grande parte dos resquícios organizativos deixados pelos romanos e em os integrar na sua própria estrutura organizativa. Ao procederam deste modo, e sobretudo se tivermos em conta a tradicional miscelânea de povos e de culturas que desde sempre pulularam neste espaço, depressa perceberemos que não resta outra solução aos invasores islâmicos do que proceder do mesmo modo, recebendo pacificamente no seu seio os habitantes cristão, pagãos e judaicos que continuavam a habitaram e a trabalhar neste mesmo espaço, e a integrá-los, e de forma mais ou menos plena, no seu próprio tecido social.

A criação das modernas estruturas municipais não é, deste modo, muito mais do que o resultado de uma natural evolução das necessidades sociais e económicas dos diversos senhores que controlaram a Península Ibérica, garantindo a pacificidade e a sã convivência que se afigurava fundamental para a recriação de um clima de prosperidade. O historiador José Hermano Saraiva, na análise sucinta atrás mencionada (8), descreve em palavras simples este processo: “Rudimentares, embrionárias, de talhe acomodado a cada região e a cada situação concreta, estas instituições [refere-se aos concelhos mais primitivos], nascidas espontaneamente para satisfazerem as necessidades mais prementes da vida social, foram um factor decisivo na permanência de muitos dos factores que constituem o fundo da nossa cultura rural tradicional. Foi graças a elas que as comunidades dos homens puderam manter-se presas nos mesmos lugares, venerando os mesmos Santos, vivendo as mesmas vidas”.

Assim, e apesar de constrangimentos impostos por outras formas alternativas de governação, pois algumas das terras portuguesas estavam directamente dependentes dos interesses da Coroa ou de uma qualquer Comunidade Religiosa ou Senhor privado, a figura do Concelho, decalcando fundamentos que o próprio municipium romano havia repescado das exigentes formas organizativas que o procederam, foi, com toda a certeza, uma das principais orientações no sentido de criar uma paz e uma prosperidade que fossem coniventes com as necessidades económicas do País nascente.
Esta permanente necessidade de agregar aos interesses económicos as pretensões de índole política e social das comunidades, longe de constrangerem a capacidade funcionamento do município, foram sempre elementos que geraram dinamismo e vontade de melhorar as situações anteriormente existentes. A figura do Concelho actual, congregadora de sensibilidades e de saberes é, simultaneamente, uma espécie de repositório por excelência da capacidade de organização Nacional, transpondo para a intervenção prática grande parte dos fundamentos ideológicos que enformaram a criação teórica da nossa Nacionalidade.

Ao longo da Idade Média, à medida em que a Europa ia adquirindo as formas que hoje lhe conhecemos, a Península Ibérica foi desenvolvendo sempre uma forma paralela de estar. Em primeiro lugar porque, contrariamente ao que sucedeu noutros lugares, a antiga Ibéria romana foi sempre espaço cosmopolita e de encontros culturais. Por outro lado porque, enquanto que no espaço europeu a luta pela delimitação das actuais fronteiras foi sempre intestina e fratricida, servindo de base à recriação de limites artificiais ao espargimento natural das nacionalidades, na península a luta de formação ocorreu sempre com uma base ideológica e cultural que, embora possuísse fundamentos económicos e religiosos, teve sempre como imposição final a gestação de formas novas de convivência social, nas quais vencedores e vencidos mantinham relações fortes e perenes antes e depois da peleja.

As mourarias e judiarias que pululam nos aglomerados urbanos mais antigos de Portugal e de Espanha, longe de deixarem antever a anteriormente mencionada posição de gueto que caracterizou a vivência das minorias em vastas regiões da Europa medieval, representou para as sociedades ibéricas formas alternativas de imposição de limites serviçais à generalidade daqueles que se viam ostracizados da vida política por condicionalismos de ordem militar.

Tivemos oportunidade de dizer, há algum tempo atrás, que o apelo à diferença é parte integrante da Identidade Nacional dos portugueses, tendo sido um dos principais elementos geradores do desenvolvimento social que caracterizou o País durante os seus primeiros quinhentos anos de existência. Nessa altura, num local ermo do nosso País – as Minas da Panasqueira -, e longe dos principais centros de poder, a experiência que pretendíamos levar a cabo era a de tentar instaurar num espaço vazio um sistema de gestão social que se fundamentasse nessa tradicionalidade. A dicotomia de saberes, permanentemente apelando à coragem de ser diferente, serviu para consolidar as raízes da nossa existência política e social, e na actualidade, mais até do que no período em que defendemos esta ideia, estão criadas as condições para que se efective este desiderato (9): “Uma das mais complexas questões com que se debate o Homem actual é a da ubiquidade do seu saber. Passo a explicar: a relatividade de quase todos os princípios, até aqui tidos como absolutos e, desde há algum tempo, meras referências de um processo de paulatino desenvolvimento do conhecimento que se pautua pela necessidade de permanente reavaliação dos pressupostos e pela sua colocação em causa, acabou por constranger, de forma óbvia a definição actual das relações sociais e humanas. A diferença, sentida durante séculos como geradora de desenvolvimento e como potencial da comunidade, acabou por transformar-se numa espécie de ameaça velada ao estabelecido, transformando o diferente em alguém que potencialmente poderá, com a sua perspectiva e lógica diferentes, fazer evoluir situações e, cada vez mais, destabilizar uma homogeneidade artificial que garantia os equilíbrios e os posicionamentos sociais de cada um”.
 
É precisamente aqui, nesta visão distorcida da realidade social portuguesa, eivada de conceitos e de normas regulamentares importadas da Europa do Século XVIII sem o cuidado de utilizar um filtro de rede fina, que reside o grande problema do urbanismo comercial português: a diferença de outrora, ou seja, aquela diferença geradora de relacionamentos novos e de experiências motivadas pela evolução e pela vontade, deu lugar a um medianismo estagnatório que, longe de corresponder às necessidades actuais da população, se restringe a uma existência instalada, monótona e praticamente morta na sua identidade.

A recriação do dilema místico que deu origem à nossa nacionalidade exige que se reponham as condições urbanas que inicialmente caracterizaram as nossas cidades. Na diáspora da informatização, na qual as distâncias se encurtam quase diariamente, já não faz sentido que se continuam a utilizar os meios de transporte como desculpas para todas as maleitas que nos afectam.

O comércio de proximidade, centro estratégico e nevrálgico da vida na cidade, mais não é do que o sector de proa, num conjunto mais vasto e complexo de sistemas que, interagindo permanentemente, se vão complementando e criando vida dentro do cimento da urbanidade. Nesta perspectiva, e sobretudo tendo em linha de conta a clivagem quase total que hoje se impôs entre os diversos componentes que contribuem para fundamentar este todo urbano, com a habitação, o comércio, os serviços e as acessibilidades, para além de uma miríade de condicionantes que também afectam o equilíbrio global, a serem vistos como parcelas independentes e desregradas, é absolutamente necessário que se consciencializem os diversos elementos integradores deste conjunto, por forma a que desentorpeçam a razão crítica de âmbito civil que deve reger de forma magnânima todo o processo.

Durante quase toda a Idade Média portuguesa, quando a formação do nosso País se encontrava ainda em processo de consolidação, as cidades e os seus diversos componentes representaram um papel de extraordinária importância na criação de alguma hegemonia interna.

Foram aliás as cidades, eivadas da necessidade de empreender um esforço conjunto no sentido de revitalizarem princípios de cidadania que suportassem a gestão de um processo de paz que fosse sinónimo de estabilidade e de prosperidade, que em primeiro lugar geraram as instituições e organismos que hoje a regem. Mesmo perante o descontentamento das classes privilegiadas, a quem interessava o clima de alguma instabilidade do qual retiravam dividendos políticos que surgiam como consequências das suas próprias competências profissionais, o processo de crescimento das instituições municipais nunca deixou de acontecer, muitas vezes suportado unicamente pelo peso económico da grande burguesia e do pequeno comércio e, de outras vezes, pelo apoio que lhes era concedido directamente pela Coroa, sempre interessada em consolidar-se no seio de uma estrutura social que poucas ou nenhumas relações possuía com aquilo a que virá a chamar-se mais tarde a Identidade Nacional.

Ao processo de afirmação que, como vimos anteriormente, se inicia em época anterior à formação da nossa nacionalidade, vão os municípios juntar um papel relevante ao nível do próprio conceito de Estado. Esta entidade, quase desconhecida no seio das conflituosas monarquias europeias, necessita da existência de um fundamento de homogeneidade social para que se possa efectivar. Os concelhos e municípios, marcados pelo conservadorismo que sempre caracteriza a existência de entidades em que o corporativismo se assume como organizador essencial, foram, em todo este período, um dos principais contributos para que a génese da nacionalidade crescesse de forma sustentada ao longo dos séculos. Intervindo ao nível da administração pública de âmbito local, e consolidando o papel da Coroa no controle das mais longínquas paragens do reino, a figura do município e dos seus representantes permitia ultrapassar obstáculos práticos que se relacionavam com o grau de desenvolvimento técnico que o País possuía naquela época, e pormenores mais teóricos que se prendiam com a aceitação tácita da figura Real. Até D. Dinis, um dos monarcas que mais trabalhou em prol da criação de uma normalização política do País, Portugal foi sempre contraditório na sua forma de existir. Os municípios e os concelhos, impondo-se, nem sempre com total sucesso, aos interesses díspares do Clero e de alguns dos mais destemidos elementos da Nobreza, foram conseguindo gerar uma estrutura social em que se faziam ouvir a voz de todos os intervenientes.

Contrariamente ao que sucede noutros pontos da Europa e mesmo noutros espaços da Península Ibérica, Portugal assiste à consolidação de uma pirâmide social da qual fazem parte, em lugares de destaque, representantes de todas as classes sociais, evidenciando num plano de quase perfeição grande parte dos resquícios de uma existência islâmica em que o respeito e a mais valia da aceitação do outro, se afigurava fundamental. A incessante busca de um equilíbrio perene entre os interesses díspares mas complementares do clero, da nobreza e do povo, foi sempre apanágio da Coroa Portuguesa que, no decorrer da primeira dinastia, colocava nesse ponto o essencial do sucesso da governação. Os concelhos e os municípios, no sentido generalista do termo, mais não eram do que os representantes efectivos do conjunto das classes populares, como o demonstra o Livro de Linhagens do Conde Dom Pedro quando refere as últimas palavras e conselhos proferidos pelo Conde Dom Henrique ao seu filho e primeiro Rei de Portugal (10): “E filho toma do meu coraçom alguuma cousa, que seias esforçado e sejas companheyro aos filhos dalgo e dálhe sas soldadas todas. E aos comçelhos fazelhes homrra em guiza como ajam todos dereyto assy os gramdes come os pequenos. E faze sempre justiça e aguarda em ella piadade aguisada, ca sse huum dia leixares de fazer justiça huum palmo loguo outro dia se arredará de ti huma braça e do teu coraçom. E porem, meu filho, tem sempre justiça em teu coraçom e averás Deus e as gentes”.

Em termos administrativos, ainda mais do que na sua componente política, a organização interna da Nação Portuguesa obedecia a critérios que impunham o equilíbrios social como elemento gerador de estabilidade. No sector económico, no qual tão grandes disparidades de interesses e de necessidades poderiam conduzir ao descalabro eminente, a orientação a que mais tarde de chamará corporativa, vem completar um quadro geral de intenções políticas que conduzem o País à são convivência que ainda hoje lhe reconhecemos.

O organização interna dos diversos sectores de actividade, completada pelo trabalho dos organismos estatais que coordenavam economicamente o País, vem pôr cobro a situações desastrosas que se tornam normais em muitos outros pontos da Europa. A existência de uma forte tutela Real, fundada no pressuposto de que aos municípios e Concelhos deveria impor-se uma organização supranacional que congregasse também os interesses, os direitos e os deveres das restantes classes sociais, permite combater aquilo a que alguns historiadores denominam de “envilecimento” dos preços, com a consequente ruína da produção e do comércio. Pondo fim a uma eventual concorrência desvairada entre os interesses diferentes dos diversos sectores da sociedade portuguesa, a gestão centralizada do reino, com cunho marcadamente vincado pela mão pesada das corporações municipais, vem permitir que se discipline e oriente as relações económicas e sociais, e que se imponha um modelo novo de consolidação da cidade.

Pela primeira vez desde o início do processo da reconquista cristã, as cidades portuguesas são influenciadas politicamente por pressupostos diferentes daqueles que orientaram a sua criação. Agora, contrariando os primórdios da sua existência, a cidade portuguesa (mais ainda do que a genérica cidade ibérica), tem de se adaptar às necessidades inconstantes de um comércio que é, de forma assumidamente fundamental, o principal elemento gerador de riqueza e de prosperidade e, logo, de estabilidade social no seu espaço. As diversas corporações, até aí organizadas em torno de necessidades conjunturais e, consequentemente, sujeitas às vicissitudes momentâneas da governação, passam a dispor de uma forma organizativa mais adequada com os interesses e capacidades da própria cidade, especializando-se assim alguns espaços em algumas actividades mais delimitadas. Com este procedimento, e sem refrear o ímpeto da livre concorrência (que sempre orientou o crescimento político de Portugal) o País e os seus municípios ficavam dotadas da capacidade de se adaptarem de forma imediata e natural às características do momento e às necessidades de mercado, sem que, com tudo isso, se verificassem atropelos que resultassem numa crise generalizada de todo o sistema.

Por outro lado, é precisamente esta forma de gestão em que o princípio activo é o corporativismo que gera a capacidade urbana de sobrevivência de alguns aglomerados urbanos de diminutas dimensões. De facto, e se atendermos a que nas grandes e médias cidades, por força das circunstâncias próprias que resultam das características dos seus mercados, se torna mais fácil encontrar soluções finais que agreguem os interesses e permitam a sobrevivência da generalidade das actividades que se desenvolvem no seio do grupo, nos povoados de diminutas proporções, e sobretudo nas pequenas aldeias ruralizantes que caracterizam a grande maioria dos aglomerados urbanos portugueses até época muito recente, somente esse princípio corporativo, contribui para viabilizar uma existência comum, fornecendo-lhes a massa crítica de conjunto que, isoladamente, lhes não permitiria subsistir.

A conjugação de esforços e de sinergias que resulta deste procedimento, só possível através da congregação dos esforços da Coroa e dos Concelhos que a suportam politicamente, veio trazer ao comércio e à cidade todo um enorme manancial de potencialidades que as diversas sociedades que coexistiram neste espaço ao longo dos últimos séculos, souberam bem aproveitar. Concentrando num espaço determinado pelo âmbito de existência física da cidade um conjunto de capacidade complementares, a organização de índole corporativa vai rentabilizar os meios e dinamizar vocações, permitindo a ultrapassagem de obstáculos que, de outra forma, acabariam por constranger em definitivo a existência da própria urbe.

Este conjunto de diferenças que impelem a cidade portuguesa medieval para um modelo de gestão urbana antagónico àquele que a havia caracterizado durante a vigência do poderio árabe, promove uma globalização do espaço e dos seus meios de utilização que encerra a génese da sobrevivência da própria Nação. Os caminhos comunitários e os direitos de atravessamento de propriedades, que p regime muçulmano não previa nos seus corpos jurídicos, passam a fazer parte das atribuições municipais. Estas últimas, baseadas nas necessidades impostas pelas corporações, assumem a responsabilidade de intervir directamente no processo que leva à criação de obstáculos que impeçam ou dificultem a circulação de produtos e bens. Este primeiro contributo económico e financeiro dos municípios medievais, no sentido de dotar de meios adequados ao crescimento urbano o conjunto das corporações que actual no âmbito do espaço físico da própria cidade, acaba por alastrar de forma irreversível a outras zonas e lugares, gerando um movimento incontornável que se afigura extraordinariamente relevante na formação de uma cultura económica Nacional.
Em termos estruturais, a grande consequência da adopção desta orientação política na governação Nacional, prende-se precisamente com a dimensão dos aglomerados urbanos. As grandes cidades clássicas, nas quais se concentravam, à sombra de uma estabilidade permanente assegurada pelo braço longo e pesado do jugo de Roma – Cidade Mãe – dá lugar à criação das pequenas cidades muçulmanas, quase sempre controladas pelas altaneiras muralhas de pedras que as rodeavam. Essas por seu turno, vão dar lugar às cidades medievais, nas quais, mercê das condições económicas atrás descritas, não faz sentido uma dimensão maior ou um protagonismo baseado unicamente no pressuposto do tamanho.

No decorrer da Idade Média, para agravar os constrangimentos de ordem militar, religiosa e política que vinham condicionar a vida nas cidades, existiram ainda importantes factores de ordem social e natural que vieram também por cobro a alguma eventual tentativa de lhes aumentar o tamanho. Os epidemias e o estado incipiente da prática médica e científica na Península Ibérica, agravado com o desaparecimento de grande parte do saber árabe que os muçulmanos haviam conseguido herdar dos impérios que os precederam, tornam praticamente inviável uma cidade de grandes dimensões. A higiene pública a urbana, já muito longe do tempo em que os romanos apelavam ao banho como uma das principais praticas sociais, havia tornado a cidade num espaço sujo e imundo campo propício ao desenvolvimento das doenças.

Os espaços urbanos de diminutas dimensões, apesar de mais sujeitos às vicissitudes económicas do que os grandes aglomerados que possuem no seu interior a generalidade dos produtos e da procura necessária ao seu sustento económico e financeiro, são mais adequados à sobrevivência social do reino. Se pensarmos que, com o sistema a que designaremos de proto-corporativo, se criavam também as condições para que a complementaridade entre aglomerados suprisse eventuais deficiências de produtividade interna, depressa perceberemos que a solução natural seria a de reduzir drasticamente os espaços fechados, de forma a que, com o afastamento imposto pela mudança, se criassem bolsas compartimentadas de controlo que ferissem de morte o surgimento de grandes crises gerais de pestilência.

O desenvolvimento do comércio e das actividades mercantis, baseada no sistema em questão, torna não só viável a cidade de pequenas ou médias dimensões, como gera a capacidade sempre necessária de promover novos povoamentos. De facto, e principalmente se atendermos ao facto de que a prática comercial subsiste a partir do acto especulativo, torna-se mais fácil entender que a criação de novos aglomerados, principalmente situados junto às embocaduras de rios e dos grandes eixos de trânsito Nacionais e internacionais, é a forma que mais se adequa aos interesses gerais da recém criada Nação Portuguesa. Os portos de rio ou de mar, baseados na existência da complementaridade produzida que este sistema fomenta, conhecem agora um crescimento desmesurado, adequando as práticas correntes àquilo que são os resquícios de uma forma nova de existência, na qual se vislumbram já as brumas matinais de uma globalização que os descobrimentos da gesta portuguesa vai fazer nascer.

Como refere de forma sublinhada Fernando Chueca Goitia (11), nestas novas cidades estabelecem-se pessoas que ajudam a tornar viáveis os novos mesteres: armadores de barcos, construtores de aparelhos, tanoeiros, e embaladores, dividem agora a sua profissão com geógrafos, pescadores e marinheiros. A cidade vai, por conseguinte, atraindo um número cada vez maior de pessoas que são oriundas dos meios rurais, e que ali passam a encontrar ofícios e ocupações que em muitos casos as libertam da pesada servidão do campo. Esta sociedade burguesa, decalcada daquilo que foi o resquício da primitiva sociedade portuguesa, é a principal responsável pela forma que adquire a cidade medieval, bem como pelos relacionamentos que nela se efectuam. Segundo o mesmo autor, nunca antes deste período havia existido uma classe social como a da burguesia que, na sua génese, origem e forma de funcionamento, fosse tão estritamente urbana como esta.

É precisamente o sentido de urbanidade desta nova cidade, na qual os complementos de actividades depressa se transformam numa nova forma de organização social, que a destingue dos modelos anteriores. Enquanto que até ao início da Idade Média, os diversos intervenientes no processo de criação de uma homogeneidade que fosse extensível a todos os membros de todas as classes sociais, se mesclavam somente quando existiam interesses comuns que os obrigavam a esse tipo de procedimento, a partir daqui, a congeminação de uma forma nova de viver na cidade é sinónimo de uma recriada homogeneização sócio-cultural e religiosa, ou seja, estavam criados os fundamentos de uma identidade comum que nunca mais havia de deixar de transparecer.

A urbanidade medieval, embora ainda num estádio evolutivo muito precário, é assim a primeira forma de regulamentação social dentro da cidade, assumindo, de forma paulatina ao mesmo tempo em que cresciam as especificidades inerentes às formas de vida em cada local, o cunho de organismo mediador de conflitos e de gestor de competências naqueles espaços. Na cidade, mais do que nas outrora florescentes aldeias campesinas, organizam-se as novas pontes que se vão estabelecendo entre os sectores díspares de uma mesma realidade, impondo-se desta forma como monumento vivo que cresce, se anima e se transforma acompanhando o ritmo da própria história dos homens que nela habitam. É na cidade medieval que pela primeira vez, em mais de mil anos de história, se encontram os resquícios de uma organização de índole administrativa, sendo também ali que, com um cunho marcadamente inovador, se encontram os primeiros elementos que determinam a vivência económica, política e social de cada país.

Ao sobrepor-se à lógica urbana das antigas aldeias, nas quais o factor social, dependente da ascendência familiar o do acesso à riqueza fundiária, se impõe com principal orientador e definidor da capacidade interventiva do indivíduo, a cidade vai esbatendo as diferenças e fomentando uma permanente permuta de ideais que transformam radicalmente a essência mítica que envolveu a concepção social cristã católica dos primeiros tempos.

O grande senhor do campo, com uma ascendência familiar ilustre que o encobre em todas as situações mais ou menos bem sucedidas da sua vida, dá lugar ao senhor da cidade, que vai vivendo do seu estatuto, bem como da forma como, através de processos especulativos e largamente dependentes de si próprio, se vai segurando no seio da enorme amálgama de emoções que envolvem a vida quotidiana naquele espaço. Na sua nova situação, vivendo um papel que baseia na sua capacidade de produzir riqueza que lhe garanta o acesso aos bens de consumo imediato que a distância relativamente ao campo faz rarear, a cidade transforma-se no bastião da liberdade, construindo um palmarés de novidades que se vão alastrando a núcleos urbanos congéneres e, posteriormente, à generalidade dos espaços que compõem o País. A cidade medieval, na qual a população se revê pelas suas actividades e características, é bem diferentes da cidade que a precede, na qual quase tudo gira em torno da ascendência e dos costados de cada um. Enquanto que nos modelos urbanos anteriores, a capacidade de singrar com êxito e progresso na vida dependia quase em exclusivo da linhagem pessoal, na nova cidade esse progresso e encantamento reside única e exclusivamente na capacidade de cada um em encontrar o seu espaço e o seu caminho.

Inovação, discernimento, capacidade, perseverança e motivação, quase tudo palavras sem valor na vivência ruralizante anterior, tornam-se a imagem de marca dos novos espaços urbanos. A capacidade de fazer as coisas com menos custos e em menos tempo, garantido padrões de qualidade pelo menos comparáveis aqueles que anteriormente se possuíam, transformam a cidade numa espécie de cadinho daquilo que será a existência da humanidade ao longo dos séculos subsequentes.

O valor individual e a capacidade de concretização, um pouco de acordo com os princípios que norteiam o espaço urbano actual, vão criando na nova cidade o conjunto de condições que lhe permitem gerar novas formas de sobreviver. O comércio a que hoje designamos como tradicional, ou seja, a relação comercial baseada na proximidade entre o que vende e aquele que compra e, consequentemente, aquele no qual os parâmetros de qualidade são imediatamente aferíveis e avaliáveis, nasce assim dos constrangimentos impostos por este modelo renovado de estar. O conjunto formado pelas novas habitações, com os novos arruamentos, com os novos conceitos de mobilidade e de acessibilidade, para além dos novos grupos sociais, e dos novos princípios culturais, contribuem todos para transformar o comércio no fulcro por excelência que constrange, identifica, e actua sobre o espaço de vida comum. Ao abordar a cidade actual, nos aspectos multifacetados que indiciam a prolixidade do seu processo construtivo, estamos simultaneamente a vislumbrar um pouco daquilo que foi o papel activo do comércio de proximidade na gestão global do espaço comum.
 
Neste processo de crescimento histórico, no qual desempenham papel de relevo as figuras de proa de um corporativismo emergente que atrás já mencionámos, o primeiro obstáculo que se impõe no caminho do progresso contínuo surge já no Século XVI. O surto de progresso e de desenvolvimento político e económico que o País conheceu com a saga dos descobrimentos, trazendo novas condições de governabilidade e aumentando de forma incomensurável o poder da monarquia local, transformou radicalmente os equilíbrios sociais existentes. Os concelhos, até aqui fundamentais para alicerçaram a actividade e o reconhecimento régio, depressa passaram a instituições de segundo plano a quem os monarcas atribuíam funções cada vez mais limitados ao espectro de intervenção local. Os funcionários de nomeação régia, num País que necessitava avidamente de um controle rigoroso das colectas públicas e do potencial produtivo interno, pois deles dependiam a capacidade de dar continuidade ao empreendimento de vulto que vinham realizando, aumentavam continuamente em termos numéricos e de funções, afundando as prerrogativas municipais em decretos regulamentares que pouco ou nada deixavam à mercê daqueles que até aí haviam sido os principais responsáveis pela construção de Portugal.

É precisamente este período, de acordo com a maior parte dos mais eminentes historiadores Nacionais, que marca o princípio do processo de declínio de Portugal, que culminará já no final do Século XVI, com a morte de D. Sebastião e com a tomada da coroa pela monarquia espanhola.

A negação daquilo que haviam sido os princípios orientadores da Nacionalidade, eivada da necessidade de introdução de formulações regulamentadoras com origens estranhas ao próprio País, faz de Portugal um espaço onde a identidade arreigada que até aí se tinha pautado por uma harmonia completa e constante com a Coroa, se vá desvinculando paulatinamente das decisões emanadas pelo poder, para reconstruir, de forma paralela e até um pouco clandestina, uma institucionalidade nova, completamente marcada pelo afastamento e pela negação absoluta de muito daquilo que havia sido instituído em épocas anteriores. No novo espaço municipal, constituído pelo conjunto de instituições que se congregaram para dar sentido ao funcionamento dos velhos interesses dos grupos não privilegiados, a tensão política permanente acabou por tornar-se num elemento incontornável. Nas velhas povoações detentoras de forais antigos, e sobretudo naquelas que, mercê dos circunstancialismos que caracterizavam o País, se haviam perdido homens, bens e actividades, o declínio galopante trouxe períodos de crise grave e profunda que inverteram tendencialmente o crescente desenvolvimento urbano dos séculos anteriores.

Na Ericeira, por exemplo, o carácter piscatório da sua municipalidade, assente na capacidade profissional dos seus pescadores e mareantes, vai encontrar neste novo Portugal dificuldades inauditas que fazem desaparecer o conjunto de direitos políticos que a independência jurídica lhes concedia. Neste tipo de Concelhos, nos quais a autonomia acabou por se perder, a estrutura habitacional e patrimonial iniciou um período de declínio acentuado, facto que veio a espelhar crises profundas sentidas ao nível das actividades produtivas e especulativas. De acordo com dados recentemente descobertos (12), a crise instalada teve repercussões imediatas no comércio local, transitando a generalidade das actividades de sucesso para concelhos e povoações situados nas proximidades. Em casos extremos, e sobretudo naqueles que se situavam próximos dos grandes centros urbanos, como de Lisboa, Porto, Coimbra, Leiria, Santarém, etc., a perda das prerrogativas dos Concelhos traduziu-se mesmo no completo abandono e desaparecimento das localidades, ou, em outras situações, numa inversão completa da tendência construtiva e na constituição de pequenas aldeolas que readquiriram os fundamentos de funcionamento agrícola que as haviam caracterizado muito tempo antes.

A Corte da Aldeia, descrita de forma brilhante por Rodrigues Lobo, é disso exemplo paradigmático. Apesar de deixar antever um situacionismo político que traduz essencialmente a perda da Soberania Nacional, o refúgio das mais importantes famílias nobres nas velhas casas senhoriais situadas na província, traduz também um efectivo desagregamento das condições de vida nas cidades, e um incontornável retrocesso no dinamismo comercial que existia nesses espaços. Com o desaparecimento do elemento estabilizador do todo Nacional que estava representado pelo Rei, o clima de instabilidade tornou-se comum a todo o reino, invertendo a tendência de crescimento económico e de equilíbrio social que havia caracterizado o País durante tantos anos.

As cidades, focos sempre latentes de algum atavismo social, surgem na primeira linha do caos situacional. Contrariamente ao que seria de esperar, a cidade, por todos considerada por excelência um espaço privilegiado de habitação e lazer, mais não é do que uma artificialização forçada daquilo que são os normais e naturais processo de vida do ser humano. Na denominada selva de betão, num espaço onde a higiene e a salubridade estão muito longe de corresponder minimamente aos principais anseios da população, os constrangimentos súbitos dos equilíbrios politicamente precários que se iam estabelecendo, revertam sempre em problemas graves e profundos que fazem debandar aqueles que mais têm a perder. A estabilização conseguida entre os poderes políticos e sociais das classes privilegiadas e dos membros das organizações mercantis, principalmente devidos às necessidades mútuas e recíprocas que obrigavam ambos os grupos a entendimentos que nem sempre traduziam a essência daquilo que era sentido pelos membros de cada um, deixou de existir com este exílio forçado das grandes famílias no interior do país. Na cidade, onde o poder económico residia nas mãos dos comerciantes, assiste-se a uma inversão total das tendências efectivamente existentes, uma vez que o movimento fiduciário que aí existia, resultava, como é evidente, das transacções efectuadas junto dos primeiros.

Para além de influir negativamente na vida dos principais aglomerados populacionais de origem urbana que existiam em Portugal, estes movimentos conjunturais que sucederam no final do Século XVI, acabaram por constranger também os equilíbrios existentes nos campos. Se a cidade é, por si só, um espelho fundamental do grau de evolução das comunidades, não deixa também de ser, por outro lado, o resultado da capacidade de produção, de armazenamento e de exploração dos campos. Até aí, com o melhoramento significativo que se instituiu nas cidades, transformando-as em espaços de grande apelo para onde se dirigiam todos os elementos mais ilustres das famílias mais importantes do reino, os espaços rurais, com as suas quintas e herdades entregues à exploração de rendeiros de origem lavradora e serviçal, funcionavam em torno de figuras de segundo plano, que perderam as suas actividades e meios de subsistência quando os legítimos proprietários retomaram a exploração directa dos seus campos. O retorno ao espaço rural, obviamente constrangendo-o a alguns resquícios que haviam resultado das experiências adquiridas nas cidades, obrigando algumas grandes famílias a construírem os seus paços e casas senhoriais nas zonas de onde eram originárias e onde possuíam as suas mais importantes propriedades, modificou por completo a paisagem patrimonial do País e a estratificação social existente.

Resultando, num primeiro momento numa efectiva e absoluta crise que grassou no campo com o empobrecimento súbito e inesperado dos rendeiros, e na cidade, com o desaparecimento do manancial aquisitivo das enriquecidas famílias nobres do reino, esta fuga para a província, abriu, no entanto, caminhos novos para que o campo e a cidade assistissem novamente a uma inversão completo da sua existência e um aumento gradativo na qualidade do seu funcionamento.

Nos primeiros, são os já mencionados solares e palacetes que, um pouco por todo o interior do País, vão transformando a paisagem e enriquecendo a memória cultural das gentes e das terras. São as construções que resultam deste fenómeno que, agora que nos embrenhamos de forma assumida no Século XXI, oferecem as esses locais uma atractividade turística que nem todos sabem reconhecer e aproveitar. Longe dos fulgor construtivo de outros tempos, Portugal, entre os Séculos XVI e XVII, recriou um estilo e uma paisagem própria que, para além de irrepetível, nos transporta de forma natural a outros tempos, paragens e gentes.

Nos segundos, o abandono progressivo dos espaços das cidades, abrindo caminho a uma requalificação que se seguiu ao primeiro momento de crise, deixa lugar à construção de novas estruturas urbanas que, fazendo desaparecer muito daquilo que era já obsoleto, e permitiu às grandes cidades portuguesas dotarem-se de um complexo e importante complexo habitacional que lhe permitiu melhorar de forma significativa a qualidade de vida de todos aqueles que por lá foram ficando. Consequentemente , e ao deixar espaço livre e aberto, o retorno ao campo das principais famílias, deixando livres as habitações e os espaços que outrora eram só seus, deixa também disponíveis aqueles que eram, nessa época, um dos principais sinais exteriores de conceito e de privilégio. O prestígio que acompanha as famílias, mais do que nos elementos que as compõem, ou mesmo na riqueza que apresentam, traduz-se nas habitações que utilizam e preservam. Com a sua saída para a cidade, as mais eloquentes habitações das grandes cidades portuguesas passam a ser utilizadas por um novo tipo de habitantes, ligados ao comércio e à indústria latente que, assim, de uma só vez, adquirem propriedades, espaço e prestígio, agregando em seu torno as condições necessárias para efectivarem a clivagem pela qual desde há tantos anos anseiam.

No espaço intermédio entre estes dois momento, ou seja, no período que vai desde a perda da Soberania Nacional até à Restauração da Independência, a cidade foi assim readquirindo o fulgor e a qualidade de outros tempos, da mesma forma que se apetrechava com as condições de modernidade que as viriam a possibilitar o enfrentar do futuro e dos novos desafios. A crise instalada, enquanto se resolviam as querelas antigas e se restauravam princípios de vida diferentes, foi retirando também ela o peso político que os municípios já há muito vinham perdendo. No decorrer deste interregno, por exemplo, são muito raros os sinais de riqueza ou de prosperidade municipal, não se assistindo sequer, da parte de municípios antigos e bem estruturados como são aqueles que caracterizam as grandes cidades portuguesas, a iniciativas pontuais de melhoramento dos espaços urbanos. As fontes, os monumentos, as estátuas, o calcetamento das ruas, a construção de pontes e de hospitais, para além de muitos outros equipamentos essenciais ao bem estar e à qualidade de vida dos seus munícipes, são anteriores ou posteriores a este momento, havendo um hiato efectivo que dificilmente poderá deixar de ser atribuído à diminuição drástica da capacidade de investimento e de dinamismo da burguesia comercial que nelas estava instalada.

Segundo Marcello Caetano, numa das usas muitas obras sobre administração portuguesa (13), é possível ler que a falta de qualidade de funcionamento das cidades se fica a dever a uma perda efectiva da capacidade e do prestígio político dos municípios portugueses. O estudioso não deixa de referir, no entanto, que tal situação não impede que a figura administrativa municipal não se mantenha como principal elemento agregador da gestão pública portuguesa: “Apenas nas melhores terras perdurou a memória da processão do «Corpus Christi», dos vereadores com suas varas e do alferes do concelho com sua bandeira, e o tosco edifício dos Paços do Concelho com o sino da Câmara, em cujo largo se ergue o mais cuidado e honrado padrão jurisdicional: o pelourinho. Sem recursos económicos, sem prestígio político, sem função social própria em muitas localidades, o Município conserva todavia a utilidade de instrumento regulador da vida loca. E assim se mantém, obscura mas pertinazmente, até às convulsões que marcam o fim da monarquia absoluta.

A figura municipal, bastante incutida na tradição administrativa e política portuguesa, deixa assim, de forma progressiva e inicialmente incipiente, de ser o cerne principal da governação do reino. Com a restauração, e a consequente necessidade de reforço da autoridade real, a vinculação efectiva das medidas emitidas por Lisboa às diversas parte do reino, não se compadecia com a existência de eventuais rebeldias de foro municipal, e a não existência do prestígio de outrora, que protegia os eleitos locais de decisões eventualmente constrangedores dos poderes e dos interesses locais a nível Nacional, fez dos Concelhos um alvo fácil para o início do processo de reconstrução de Portugal.

A centralização política e administrativa portuguesa, com a consequente nomeação régia dos funcionários municipais tem dois tipos de consequência na organização interna dos municípios: em primeiro lugar, e permitindo ultrapassar divergências de raiz que ainda grassavam no País, entre Concelhos com características diferentes que funcionavam de forma díspar e que não permitiam a existência de uma política continuada de âmbito Nacional, este centralização veio abrir os municípios a novas gentes, uma vez que os liberta do cunho eventualmente confrangedor de centúrias de sujeição a um mesmo poderio económico que assim se perpetua no tempo; em segundo lugar, vem permitir reformular as estruturas administrativas existentes, adaptando-as de forma mais evidente à realidade Nacional.

De qualquer forma, e pese embora todo o esforço que a diversos níveis foi empreendido pelas diversas forças municipais existentes em Portugal, o certo é que a generalidade dos Concelhos que faziam parte do todo Nacional, se viram constrangidos nas suas prerrogativas, enveredando por um percurso alterado de funcionamento, no qual nem todos souberam ou quiseram empreender os esforços necessários à imperiosa adequação à novidade.

No caso de Cascais, e mesmo nalguns dos Concelhos situados no extremo da Península de Lisboa, a realidade marcada pela gestão política do Rei alterou equilíbrios e promoveu a mudança, gerando novos compromissos e reivindicações. Nos aglomerados urbanos, estruturados a partir da organização interna das localidades e dependentes, de forma mais ou menos evidente, das principais forças impulsionadoras de âmbito local, a dinâmica estrutural acabou por ser constrangida por alguma incapacidade de gerar formas alternativas de consensualidade entre os interesses instituídos.
Tal como na actualidade, a história antiga das cidades é marcada não só pelas orientações emanadas pelas principais correntes teorizantes em vigor, como também pelas necessidades e pelas dinâmicas próprias da estrutura económica e comercial. A inexistência de uma acentuação do poder municipal, em detrimento do que havia acontecido em épocas anterior, transforma as estruturas construídas em meros repositórios de ordens e decisões que, na maior parte dos casos, nada tinham a haver com os interesses envolventes, afirmando-se assim negativamente perante a população local. As grandes obras públicas, afirmadamente resultantes do esforço empreendido pelas instâncias centralizadas no Rei e na Corte, acabam por contrastar de forma evidente com as construções mais precárias que surgem como resultado da iniciativa privada.

O equilíbrio entre a autonomia política e as necessidades sócio-económicas das localidades, sempre marcante na capacidade de endividamento e na motivação para o investimento, gera amiúde períodos de grande fulgor na gestão global dos centros urbanos. Por contraste, em momentos nos quais o poder central assume de forma totalizadora a generalidade das decisões do foro local, a instabilidade criada, fomentando por seu turno a dúvida generalizada perante os circunstancialismos subjacentes, acaba por constranger a disponibilidade para o investimento, facto que inibe a inovação e promove uma situação de algum retrocesso na qualidade de vida no espaço local.

A dúvida persistente foi, aliás, a principal linha orientadora do rumo urbano português entre o período da restauração e o fim do regime político monárquico. Na incerteza que vigorou, e perante cenários alternativos que ofereciam garantias suplementares de retorno perante as importâncias investidas, como eram as colónias africanas ou o espaço imperial brasileiro, os que até aí tinham sido os principais impulsionadores da nossa municipalidade e da nossa capacidade de desenvolvimento local, acabam por se acabrunhar, decidindo de maneira diferente e promovendo uma estagnação que, a todos os níveis, acaba por fazer de Portugal um país onde urbanisticamente foram muito poucas as iniciativas modernizadoras que permitiram alterar o panorama instituído e preparar a Nação para os desafios emergentes.

De facto, e contrariamente ao que sucede noutras partes da Europa central, o Portugal dos Séculos XVII, XVIII e XIX, apresenta características que nada deixam antever daquilo que foram os principais avanços de conhecimento das universidades. Mesmo em meados do Século XVIII, quando se processou a reconstrução da Baixa Pombalina de Lisboa, os projectos arrojados e a iniciativa de Sebastião José de Carvalho e Melo, cérebro iluminado por um percurso marcado pelas deambulações de muitos anos pelas universidades europeias, foram mal vistos e muito criticados pela sociedade dessa época. Paradoxalmente, é precisamente na figura do Marquês de Pombal, com uma actuação que muito deixa antever daquilo que seria a dinâmica urbanística europeia, que se centram as principais iniciativas de âmbito construtivo local.

A Vila de Oeiras, por exemplo, conhece nesta época um fulgor que a transforma, pela primeira vez na sua milenar história, num ponto de interesse nas cercanias de Lisboa. No entanto, se analisarmos atentamente aquilo que se modificou no aglomerado urbano principal da Vila de Oeiras, depressa perceberemos que, com excepção do Palácio do Marquês e, por arrastamento, nos palácios de muitos nobres que, seguindo o exemplo do estadista, optaram por investir nas grandes propriedades agrícolas que mantinham nos arredores de Lisboa, foram muito poucas as inovações de monta que se concretizaram nessa época. As estruturas agrícolas e hortícolas que transformavam os arredores de Lisboa em típicos recantos de magistrais cintilações saloias, mantiveram sempre as suas bases inalteradas, apesar de, aqui e ali, sempre perante a crítica acesa dos ultraconservadores de então, irem surgindo pequenos focos de habitações que incluíam aspectos inovadores na sua concepção.

A visão de fundo do Marquês de Pombal, bem patente no esforço de reconstrução da capital, acaba por se transformar num mar de meras ilusões utópicas que enxameiam as conversas de café, e pouco ou nada contribuem para uma efectiva consolidação de novos modelos ou paradigmas urbanos.

As novas mentalidades, nas quais os banhos e o veraneio começavam a surgir como fenómenos característicos de ume elite bem pensante que os importa de outras parte da Europa, vão-se adaptando às estruturas urbanas envelhecidas deste Portugal quase sem rumo, que adaptam, tentam modificar, sem contudo as dotarem de um cunho verdadeiramente inovador e urbanisticamente assumido. Vão ser precisos quase cento e cinquenta anos para que, por força da vontade férrea de um grupo muito restrito de empreendedores, alguns núcleos urbanos portugueses, assumidamente vanguardistas na forma como entendem a cidade, vejam constituídas as bases de uma inovação que todos sabiam, desde há muitos anos, ser premente.

A ilusão de uma miragem urbana de excelente qualidade, perdida desde que se havia iniciado o processo de fuga dos campos para a cidade, teve dois tipos de influências imediatas no quotidiano do povo português: em primeiro lugar, e sobretudo como consequência de uma instabilidade política crónica, que desde os inícios do constitucionalismo afectou a governação Nacional, a impossibilidade de gerar mananciais de riqueza que se traduzissem em efectivos investimentos na estrutura construída, fez com que grande parte das nossas cidades se fossem adaptando de forma precária às novas necessidades, sobretudo através do denominado e tão conhecido ‘desenrascanço’ e de obras de remodelação, fazendo com que a degradação, a falta de um sentido estético global, e a impossibilidade de gerar novas centralidades, se tenham transformado num sinónimo excelentemente caracterizador da vida que ali se levava; em segundo lugar, e apesar da conotação urbana negativa que desde há muito envolve as nossas principais cidades, esta situação gera um eficaz imobilismo nos principais núcleos urbanos dos grandes espaços rurais, transformando assim a província numa espécie de eterno e esquecido museu que servirá de base, alguns anos mais tarde, a uma propagandística que se afirmará como o primeiro passo dado no sentido de recriar em Portugal uma indústria nova que estava florescente em muitas outras partes da Europa: o turismo.

Na especificidade concelhia de Cascais, até aqui caracterizada sobretudo pela forma imediata com que seguia o rumo urbano do resto do País, for precisamente o turismo, baseado em premissas que só longinquamente se relacionavam com aquilo que havia sido a tradicionalidade construtiva local, que gerou as dinâmicas que renovaram quase por completo a face dos principais núcleos urbanos locais. Para que o rigor não falte nesta breve descrição, e para que se entenda a forma assaz curiosa que desde sempre esteve vinculada a este processo, é importante não esquecer que aqueles que são hoje os principais centros da urbanidade do Concelho de Cascais, principalmente situados no litoral, como o Monte Estoril, o Estoril, São João, São Pedro ou a Parede, surgiram somente, ou pelo menos tal como existem actualmente, entre a última década do Século XIX e os meados do Século XX, não passando até aí de meros quintais quase sem população ou, em casos como os do Monte Estoril, de pinheirais completamente desérticos.

A indústria nascente, inicialmente incipiente devido a um amadorismo que se manteve vigoroso durante muitas décadas, fomentou a mudança e gerou inovação, muito embora sejam hoje bastante visíveis, sobretudo no que concerne aos espaços onde as potencialidades eram maiores, as consequências nocivas de uma falta de preparação e de entendimento que geraram, à semelhança do vinha acontecendo desde há muitos séculos, um caos complexo num tecido construído à sombra de arrufos, sonhos e impulsos particularizados.

O Estoril, paradigma de uma excelência urbana que mesmo hoje ainda não se perdeu, surge assim como o culminar de um processo de promoção turística que se havia iniciado com as primeiras tentativas de trazer a Corte para a Vila de Cascais. De facto, quando o Visconde da Luz, desde o início da década de sessenta do Século XIX, começa a criar no espaço cascalense as inovações urbanas que à partida sustentariam a atractividade que garantiria a vinda da Corte, com os benefícios evidentes que daí adviriam para o bem estar diário da população, estava longe de perspectivar o conjunto de importantes consequências do seu acto no restante espaço até aí quase desértico do Concelho de Cascais. O nascimento do Monte Estoril, numa espécie de resposta aburguesada àquilo que era a singeleza do veraneio aristocrático de Cascais, dá início a um processo contínuo de urbanização não sistemática que recria a paisagem litoral quase até à zona de Carcavelos, no qual o surgimento do Estoril se torne simultaneamente num ponto final e num entremeio gerado a partir da diferença, do propósito e das consequências do acto de criação urbana.

Num dos trabalhos que anteriormente trouxemos a público (14), frisámos precisamente que o efeito gerador de inovação no tecido urbano estorilense, para além de ser muito recente, é consequência directa daquilo que, de forma não planificada, se fizera anteriormente em outras partes do Concelho de Cascais. Fausto Figueiredo, o principal promotor do projecto do Estoril, havia sido já edil do Concelho de Cascais, com evidentes responsabilidades na promoção urbana e turística das demais parcelas do território municipal. Foi na condição de ex-autarca, com responsabilidades acrescidas no dealbar do turismo Nacional, que Fausto de Figueiredo se apresenta aos Governos de então explicando que a viabilização e o apoio ao nascimento da nova localidade seria de especial interesse para a gestação de uma forma nova de ser, de estar e de entender a promoção turística no todo Nacional. O relevo desta postura foi de tal maneira flagrante na criação do Estoril, que a sua lógica é imediatamente assumida pelos organismos estatais responsáveis pelo sector, assumindo-se como assaz curiosa a forma como se entendem a importação de arquétipos gerados no norte da Europa, para suportar uma actividade que, nesta região, pouco ou nada tem a haver com aquilo que se fazia noutros sítios. A promoção externa do Estoril, como dissemos no trabalho atrás referido, baseia-se assim muito mais naquilo que se pretendia fazer do que naquilo que efectivamente já existia, recriando-se assim uma paisagem que, embora embuída do espírito pragmática de Martinet, deixava antever, num ciclo de inesperada serenidade, aquelas que vinham sendo as perspectivas, as expectativas e as vicissitudes da sociedade daquela época: “O empreendedor autor do Estoril, que pouco tempo antes havia sido Presidente da edilidade cascalense, sempre afirmou, quer nos discursos públicos que vai proferindo, quer nos muitos panfletos que lança e em entrevistas que concede aos jornais, que o novo Estoril, nascido na antiga Quinta do Viana que havia adquirido com base no estabelecimento de uma sociedade com Augusto Carreira de Sousa, deveria, mais do que um projecto seu, afirmar-se como um projecto Nacional, única forma de tornar viável a sua edificação e concretização e, da parte do Estado, única forma coerente de ultrapassar a crise com que Portugal se debatia, fazendo entrar nos cofres públicos verbas avultadas que se receberiam nas muitas actividades que o turismo internacional exigia que existissem. O mote especial do carácter Nacional do Estoril, muito utilizado para a promoção do projecto que Schröter vai levar às mais altas instâncias lisboetas, alicerça também a fama do novo local, pois para além de se mencionar constantemente a mais valia que o espaço representa para a muito necessária modernização do País, permanentemente se gabam as potencialidades naturais da sua envolvência”.

Esta ideia de novidade total e absoluta, marcada pelo cunho pessoal de Figueiredo e pela pena do arquitecto francês Martinet, é aliás corroborada por Gonta Colaço e Maria Archer, que sublinham que o Estoril anterior é local ermo e de solidão total, no qual as visitas se processavam de forma espaçada e pessoal, centradas nas águas termais que no estabelecimento do Viana eram exploradas (15): “o Dr. Domingos Pinto Coelho, o Coronel Velez Caldeira, veraneavam por essa época no Pátio do Viana. Veraneavam ali os poetas, os artistas, os sonhadores que amavam o isolamento, a mata, o areal deserto, o mar sem ninfas em fato de banho”.

A constituição deste novo aglomerado urbano, centrado na inovação que derivou da existência de uma planificação prévia e de um esforço promocional de cunho verdadeiramente propagandístico, contrastou em definitivo com aquilo que tinha sido (e infelizmente continuou a ser) o paradigma construtivo e urbanizador do espaço concelhio. Onde antes se situava a imaginação, o sonho e as necessidades de cada um, passava agora a existir uma orientação geral e prévia que, com o cuidado de deixar liberto um espaço de criatividade que pudesse permitir o espelhar das motivações pessoais de cada um dos proprietários e construtores, impusesse regras gerais muito estreitas que garantissem o normal funcionamento e a qualidade de vida no espaço. Nos lotes que actualmente compõem o Estoril moderno, e apesar de vicissitudes várias que afectaram a política urbanística de Cascais ao longo dos últimos tempos, é ainda possível vislumbrar muitos daqueles que foram os resquícios e as orientações promovidas por Fausto de Figueiredo através do projecto de Martinet. A dimensão dos lotes e posteriormente as bases de promoção do denominado ’estilo português’ recriam naquele espaço uma homogeneidade cénica que absorve os eventuais problemas conjunturais que sempre afectaram o quotidiano político Nacional.

Ao nível do seu funcionamento, o Estoril actual é também exemplar na forma como nos lega aquilo que é o princípio básico que deve reger a gestão global do espaço público. O comércio, sujeito às consequências mais ou menos positivas da política turística Nacional, única indústria com capacidade para trazer para Portugal a riqueza fiduciária que o País, mesmo que o queira, já não pode produzir, situa-se em torno no núcleo central que é ocupado pela Junta de Turismo da Costa do Estoril. E como não pode haver equilíbrio e qualidade de vida urbana sem habitação, toda a envolvência daquele núcleo central está absorvido pelos espaços privados de habitação, nos quais se desenvolve o dia-a-dia dos estorilenses ao mesmo tempo que gera uma dinâmica que garante atractividade, prosperidade e segurança.

A conjugação entre estes dois factores complementares, ou seja, entre o comércio de proximidade e a gestão turística e a actividade promocional do espaço, marca toda a história recente do Estoril, no qual o sucesso, ao invés do que tem acontecido até aqui, deveria exportar-se para outras zonas do Concelho de Cascais. O Estoril, paradigma de excelência urbana, é ainda hoje um dos poucos espaços concelhios, em que a edilidade cascalense consegue impor um determinado grau de qualidade de vida. Este facto, mais do que às vicissitudes porque passou o lugar, fica a dever-se ao modelo urbano legado por Fausto de Figueiredo, e a uma concepção unitária das actividades que ali se desenvolvem, que, como não podia deixar de ser, se centra nos eventos promovidos pelo Casino Estoril e na parceria que com este foi assumida pela Junta de Turismo.

Como é evidente, não só o manancial de dinheiro que é necessário para dotar o Estoril da sua tão propalada excelência advém do jogo do casino, como também a actividade promocional que a Junta de Turismo ali efectua surge como consequência evidente da importância desempenhada por aquele equipamento na criação de uma base comum de entendimento do restante espaço. O comércio estorilense, contrariamente ao que acontece com os empresários sediados noutras partes do Concelho de Cascais, não depende senão num ínfimo grau de si próprio, uma vez que a animação permanente, fruto das necessidades impostas por um casino sempre activo, lhe garante uma mais valia permanente em torno do seu espaço, facto praticamente irrepetível em outros espaços cascalenses.

Esta conclusão, retirada um pouco à sombra daquilo que tem sido o conjunto de reivindicações apresentadas pelos comerciantes cascalenses relativamente ao estado de profunda crise em que o sector se encontra, é também comprovada por uma análise que rapidamente se pode fazer ao que acontece nas grandes superfícies.

Em todas elas, não só no Concelho de Cascais como também no vizinho Concelho de Oeiras, é visível que o sucesso empresarial e a promoção comercial, fica a dever-se não só a campanhas de promoção bem conseguidas e preparadas, como também a factores de atractividade que transformam aqueles espaços em núcleos privilegiados para o com tacto social e cultural. Onde menos se esperaria, e paredes meias com grandes campanhas das melhores marcas que existem no mercado, as grandes superfícies são capazes de organizar e rentabilizar uma qualquer exposição de artes plásticas ou um recital de música clássica. E embora num qualquer centro urbano tal tipo de actividades redundaria normalmente num estrondoso fracasso, pois são eventos que não atraem grandes massas populares, nem tão pouco rentabilizam os investimentos que neles se fazem, numa grande superfície comercial, na qual se conjugam com uma determinada concepção de espaço, e com campanhas preparadas de forma global pelos empresários, são geralmente um sucesso, que ajuda a promover e a viabilizar determinado tipo de comércio mais convencional.

A determinação sociológica dos públicos que frequentam os espaços comerciais, tanto mais importante quanto sabemos hoje que o sector turístico é o único que pode fornecer um fluxo concreto de público que viabilize comercialmente o nosso empresariado local, foi por demais evidente na forma como Fausto de Figueiredo concebeu o Estoril, sendo capaz de gerar uma dinâmica urbana que promovesse determinado tipo de actividades que com ele fossem coniventes. A imagem de marca da localidade, mais do que de determinados factores directamente relacionáveis com as características intrínsecas do espaço, ou com o conjunto patrimonial que ali havia sido construído, prende-se com a forma como se soube promover essa adequação entre o projecto de Martinet e um público alvo escolhido de maneira a garantir a viabilidade económica e social do novo povoado.

A praia, as termas e o jogo, essenciais na determinação do sucesso empresarial do Estoril, não são mais do que a repetição incessante daqueles que haviam sido, desde há mais de cinquenta anos, os principais sustentos da pouca promoção de que foram alvo outros espaços do Concelho de Cascais. Com excepção das águas termais, que mesmo assim são também elas a base da criação da povoação de São João do Estoril, onde também existiam praias de renome e algum jogo com atractividade para merecer atenção de órgãos de comunicação de âmbito Nacional, as praias e o jogo, são igualmente apanágio de espaços tão paradisíacos como o Monte Estoril e tão cosmopolitas como Cascais. No entanto, e apesar de tudo, será precisamente nesta panóplia de actos repetidos de forma incessante que o Estoril encontrará a base se sustento do seu aparelho promocional.

Mas onde é que, de forma efectiva, reside a base que enforma o enorme êxito urbano e comercial do Estoril? Porque razão é que a Companhia Monte Estoril, também ela surgida de forma integrada e global, pela mão de um ilustre promotor do século anterior, faliu de forma estrondosa mesmo quando teve um êxito que resultou do cumprimento integral dos propósitos inicialmente determinados? Porque razão é que em Cascais, com um casino magnificamente situado sobre aquela que era considerada uma das mais interessantes e visitadas praias de então, o fulgor se foi progressivamente perdendo enquanto o Estoril, mesmo com poucos visitantes e sem nenhuma importância estratégica ou política, consegue impor o seu nome e vingar os projectos comerciais que ali se vão delineando?

A resposta a estas questões, fundamentada pelos dados concretos que mais adiante apresentaremos, permitirá ao empresariado comercial cascalense retirar ilações que serão efectivamente fundamentais na recriação de uma dinâmica que desde há mais de dez anos que tem vindo a desaparecer, e que tem levado consigo grande parte do fulgor urbano e social deste Concelho. Mais do que determinar as razões que levaram ao sucesso ou ao insucesso de determinado projecto urbano, como explicámos anteriormente intimamente relacionado em permanência com a sua pujança comercial e com os equilíbrios que se estabelecem entre esse factor e os restantes sectores de existência dentro de um determinado espaço, importa agora perceber quais são os caminhos que mais facilmente conduzem ao fim da crise, ao mesmo tempo que, tal como foi capaz de fazer o empreendedor estorilense Fausto de Figueiredo, se recriam espaços de harmónica liberdade a cada empresário para construir o seu negócio de forma a gerar a riqueza e a dinâmica que necessita para fazer vingar a sua actividade.

A responsabilidade social do comerciantes, tantas e tantas vezes olvidada por parte das instituições responsáveis pela gestão pública de âmbito municipal, é duplicada pelos facto de serem geradores de riqueza, de postos de trabalho e de bens e serviços essenciais. Apesar de ser essencial considerar falaz o conjunto de críticas que sistematicamente se apresentam como sustento da acusação de que é o seu carácter ultra conservador, aliado a uma total incapacidade de trabalhar em conjunto, que conduz o comércio tradicional à situação caótica em que actualmente se encontra, é muito importante sublinhar que, sem um esforço efectivo numa reconversão de mentalidades e de postura, dificilmente se conseguirão retornar às glórias de tempos idos, nos quais a proximidade, aliada a uma tradicionalidade que se afigurava sinónimo de confiança e de satisfação, garantia sucesso profissional e um bem estar social que jamais retornará.

Nos tempos actuais, e numa sociedade que é commumente apelidada de equívoca e volúvel, é fundamental pensar na precariedade como um factor eminente e indissociável de qualquer carreira profissional. Lojas e empreendimentos comerciantes fechados à inovação; incapazes de compreender a mudança; e invariavelmente reivindicativos sem um sustento de empenho pessoal e de entendimento perante a novidade, dificilmente conseguirão dotar-se das condições que permitirão, por exemplo do Estoril do início do Século XX, o sucesso incomensurável de outros tempos. De acordo com a opinião do ilustre investigador Paulo Pina, autor de uma obra fundamental sobre a evolução da propaganda e do turismo em Portugal (16), a excelência adquirida pelo Estoril baseou-se muito mais na capacidade dos seus empreendedores em recriar em seu torno um ambiente de excelente promoção e qualidade, do que nas características próprias do empreendimento. A linha férrea electrificada, o extraordinário e inovador casino, para já não falar nos enormes e avultados investimentos nos hotéis e até nos equipamentos que serviram de base à rentabilização do estabelecimento termal, foram essenciais na recriação desta dinâmica e na consolidação geral da vida comercial do recém criado povoado: “Três anos volvidos [relativamente à data do início da construção do Estoril], com a regulamentação do jogo, o Estoril é elevado a zona permanente, concessionada pela «Estoril-Plage», desdobramento da firma inicial. Em 1931, um ano transposto sobre a inauguração do requintado Hotel Palácio, abre festivamente o primitivo Casino Estoril, mola real do seu desenvolvimento. Paralelamente, impunha-se dotar a estância com uma adequada ligação a Lisboa. Fraccionando-se em nova empresa específica chamada «Estoril», a sociedade arrenda à C.P. o obsoleto ramal ferroviário de Cascais, prontamente electrificado. Em 1927 o País assiste, orgulhoso, ao deslizar suave da sua primeira composição eléctrica. «Todos têm o desejo de sentir a sensação de viajar num comboio eléctrico, coisa desconhecida entre nós» - assinala a imprensa. «O comboio corre veloz pela linha. É espantosa a velocidade que o comboio toma. Sem balanços, sem faúlhas e sem fumo, a viagem Lisboa-Cascais, que dantes era um martírio, agora é um prazer». Testemunhando o arrojo de Fausto de Figueiredo no lançamento do Estoril, registe-se que a «Financière Belge», simultaneamente técnica de electrificação e financiadora da parte ferroviária do projecto, descrente da viabilidade económica do Estoril como estância de turismo, obrigara os seus responsáveis à criação cautelar da Sociedade «Estoril», independente da «Estoril-Plage», agora confinada ao centro de vilegiatura”.
Mais à frente, sublinhando o carácter inovador do empreendedor estorilense, fundamental para a criação da dinâmica de qualidade que sempre caracterizou o projecto do Estoril, Paulo Pina refere mesmo que a perenidade desta ideias foi de tal maneira retumbante que os próprios topónimos locais passaram a espelhar este novo estado de funcionamento: "“final, quer uma, quer outra das empresas, revelando o acerto da aposta inicial, seriam bem sucedidas nos seus objectivos, não obstante a conjuntura adversa com que se defrontaram. O turismo do Estoril vingou, nacional e internacionalmente; a electrificação da ferrovia, de tanto sucesso, deu mesmo origem a um topónimo social – a Linha, como desde logo passou a ser designada a elegante orla balnear que se estende de Lisboa a Cascais”.

O exemplo de sucesso do Estoril conferido não só pelo impacto que inicialmente teve na sociedade portuguesa, como também pelo arrojo que denota, têm hoje importância redobrada para o comércio tradicional local. Em primeiro lugar porque, contrariando a crise que grassava naquela época, é capaz de impor um modelo diferente de subsistência, alterando a conjuntura e as determinação do público a que se destinava; em segundo lugar porque, contrariamente àquilo que os comerciantes de Cascais têm por hábito fazer, foi capaz de perceber que a complexidade do sistema é de tal ordem que, mesmo correndo o risco de desvirtuar a ideia subjacente ao projecto inicialmente formulado, apostou em apetrechar a envolvência com uma série de equipamentos que, apesar de à partida parecerem ser da responsabilidade de organismos terceiros, eram de tal forma essenciais para a sua actividade que não fazia sentido não ser ele a responsabilizar-se por os promover.

A electrificação da linha férrea, necessariamente projecto de avultados custos e de dificuldade negocial acrescida, não só junto dos financiadores externos, como também da C.P., foi entendida como vector de essencial relevância nas acessibilidades ao novo empreendimento. E se, ao nível de um Estado envolto de profundas convulsões e numa crise de que não se vislumbrava o fim, não era possível antever uma intervenção que garantisse a sua adequação às necessidades do presente, então a única saída do empresário é assumir ele próprio os custos de um investimento ulterior, e garantir o sucesso de mais um desiderato. Incomparavelmente à frente daquilo que eram as lógicas impostas aos empresários do seu tempo, Fausto de Figueiredo, empresário ligado ao sector da promoção imobiliária, percebeu que era essencial ser também ferroviário, hoteleiro, promotor turístico, político e, se calhar, mesmo jardineiro. A capacidade de adaptação; a flexibilidade negocial; a estão integrada dos projectos; garantiu-lhe sucesso nos seus empreendimentos, mostrando a Cascais que, após mais de setenta anos desta data, ainda existem lições a retirar do seu complexo modo de funcionar.

A cidade concebida por Figueiredo, mais do que o Estoril que hoje conhecemos, é uma urbe utópica de um futuro qualquer, na qual são os privados, alicerçados num empresariado que controla os meios, gera a dinâmica interna, e promove os entendimentos, que garantem o sucesso de todo o processo. É fácil perceber que num Estoril sem casino; sem um jardim com aquelas características, forma e dimensão; sem as tão famosas arcadas; sem os hotéis de renome e de rebuscada orientação arquitectónica; sem uma linha férrea adaptada ao conforto que os turistas desejam; sem as praias limpas e bem equipadas; sem um sistema eficaz de recolha de lixos; sem um cuidado exemplar na promoção dos lotes destinados à habitação; sem um investimento rigoroso na animação; jamais seria possível antever um tão estrondoso sucesso.

É essencial que se veja claramente que, mais do que pela conjuntura politicamente favorável; pela eleição de este ou daquele presidente; pelos circunstancialismos de determinado favorecimento; a concepção rigorosa deste conjunto de actividades só foi possível por ser o próprio promotor a concebe-lo. Quer queiramos quer não, os partidos políticos ou os governantes podem estar vocacionados para a governação, para a escolha das melhores soluções ou para a planificação geral de um determinado projecto. No entanto, porque não são nem podem ser parte interessada num determinado caminho, jamais poderão ser alvo de uma consciência crítica e lógica simultaneamente que lhes confira a possibilidade de o entender perfeitamente. A fundamentação política de uma acção, seja ela de que natureza for, baseia-se sempre na sua essência, numa efectiva necessidade sentida pelo povo.

Quando se verifica uma determinada necessidade, num contexto de crítica aberta e de oposição, fácil se torne responder politicamente ao desejo. Quando, por outro lado, a resposta a determinada função exige a capacidade de antever, numa perspectiva de reflexão, uma situação a que se deve responder de imediato, então o entendimento tolda-se perante os factos do presente, e as necessidades mesquinhas e efectivas do dia-a-dia acabam por sobrepor-se normalmente às antevisões de largo espectro de que o empresariado depende.

A história e a biografia política do Marquês de Pombal, já citado anteriormente por ter sido figura de extraordinário fulgor inovador na recriação urbana de uma Lisboa congruente com o seu tempo, é demonstrativa da dificuldade atrás referida. O projecto de extinção do passeio público e a criação de avenidas grandes, largas, e abrangentes, adaptadas àquelas que seriam as necessidades de uma capital europeia cerca de cento e vinte anos mais avançada no tempo, foi alvo de inúmeras críticas políticas por parte da sociedade do seu tempo. No entanto, sem essa extraordinária capacidade de visão, aliada a uma planificação rigorosa e exigente de todo o tecido urbano que então voltava a nascer, dificilmente Lisboa seria hoje uma capital adaptada às necessidades de uma Europa efervescente, na qual os carros, as pessoas e os transportes públicos esgotam permanentemente as avenidas outrora consideradas inúteis e anormalmente desadequadas.

Sem o cataclismo de 1755, e sem uma preparação cultural bem estruturada que raramente existe nos governantes que zelam pelos nossos interesses, jamais o Marquês teria conseguido fazer aquilo que fez. As inovações, sempre muito mais precárias que hoje conhecemos, teriam sido feitas somente quando as situações de caos fossem inultrapassáveis e as convulsões sociais estivessem eminentes.

Da mesma forma, se Fausto de Figueiredo aguardasse pacientemente que a edilidade cascalense, o Estado Português e as demais entidades intervenientes conjugassem esforços e políticas para recriarem o conjunto de condições que viabilizem o seu empreendimento, ainda hoje o Estoril seria um projecto utópico como muitos outros que bem conhecemos, e que permaneceria empoeiradamente guardado num qualquer arquivo ou museu. Se as coisas se tivessem processado dessa forma, o espaço onde hoje se ergue altaneiramente o Estoril, com o seu cunho de qualidade por todo o lado reconhecida e sublinhada, teria sido certamente ocupado com mais um núcleo urbano de duvidoso gosto arquitectónico e de inexistente planificação urbana.

O empresariado de Cascais, num início de milénio conturbado, tem se perceber que dele depende quase tudo o que diz respeito ao futuro do nosso Concelho.
Evidentemente que, contrariamente ao que sucedeu no Estoril, onde o carácter inóspito e desértico do sítio não obrigava a equilíbrios e a congruências com outros intervenientes no processo, o esforço que agora tem de ser feito deve ter em conta factores tão diversificados como a habitação, o turismo e o lazer. Apesar disso, a criação de uma dinâmica própria, de um ritmo de atractividade que promova a componente empresarial, e a gestão global do espaço, deve ser fruto da intervenção directa dos principais interessados que, mais do que entregar às entidades competentes elementos, ideias e projectos, devem assegurar a sua concretização, considerando-os um verdadeiro investimento.

A ideia subjacente a este princípio, delimitando um campo misto de intervenção que garante uma série de novos direitos aos comerciantes e, consequentemente, também um conjunto de novas obrigações que devem assumir perante a comunidade, transforma a urbanidade cascalense numa espécie de cadinho no qual se estabelecem o conjunto de regras que delimitam a vivência social e política no espaço. A gestão do conjunto de matérias que compõem o espaço público, alicerçado em valores que permitam a todos os interessados a criação de relacionamentos com as suas origens sócio-culturais, é o único caminho que permite atingir um nível de desenvolvimento coerente e equilibrado, e ao mesmo tempo propulsor de riqueza e de prosperidade. A cidade, hoje cada vez mais um espaço onde a geração de novas ideias e projectos se regenera a um ritmo alucinante, é também o local mais propício à criação de novos problemas. Mais do que a forma como se planeia o seu crescimento, ou de como se gere na perspectiva da manutenção da qualidade que todos desejamos, a cidade depende das interacções psicossociais das comunidades, sem as quais é impossível salvaguardar os ritmos de segurança, bem-estar e lazer que a tornam num espaço apetecível e essencial.

A interdisciplinariedade inerente à planificação urbana, integrando valências tão díspares como as da história, da arqueologia, da história da arte, do urbanismo, da arquitectura, da sociologia ou da psicologia, transforma a nova cidade num local onde se torna praticamente impossível dissociar os componentes que a constrangem. A qualidade de vida na cidade, apesar de não poder ser determinada por nenhum elemento que se afigure essencial, e de se saber que para o abordar é fundamental que se conheçam os multifacetados conjuntos de influências que compõem a sua estruturação interna, é hoje cada vez mais o resultado da forma como os equilíbrios e os consensos se vão gerindo.

Exemplar na aplicação deste princípio, uma vez que as grandes reformas são sempre passíveis de crítica e de discórdia, quanto mais não seja do que por consequências de parâmetros diferentes na avaliação pessoal que relativamente a eles cada um elabora, Cascais tem sido pródigo em situações nas quais a assumpção deste princípio poderia ter revertido em formas diferentes de organização que fossem mais adequadas aos interesses gerais dos diversos componentes da sociedade. De facto, e colocando de lado, por totalmente impraticáveis, as grandes reformas estruturais de que o Concelho necessitava, que se ficaram por inexprimíveis trocas por vezes pouco convenientes de enormes discussões em alguns órgãos de comunicação social, as pequenas intervenções pontuais acabaram também elas por ser afectadas pelo clima de instabilidade constante que, pelos menos ao longo dos últimos vinte anos, grassou no município. No Concelho de Cascais, totalmente absorvido pela luta quase fratricida travada pelos principais responsáveis partidários de âmbito local, a gestão da urbanidade colectiva ficou extraordinariamente constrangida, impedindo que as forças vivas, e nomeadamente os habitantes e os comerciantes ditos tradicionais, pudessem assumir responsabilidade no conjunto de decisões que foram sempre tomadas à sua revelia.

Num futuro próximo, e invertendo este tipo de situação, têm de ser precisamente estes intervenientes, duplamente responsáveis por serem em primeiro lugar aqueles que mais afectados são pelas decisões por vezes erróneas tomadas pelos organismos responsáveis pela soberania e pelo poder, e em segundo lugar por serem eles que, através do voto, consagram, escolhem e legitimam os governantes, a assumirem grande parte das decisões efectivas tomadas nesse vector de actividade. Para enfrentar a crise nascente, que ultrapassa de forma evidente as perspectivas economicistas directamente relacionáveis com o comércio de proximidade, Cascais necessita de consensualidade e de dinamismo interno.

Os principais resquícios de uma municipalidade outrora bem disputada e apoiada pela massa popular, têm de servir na actualidade de base essencial de geração de novos paradigmas urbanos. Ao invés da situação actual, principalmente com aplicação imediata nos principais centros urbanos e, provavelmente, em todas as cabeças de freguesia, Cascais deve saber que a diluição de responsabilidades institucionais passa indiscutivelmente pelo assumir das mesmas por parte de entidades de natureza diferente. As cidades são, aliás, as entidades organizadoras da sociedade que mais capacidade têm, através da agremiação das suas necessidades económicas, de inverterem tendências e de alterar os rumos da sua vida. O carácter volúvel das suas estruturas, marcadas amiúde por um misto de ingenuidade e de profissionalismo, possui todas as características que a tornam, simultaneamente, um repositório prático de saberes e uma conjugação de adaptações que lhe garantem a possibilidade de permanentemente se converterem e reconverterem, alterando a sua formulação e organização interna, e adaptando-se a novas circunstâncias. Jane Jacobs, uma das principais especialistas nas problemáticas relacionadas com a economia das cidades e vencedora do prémio ‘Los Angeles Times Book Review’ para obras de não-ficção, é peremptória neste princípio, delimitando desde logo uma espécie de caminho que os principais intervenientes no processo de reconstrução da urbe - leia-se os comerciantes – poderão seguir para se livrarem das consequências nocivas e propagadoras da crise que resultam do conservadorismo que caracteriza as políticas partidárias locais (17): “We can’t avoid seeing, too, that among all the various types of economies, cities are unique in their abilities to shape and reshape the economies of other settlements, including those far removed from them geographically. To take a simple and small example, consider the twists and turns to be found in the economy of a single hamlet, in this case a little cluster of stone houses perched high in the Cevennes Mountains in south-central France, one of the poorest parts of that country. The hamlet, Bardou, found its way into my Toronto morning paper because it is so charming, having become a kind of Shangri-la for writers, musicians, artists and craftsmen fleeing the cities of Europe, the United States and Canada in search of beauty and a cheap, quiet place in wich to work”.
A capacidade das cidades em se adaptarem aos tempos e às vicissitudes da vida, é assim mais do que uma consequência das suas características intrínsecas, para se assumir como uma consequência efectiva da capacidade das suas forças vivas.
Cascais actual, marcado pela força ainda fulgurante das sua estrutura edificada e por uma paisagem verdadeiramente ímpar, reduz a meros aspectos de insignificância as muitas alterações que se têm verificado no conjunto de fundamentos económicos que envolvem a sua governação. A mensagem de esperança, deixada de forma eficaz por vários séculos de um devir histórico no qual a urbanidade local raramente foi alterada na sua essência, é a de que o comércio de proximidade, com o cunho vincado pela tradicionalidade e pela sua vibrante capacidade de compreender aqueles que são os principais focos de tensão na comunidade, teve, tem e terá todas as características que lhe permitem assegurar um futuro risonho e plano de prosperidade.
Apesar da crise, incontornável nos mais perniciosos aspectos que rodeiam as indesejáveis consequências nos equilíbrios financeiros do empresariado, o comércio de proximidade de Cascais está dotado, mesmo através da envolvência que fornece um cenário digno às transacções comerciais que ali levam a efeito, de tudo o que é necessário para transformar a situação, recriando a qualidade, a distinção e a clarividência necessária à prossecução dos seus objectivos.

Muito embora se afigure válida e essencialmente segura a afirmação de que sem o poder público jamais os comerciantes conseguirão inverter a tendência de crise que se instalou, sobretudo pelas consequências de um conjunto de circunstancialismos de âmbito legal e institucional que já referimos de forma aprofundada, também é extraordinariamente importante que se entenda que é na capacidade de afirmação pessoal de cada empresário, e na sua habilidade para conjugar esforços numa perspectiva colectiva, que reside a possibilidade de verdadeiramente se recriar uma dinâmica diferente. O empresariado cascalense, e principalmente aquele que mais directamente tem sentido no seu negócio as consequências mais evidentes da criação de estruturas comerciais de largo espectro de intervenção, que se fundamentam em princípios legais diferentes e que limitam a livre concorrência, precisa agora de ser mostrar flexível em termos de uma objectiva vontade de mudança que, contrariando as tendências e um certo imobilismo, lhe garanta a possibilidade de ultrapassar, de forma assaz premente, as novas barreiras que se criaram em seu torno.

Nas grandes superfícies, e apesar de muitos e variados factores que incentivam o consumo e a prosperidade comercial, é praticamente impossível pretender recriar um ambiente urbano de qualidade, que fundamente uma vivência cultural, física e social comparável ao que sucede nas cidades. Quando muito, e rentabilizando aspectos que o comércio tradicional ainda não pode contrariar, como são, por exemplo, determinados aspectos relacionados com a legislação laboral e com as formulações relacionados com a política do arrendamento, essas grandes superfícies conseguirão aspirar a garantir a manutenção das prerrogativas que possuem ao nível da instalação das denominadas ‘lojas-âncora’, como são os hipermercados, e o seu funcionamento como unidades globais de gestão.

Mesmo assim, e sobretudo no que concerne às responsabilidades e possibilidades das associações comerciais, é possível já vislumbrar um profissionalismo que garante uma aproximação permanente ao modelo geral de utilização, promoção e rentabilização empresarial em vigor nesses lugares. Aliando esta nova postura ao conjunto de regalias, benefícios, incentivos e potencialidades próprias do espaço de excepção em que se inserem, fácil se torna perceber quão díspares são as capacidades de afirmação destas duas realidades, e como se torna fácil, com a criação de uma consciência cívica que sirva de base e de suporte, impor um modelos de exploração comercial e urbana das cidades que passe no seu essencial pelo comércio de proximidade.

Num diálogo fictício que surge a ilustrar um dos mais interessantes capítulos da obra ‘Arquitectura Portuguesa – Temas Actuais’, da autoria de José Manuel Fernandes, dois lisboetas de um outro tempo e de uma outra cidade discutem de forma extravagante duas formas distintas de analisar o espaço. Para um, habituado à monotonia cromática e sensaborona de formulações vanguardistas das orientações arquitectónicas, a concepção de uma cidade onde a proximidade e o conforto urbano são omnipresentes não fazia qualquer espécie de sentido. Para outro, assumindo a sua vivência citadina, a existência num espaço onde a ilusão da patina do tempo marca permanentemente a paisagem é essencial à qualidade de vida, retira qualquer espécie de importância a factores tão essenciais como o preço e o acesso a determinadas zonas da cidade (18): “Continuavam a ingerir bebidas, sentados no terraço onde fora, anos idos, a cobertura dos decadentes «Armazéns» (recordavam-se ainda das desaparecidas e fantasistas bolas em néon do anúncio luminoso); e conversavam, indiferentes ao barulho longínquo das betoneiras que despejavam o cimento num dos últimos neo-pombalinos ainda em obra, do lado da Rua Nova do Almada. – Ouve, Tomás, bem sei que gostas muito do teu «duplex» da Rua Augusta, mas não achas que foi um pouco caro demais, para tão pouco espaço? – E o prazer de não usar carro para ir ao atelier, como metro ali ao lado? E a facilidade das compras nas lojinhas de bairro da Madalena? Não; com o sossego da rua, depois de lhe terem posto aquela cobertura fantástica em metal e vidro, e de só passarem peões e de ter à mão os cinemas do «Hiper-Marquês», com aquelas programações da Cinemateca – sabes, no quarteirão onde antes era o BNU, de que até aproveitaram aquela porta incrível, género «Tio Patinhas», que lá havia... Álvaro seguia distraído o entusiasmo do amigo pelas novidades locais; de feitio conservador, no íntimo achava que nunca conseguiria habituar-se a certas coisas para ele tão dissonantes, como as duas esquinas logo ali ao lado (que tinham tomado o lugar do «Eduardo Martins» e da loja da «EDP») com as suas fachadas totalmente lisas e abstractas, onde as únicas formas assinaláveis eram os buracos rectangulares das janelas, alinhados e monótonos»”.

O diálogo em questão, tradutor de duas formas distintas de entender a cidade, é, na sua essência de extraordinária importância pedagógica para o comércio cascalense. Por um lado, optando pela visão mais conservadora do espaço, o empresário do comércio dito tradicional pode fazer jus única e exclusivamente desse factor, procurando manter incólume a linha de rumo traçada dez, vinte ou trinta anos antes, e assumindo as consequências de manter de porta aberta ao público um negócio ou uma forma de comércio que já nada tem a haver com as necessidades, com a sensibilidade e com a vontade da sua freguesia. Por outro, pode optar por elaborar uma análise serena da nova realidade envolvente, determinando um rumo novo que, mesmo mantendo na essência a postura e a perspectiva anterior (de notar que na maior parte dos casos são compatíveis e mesmo indissociáveis estes dois factores), lhe permita adequar-se ao usufruto das novas clientelas.

Neste rumo de inovação e mudança a primeira regra é manter tudo em aberto porque, apesar de, como dissemos anteriormente, muitas vezes ser precisamente no caminho da tradicionalidade que reside a mais valia do comércio de proximidade, muitas outras é na constatação dos factos reais que o comerciante deverá enquadrar uma mudança radical que poderá passar por mudanças de ramos de actividade, por alteração significativa do espaço da loja ou meramente pela transformação da sua apresentação.
Apesar de tudo, e pese embora o facto de este exercício ser de índole marcadamente individual, com óbvias implicações nas relações dinâmicas que cada um estabeleceu com fornecedores, clientelas e funcionários, é essencial perceber que a negação dos factos novos e da realidade envolvente possui uma factura de tal forma cara que, de forma evidente nalguns pontos do Concelho de Cascais, a própria dinâmica da urbe se encarrega de tomar providências que garantam a tal adequação forçada. Nesses casos, quando os processos de insolvência assumem posições irreversíveis, assistimos a dramas pessoais e institucionais de cunho verdadeiramente extraordinário, mas assistimos também, quando o próprio tecido urbano depende dessa regeneração para poder garantir a sua saúde social, a uma adequação natural dos factos através de empreendedores renovados que, utilizando conhecimentos, técnicas e motivações novas, conseguem inverter a tendência e transformar espaços de facto moribundos em locais onde o apelo ao consumo é incontornável.

As associação empresarias deste sector, único ponto de sequência lógica na cadeia que permita assegurar um determinado sentido comum nas intervenções e nos percursos comerciais dos seus associados, possuem responsabilidades acrescidas neste vector. São elas que, contrariando as tendências por vezes catastróficas dos mercados, podem desenvolver diagnósticos de conjunto relativos à situação vivida, procurando, desta forma fundamentada e lógica, reagir com perenidade aos desafios envolventes. São elas também que, fazendo jus à sua capacidade mobilizadora e à força da sua representatividade, conseguem impor ao poder político o conjunto de medidas estruturais e/ou conjunturais que permitem resolver os problemas.

No entanto, e para que isto aconteça, não basta que associações ou agremiações de comerciantes se juntem periodicamente para discutir, com base nas experiências mais ou menos amargas dos associados que se encontram mais próximos da sua direcção, as medidas a tomar em cada sector. É fundamental que exista uma base de trabalho credível; um sustento de diálogo permanente com as entidades competentes; e sobretudo conhecimento técnico que fundamente as propostas que venham a aparecer. A nova postura que se exige ao empresariado comercial deverá também ser seguida pelas instituições responsáveis pelo sector. Não é viável nem lúcido que, procurando renovar-se internamente e sustentando-se num esforços económico que é por demais evidente para conseguir adquirir as bases técnicas e a consciência crítica que é essencial à prossecução dos seus objectivos, as associações comerciantes encontrem nas autarquias e nas demais instituições, parceiros indisponíveis ou impreparados para os perceber.

Os fundamentos técnicos que devem sustentar intervenções de fundo nesta área, baseados em rigoroso parecer lógico, e numa eficaz representatividade associativa, devem enquadrar-se em entidades paralelas que, apesar de dependentes das duas partes em jogo, possam decidir, de forma isenta, livre e adequada, promovendo assim as condições necessárias ao cumprimento das directivas emanadas pelo comércio, e tendo como balizas norteadoras dessa intervenção aqueles que são os necessários cuidados com as sensibilidades e prerrogativas dos serviços e habitação que os possam envolver. Estas entidades autónomas, marcadas pelo rigor técnico dos seus pareceres, são parceiros de extraordinário valor para comerciantes e organismos oficiais, pois para além de assegurarem o diálogo construtivo e aplicável, possuem também a legitimidade necessária para expor imparcialmente determinado tipo de obrigações a ambas as partes em jogo.

As agências de desenvolvimento local, agregando entidades díspares que promovam a urbanidade social dos espaços, são neste início de um novo século uma espécie de semente de novos rumos e orientações, nas quais se espelham as dicotomias entre poderes diversos e inconsequentes, ao mesmo tempo que canalizam saberes, motivações, experiências e necessidades. Desagregados de interesses efectivos de carácter imediatista no espaço em que funcionam, pois não dependem nem de jogos partidários que possam afectar a gestão política da autarquia, nem tão pouco estão dependentes das reais consequências económicas e financeiras do seu trabalho, estes organismos fornecem a tão necessária visão global e eficiente do espaço público, ao mesmo tempo que motivam e interpretam quaisquer alterações entretanto monitorizadas no sistema.
Na Vila de Cascais, onde aspectos tão essenciais como a degradação patrimonial, a falta de segurança urbana, a progressiva destruição dos seus potenciais paisagísticos e ambientes, e a paulatina desagregação do conjunto de equipamentos urbanos que asseguravam o bem estar quotidiano da população, se juntam num mesmo tempo e espaço constrangendo a vida de habitantes, comerciantes e autarquia, a criação de agências de desenvolvimento, afigura-se o melhor caminho para garantir que a vila envereda pelo sucesso e pelo equilibrado progresso.

Desde há muitos séculos, quando os primeiros humanistas perceberam que a cidade era o repositório de quase tudo aquilo que importava ao Homem moderno, assumindo-se doutrinariamente como espaço simultaneamente natural e artificial, que a orientação dos assuntos de interesse comum tem de depender da existência de entidades que, desconotadas com aquilo que são os principais interesses em jogo no seu espaço, seja capaz de perceber quais são as orientações mais adequadas ao bem geral, ao mesmo tempo que impõe as actividades fundamentais ao cumprimento desses desideratos.
Um dos exemplos mais antigo desta situação, ou pelo menos um daqueles que documentalmente é hoje bem conhecido e está comprovado, é o da Vila de Óbidos, junto à Cidade de Caldas da Rainha. Seguindo o exemplo de Lisboa, que em pleno Século XIII se empenhou em calcetar vastos arruamentos da cidade, Óbidos inicia o embelezamento do seu espaço urbano, com empenho redobrado por parte dos seus moradores, mas somente depois de, tendo como base um processo prolixo e demorado encabeçado por D. Filipa de Lencastre, essa tal entidade supra-municipal consegue impor essa obrigação aos habitantes. De acordo com Teresa Bettencourt da Câmara, autora de uma tese de mestrado sobre a arquitectura e o urbanismo de Óbidos, a morosidade nestes processos que visavam dotar a cidade daquilo que hoje consideramos apetrechos urbanos de primeira importância, ficou a dever-se precisamente a essa necessidade de fazer crescer a urbe à medida dos interesses e capacidades daqueles que nela habitavam (19): “Data do reinado de D. Dinis a pavimentação em pedra da Rua Nova, em Lisboa, medida que no século seguinte se alargou a outros arruamentos da mesma cidade e a várias outras do País. No caso da Évora quatrocentista, cada morador das ruas a pavimentar teve de tomar a seu cargo o calcetamento do espaço em frente a sua casa, contribuindo também com os materiais necessários. Tal como a carta de D. Filipa de Lencastre deixa perceber, em Óbidos deviam os cavaleiros, também, intervir na manutenção do pavimento das ruas. Exigindo a cooperação de todos, estes trabalhos de cariz colectivo resultaram, provavelmente, numa realização morosa”.

Mais à frente, e corroborando a ideia que atrás referimos, a mesma autora sublinha que a especialização de actividades na cidade, provavelmente como consequência da cooperação que era necessária à criação dos fundamentos da urbanidade que hoje conhecemos, é uma realidade que acompanha cronologicamente o fenómeno do calcetamento dos arruamentos, demonstrando que, de forma concomitante, a ideia subjacente ao conceito de cidade resulta da criação de estímulos exteriores à própria comunidade nela residente: “Como em todos os aglomerados urbanos medievais, em Óbidos eram certas ruas destinadas exclusivamente a determinada actividade económica. Depreendemos isso de um documento de 1348 que refere a existência de uma área onde trabalhavam os oleiros, profissão frequente na zona, como anteriormente referimos”.

É da dicotomia inerente a este princípio, ou seja, da conjugação de interesses díspares que comungam num mesmo espaço de necessidades comuns, que nasce a obrigatoriedade de dotar a cidade de organismos e/ou instituições que imponham formas alternativas de governação. Os habitantes, leia-se – os principais interessados naquilo que são as bases para uma vivência urbana dotada de qualidade -, assumiram desde sempre papel de relevo na criação e manutenção das estruturas que a compõem. Por outro lado, esse carácter que podemos caracterizar como privado da evolução histórica da urbanidade portuguesa, foi-se diluindo progressivamente, até ser completamente substituído pelo rigorosíssimo princípio de centralização em organismos de índole política que, gerindo o espaço comum e as contribuição que a comunidade oferecia ao Estado através dos impostos, acabaram por assumir quase todas as responsabilidades desse âmbito.

Uma análise coerente deste processo evolutivo, sustentada no conjunto de factos que resultam da evolução histórica da urbanidade no Concelho de Cascais, mostra rapidamente que é totalmente descabido esse princípio e que, a falta de representatividade de determinadas formas de governo autárquico, mais do que o desinteresse dos cidadãos pela coisa pública, inibe maiores participações cívicas, promovendo também, de forma consequente, uma degradação sempre crescente do espaço público e da cidadania a ela inerente.

O entendimento patrístico do Estado, entidade totalmente desvinculada dos interesses reais dos cidadãos e, no entanto, principal responsável pelo suprimento das suas necessidades mais básicas e imediatas, é assim um ponto fulcral na análise que devemos fazer à situação urbanística vivida em Cascais, e principalmente, às consequências evidentemente negativas que resultam para a qualidade de vida de todos quantos nela habitam ou nela trabalham.

O sentido de responsabilidade inerente à existência da cidade, necessariamente desconexo relativamente aos valores existenciais e comunitários vigentes noutros tipos de espaços, transcende de largo modo aqueles que são os resquícios naturais do relacionamento social entre comunidades humanas. A artificialidade da cidade, factor tanto mais importante quanto nos lembremos que nela quase nada se produz e, por outro lado, se especula por vezes de forma dramática a arrazoada, constrange com um cunho evidente a existência no seu seio. No espaço marcado pela urbanidade, a interdependência das diversas entidades que colaboram na gestão comum e no dia-a-dia dos cidadãos, eleva-se a uma potência inimaginável em espaços de génese rural ou agrária. Na cidade, onde cada qual depende do que faz o outro para, num clima de satisfeita reciprocidade, poder dotar-se de mantimentos e artigos de primeira necessidade que o próprio não é capaz de produzir, a hegemonia de um determinado poder origina normalmente um desequilíbrio que trás implicações por vezes muito complicadas na delimitação daquelas que são as obrigações, deveres, direitos e competências de cada um.

Se o calcetamento das ruas poderá não parecer, à primeira vista, um exemplo com a força suficiente para demonstrar este facto, a forma de construção dos edifícios mais importantes da cidade com toda a certeza que o será. Sabendo de antemão que todas as intervenções que se façam na cidade para alterar a sua face urbana exigem sempre avultados meios económicos, e que esses, para se tornarem efectivos, obrigam a que se conjuguem os diversos interesses existentes nesse espaço, fácil se torna perceber que é fundamental que exista empenhamento de todos os agentes para que se cumpram as principais orientações necessárias ao êxito nestes desideratos.

É precisamente o conjunto de meios económicos que se afiguram necessários à urbanidade da cidade que, ontem como hoje, mais constrangem a recriação do equilíbrio de que temos vindo a falar.

Senão vejamos: as grandes intervenções urbanas desenvolvidas na Vila de Cascais e nos mais importantes núcleos urbanos do seu Concelho, realizadas em períodos emblemáticos da vida municipal, resultam quase sempre da iniciativa de entidades de cariz fundamentalmente público.

Como se sabe, a cidade portuguesa, como aliás as cidades da generalidade do espaço ibérico, são vincadamente conservadoras e tradicionalistas. Este factor, aliado a uma crónica dependência de poderes económicos exteriores à própria Nação, inibe grandes modificações no tecido urbano. Estas, por seu turno, só se fazem quando a conjuntura já atingiu o caos, como aconteceu, por exemplo, com o terramoto de 1755 e, mais recentemente, quando a nível viário e urbanístico, o surto de crescimento que vinha caracterizando Cascais ao longo dos últimos 28 anos, acabou por constranger de forma evidente o quotidiano dos que aqui habitam e trabalham.

Nestas alturas, sobretudo por iniciativa pública dependente do mal estar vivido pela população, com o consequente desânimo e mútuo desentendimento, criam-se as condições que possibilitam intervir de forma profunda no tecido urbano consolidado. Tal aconteceu, por exemplo, com a ampla reestruturação urbanística promovida após o terramoto do Século XVIII naquele que era o quarteirão mais importante da Vila de Cascais: o castelo medieval.

Situado na zona onde hoje se erguem a Casa Monte Real e a Casa Leitão, delimitado pelas Avenidas D. Carlos, República e Rua Marques Leal Pancada, o antigo Castelo de Cascais foi, durante muitos séculos, o grande bastião da urbanidade cascalense. Toda e qualquer intervenção que ali se pretendesse empreender, obrigando a uma necessária remodelação do seu tecido construído, obrigaria à alteração de muitas das características que tinham surgido como consequência natural do devir histórico que afectou a criação e o crescimento da localidade.

Como é natural, pelos mais variados motivos que passam pelos constrangimentos económicos, pois era esse o espaço mais caro da Vila de Cascais, como também por motivos culturais, sociais ou políticos, tornava-se impossível modificar de forma profunda aquela zona sem que, previamente, qualquer acontecimento fortuito e não sujeito a decisão política, viesse a acontecer. Com o terramoto de 1755 e com a consequente ruína em que ficaram grande parte dos imóveis situados naquele espaço, e o próprio Castelo de Cascais, surgiu então a grande oportunidade de a vila recriar um espaço de grande qualidade e de enorme adequação urbana.

A adequação urbanística dessa zona, necessariamente também ela constrangida por muitos dos óbices e obstáculos que o terramoto não foi capaz de fazer desaparecer, tornou-se assim essencial para a modernização de Cascais e para a criação de uma zona moderna, adaptada às novas necessidades, que é hoje um cartaz atractivo para a Vila.

Outro exemplo mais recente, e este já com mais importância no conjunto de interesses que constrangem a vida diária dos comerciantes cascalenses, é o da demolição do palacete da Quinta das Loureiras, onde hoje se encontra a Avenida Dom Pedro, ou seja, a nova entrada em Cascais.

De facto, foi somente com a assumpção de formas alternativas da fundamentação económica do Concelho, nas quais assume papel de destaque especial a actividade relacionada com a promoção turística, que Cascais conheceu uma necessidade evidente de se dotar de uma entrada condigna. No entanto, e tendo em conta que o turismo conhece um surto enorme no Concelho a partir de meados da década de sessenta do Século XX, sendo nessa altura que se começam a discutir as primeiras propostas de alternativas para resolver esse problema, foi necessário esperar mais de trinta anos e o desaparecimento de duas gerações de cascalenses, para que se tornasse possível proceder às alterações de fundo que hoje tão bem conhecemos.

A demolição da Casa das Loureiras, com o consequente desaparecimento daquela que havia sido simultaneamente uma das principais explorações agrícolas de Cascais e um dos postos avançados da primeira metade da nossa história do veraneio, desde há muito envolta nas polémicas que fundamentaram os muitos projectos de intervenção urbana que foram sendo pensados para aquele espaço, resolveu, como todos sabemos, uma questão fundamental no acesso automóvel à vila. No entanto, os muitos constrangimentos atrás referidos, obrigaram a que fosse necessário chegar a um período de caos acentuado, no qual todos nos sentimos afectados pela situação, para que se ultrapassassem as barreiras sociais, culturais, políticas e económicas que impediam a sua concretização.

Muito embora não seja, nas vicissitudes urbanas que permitiu, comparável ao terramoto de 1755, o período de caos que cascais viveu ao longo dos últimos oito anos gerou desconfianças latentes entre os diversos agentes com papel interventivo nos equilíbrios urbanos deste lugar. Consequentemente, e em termos daquilo que temos vindo a utilizar para caracterizar a excelência da cidade, foi também ele um período de clivagem brusca e acentuada e, como tal, um marco de passagem que obriga à criação de novas consensualidades e de novos paradigmas na gestão da Vila de Cascais.

Nestes novos tempos, e se possível com base na criação de uma instituição que permita a Cascais, nos seus mais diversos interesses, ver-se representada nas muitas decisões por vezes problemáticas que vai ter de tomar, a nossa vila e o nosso concelho, deparar-se-ão com a obrigatoriedade de recriar os tais equilíbrios latentes, congregando em torno de uma causa comum – a urbanidade cascalense -, os poderes públicos, os poderes políticos, os habitantes, os comerciantes e todos os demais intervenientes neste processo.

No decorrer da segunda dinastia portuguesa, quando D. João II empreendeu aquela que viria a ser a única grande revolução urbanística na arquitectura civil dos edifícios públicos, a responsabilidade por todas as intervenções efectuadas foi já inteiramente da Coroa. Na actualidade, e reconhecendo nos primórdios da nossa existência urbana comum os resquícios daquilo que deveria ser entendido como a base natural da nossa existência comunitária, os diversos intervenientes no processo urbano deveriam reassumir as suas responsabilidades, obrigações e direitos, no quadro de uma sociedade civil coesa, organizada, livre e consciente daquilo que ela própria representa. Apesar de não se ter de chegar ao extremo de apelar a todos quantos habitam ou trabalham na cidade contemporânea para efectuarem a manutenção dos pavimentos defronte dos seus edifícios, o certo é que, para evitar situações de quase catástrofe como aquela pela qual Cascais passou recentemente, é fundamental e essencial que jamais se voltem a concentrar numa entidade totalmente descomprometida perante a sociedade a totalidade dos direitos, deveres, obrigações e responsabilidades da gestão do nosso espaço público.

No caso específico do Concelho de Cascais, no qual a disparidade em termos daquilo que foram os percursos urbanos de cada um dos seus aglomerados habitacionais, existe um exemplo paradigmático desta forma assaz curiosa de funcionar. No Monte Estoril, desde 1880, foi criada de raiz uma estância habitacional e turística que funcionou como motor de um estereótipo urbano que, após ter sido importado das mais cosmopolitas cidades europeias, se adaptou perfeitamente ao devir social e histórico das nossas localidades.

A Companhia Mont’Estoril, que em 1890 tinha como principais accionistas o Conde de Moser, Carlos Pecquet Ferreira dos Anjos, a Sociedade Agrícola e Financeira de Portugal e o Banco Lisboa & Açores foi sempre, desde a sua fundação, o exemplo ideal de um projecto global de urbanização que se deparou com os problemas resultantes das muitas questiúnculas de pequena importância que impedem o excelente cumprimento do desiderato que inicialmente se propõe. De facto, quando foi criado, a Companhia Mont’Estoril pretendia unicamente transformar o Pinhal da Andreza, espaço vazio onde, segundo Branca Colaço e Maria Archer, se ouvia somente o sussurrar permanente do pinheiral, numa estância de renome internacional na qual a qualidade de vida urbana, assumidamente assente na vertente privada de todas as componentes urbanas do empreendimento, se assumia como principal objectivo.

Para o cumprir, os primeiros impulsionadores deste projecto, utilizando o prestígio social e profissional de cada um, recorreram a capitais privados para adquirir toda a área de implantação do actual Monte Estoril [excepção feita ao Monte Palmela]. Posteriormente, e dando mostras de uma larga criatividade que transcendia de forma absurdamente extraordinária tudo aquilo que se afigurava como procedimento normal em Cascais ou em Portugal, entenderam ser essencial que se procedesse a uma planificação prévia e minuciosa de tudo aquilo que se pretendia fazer. No âmbito desta actividade, foram projectados os arruamentos, a distribuição de água, as infra-estruturas primárias como esgotos, iluminação, etc., as construções, e mesmo os pormenores decorativos de cada um dos equipamentos que haveriam de servir a nova localidade.

Como é evidente, sobretudo se pensarmos que no local onde a Companhia Mont’Estoril pretendeu erguer a sua novíssima estância, existia um espaço sem uso que envolvia uma das mais agradáveis zonas costeiras do Concelho de Cascais, fácil se torna perceber que a sua utilização como passagem pública seria óbvia, evidente e natural. De facto, povoações situadas a Norte do Monte Estoril, como a Amoreira, o Casal do Giraldo, Alcabideche ou Alcoitão, serviam-se de caminhos milenares que atravessavam o Pinhal da Andreza para aceder aos seus lares. Quando a nova companhia se instalou, dando início ao processo de urbanização, jamais se pensou em coarctar os direitos de atravessamento que ali existiam, nem tão pouco em privar as populações das redondezas daquilo que haviam sido as principais linhas que orientaram até aí a sua existência.

Apesar de tudo, e como consequência de um conjunto de querelas levantadas por parte de alguns dos inquilinos das propriedades da Companhia, no ano de 1900, o Presidente da Câmara Municipal de Cascais, Jayme Arthur da Costa Pinto, envia aos Directores da Companhia Mont’Estoril um ofício indicando que a pedido de um grupo de moradores da localidade, a edilidade iria proceder a uma vistoria coerciva à urbanização com o intuito de garantir que fica salvaguardado o livre trânsito e os direitos de propriedade dos requerentes.

Como resposta a esta missiva, e demonstrando que a legitimidade inerente ao carácter privado do empreendimento e ao conjunto de espaços de uso público que o integravam, se via reforçada com esta forma de gestão urbana, os administradores da Companhia Mont’Estoril, Arthur de Souza Tavares Perdigão e Carlos da Costa Osório, sublinham junto do Presidente que a edilidade não tem qualquer espécie de direitos nos terrenos pertencentes àquela entidade, tendo sido, por isso, ilegal, a vistoria que haviam anteriormente anunciado. Em termos que podemos considerar pouco próprios para lidar com uma instituição de sublinhada legitimidade como era a edilidade cascalense, os dois responsáveis indicam à câmara que, caso seja necessário, enviarão para a justiça este tipo de procedimentos (20): “Não reconhecendo direitos alguns à Câmara Municipal de Cascaes, ou a qualquer particular, contra a posse e propriedade da Companhia, e estranhando o procedimento havido, «por acto particular», sem processo judicial nem ordem de juiz, invadindo propriedade alheia, esta Companhia expoz sua situação legal e protestou contra o que se pretendia praticar. [...] Todos estes actos são até previstos e punidos no Código Penal”.
O ilustrado Presidente da Edilidade, remetendo para o uso milenar daqueles acessos por parte da população circunvizinha, responde aos proprietários que se não podem tolerar interferências de particulares na gestão corrente dos espaços públicos municipais: “Acusando a recepção do ofício de V.Exªs. de 11 do corrente, cumpre-me , em nome da Câmara da minha presidência, declarar que, as Ruas e Avenidas do Mont’Estoril, há anos abertas ao trânsito e ao serviço público, não estão, nem podem estar sujeitas aos caprichos ou interesses de qualquer particular, tanto mais, que, algumas daquelas vias públicas, são apenas variantes dos antigos caminhos para os lugares da Amoreira, Alcabideche e outros”.

A dualidade entre o público e o privado, contrapondo decisões consideradas essenciais pela administração da estância turística do Monte Estoril com necessidades de gestão corrente da edilidade, ficou cada vez mais evidente, à medida em que se foram esbatendo as características privativas e elitistas da Companhia que, com a proibição do jogo, viu altamente prejudicada a procura aos seus serviços e se viu constrangida a vender largas parcelas da sua enorme propriedade inicial. Na querela levantada por um grupo de moradores e/ou proprietários de lotes no Monte Estoril junto da Câmara Municipal, é visível a perda progressiva da força urbana da Companhia, bem como a diluição dos rígidos princípios doutrinários que haviam enformado a criação daquela nova localidade e que, como todos bem sabemos, haviam sido os principais responsáveis pelo elevado índice de qualidade até aí apresentado. No conjunto de correspondência trocada entre as duas instituições, o edil Jayme Arthur da Costa Pinto chega ao ponto de ostensivamente sugerir o recurso aos tribunais para a resolução do problema, colocando-se numa posição de vantagem perante o conjunto de pretensões dos outros litigantes: “A própria Companhia que V.Exªs. dirigem, compreenderá decerto, que esta Câmara não podia ficar indiferente perante a ameaça, em parte realizada, de se privar o público da livre passagem das ruas em que V.Exªs. mandaram colocar marcos; procedimento este, que alarmou os proprietários do Mont’Estoril, os quais, em representação legal, vieram à Câmara pedir providências urgentes afim de não serem esbulhados os seus direitos”.

Com as duas partes em litígio, ou melhor, com a penosa disputa que se estabeleceu entre uma entidade que pela primeira vez em Portugal procedeu à criação de uma urbanização ampla e previamente planeada, e o grupo de proprietários que, após terem adquirido lotes ou edificações no seu seio, acabaram por sentir que o conjunto de obrigações impostas pela entidade vendedora, e que se destinavam a garantir que os parâmetros de qualidade se atingiam e se mantinham, o Monte Estoril acabou por se tornar no primeiro exemplo daquilo que mais tarde se vai tornar o dia-a-dia do urbanismo no Concelho de Cascais: excelência, beleza e qualidade, na generalidade dos panfletos propagandísticos que promovem as novas urbanizações, mas um desesperante e abandonado caos urbanístico a caracterizar a dura realidade que posteriormente se implementa.

A qualidade de vida urbana, como bem perceberam há muitos anos, os mais evoluídos e progressistas povos do Norte da Europa, depende sempre bastante da orientação e do apoio concedido pelos organismos públicos, mas é essencial que seja complementado pelo rigor, pela isenção e pela motivação dos proprietários privados. No caso que temos vindo a abordar, que surge simultaneamente como exemplo positivo e negativo da urbanidade cascalense, o Monte Estoril aparece no projecto como um óptimo local para se morar ou passar férias, porque está dotado de todas as condições e de todos os apetrechamentos que o garantem, mas na prática, por desleixo, incúria e interesses mesquinhos de alguns proprietários, torna-se muito depressa num local comum a tantos outros, ou as intenções não foram suficientes para fazer vingar uma obra de verdadeira excepção.

O princípio do fim da excepcionalidade do Monte Estoril, ao contrário do que pretendem fazer crer alguns investigadores, não se ficou a dever ao complicado processo de falência da Companhia. Pelo contrário!... O processo de insolvência da Companhia Mont’Estoril, bem visível, por exemplo, nos relatórios de contas relativos aos anos de 1908, 1909 e 1910, foi somente a primeira consequência daquilo que poderíamos considerar como a transição de uma gestão privada para uma gestão pública do espaço global do povoado.

Enquanto a Companhia Mont’Estoril controlou a totalidade dos elementos urbanos do povoado, desde os esgotos, à iluminação, passando pela distribuição de águas e pela limpeza dos arruamentos, a generalidade das despesas era assumida pela sua administração, que recolhia essas verbas do exercício das suas funções e das participações várias vezes solicitadas aos seus accionistas privados. No decorrer desse período, e pese embora o conjunto de pesados encargos que cabiam aos proprietários, a excelência era uma questão de honra no Monte Estoril, e a vida no povoado, em todos os pequenos pormenores que caracterizam o dia-a-dia, afigurava-se radiosamente fantástica.

Quando alguns proprietários, sentindo ser muito mais confortável e menos dispendioso, fazer transitar para a edilidade o conjunto de compromissos que haviam assumido junto da Companhia, e que eram as suas obrigações pessoais na manutenção dos parâmetros de qualidade que, inclusivamente, os havia impelido a adquirir as suas novéis propriedades, o processo de descalabro torna-se irreversível, e a qualidade urbana de outros tempos inicia uma fase de desmoronamento que se mantém até hoje.

Em 1911, quando o próprio Conselho de Administração, provavelmente bafejado com as interessantes e apelativos ideias de uma República recém instituída, se resigna a esta passagem de testemunho, escreve-se então a primeira página do livro que leva à falência da Companhia, e que fará do Monte Estoril aquilo que ele é hoje: um monte em ruínas, envolto em betão, e sem qualquer espécie de resquícios de uma qualidade urbana que o caracterizou noutros tempos. O texto que o Conselho de Administração insere no relatório de actividades atrás mencionado é exemplificativo desta inversão de princípios orientadores (21): “Na ocasião de elaborarmos este relatório, uma comissão da qual fazem parte alguns dos mais distintos moradores do Mont’Estoril e que tomou sobre si a generosa iniciativa de promover melhoramentos locais para levantar o Mont’Estoril à altura a que a sua fama lhe dá direito, substituindo-se a esta administração para, entre outros trabalhos, conseguir a transferência das nossas ruas para a Câmara Municipal de Cascaes, transacção essa que se impõe pela necessidade de nos libertarmos dessa responsabilidade, dada a redução das nossas receitas e ainda pelo facto de o uso dessas ruas somente aproveitar ao Município. Além dessa circunstância existe ainda a de a transferência referida representar a vontade de todos os habitantes do Mont’Estoril que muitos são, pois entendem que esta Companhia já fez o mais que pode, de modo a reconhecerem a sua ausência de direitos para reclamarem contra o mau estado das ruas cuja reparação deve pertencer de facto ao Município que do Mont’Estoril cobra farta percentagem das receitas do Estado que incidem sobre a propriedade daquela estância”.

Mais à frente, deixando denotar alguma arbitrariedade na forma como altera a sua postura sobre os poderes públicos vigentes, e possivelmente deixando antever um cansaço que ficou a dever-se a mais de duas décadas de luta permanente com um conjunto de proprietários que permanentemente se inibe de investir nas suas propriedades como forma de contribuir para o bem comum da povoação, o mesmo Conselho de Administração apresenta uma espécie de rol de equipamentos urbanos que deveriam transitar para o poder público e que, pela sua actualidade e valor, são demonstrativos do estado de desenvolvimento que o Monte Estoril conheceu na sua faceta urbana, enquanto esteve dependente da iniciativa privada, em comparação com outras zonas do Concelho de Cascais que, dependendo sempre da gestão pública, ainda hoje não possuem este tipo de equipamentos que os monte-estorilenses do início do Século XX já há muito conheciam: “Entregaríamos, portanto, as ruas com as suas colunas e candeeiros de iluminação, bancos, arvoredo, e marcos, assim como o colector geral, que constitui actualmente o nosso único domínio de subsólo e transferiríamos para a Câmara, o contrato de iluminação das ruas que em tempos firmámos com as Companhias Reunidas Gaz e Electricidade. Entendemos que todo o nosso cuidado deve incidir sobre o legítimo respeito e observância dos contratos em tempos celebrados entre esta Companhia e Carlos Pecquet Ferreira dos Anjos, as Companhias Reunidas Gaz e Electricidade e Geral de Águas”.

O grau de aperfeiçoamento urbano do Monte Estoril era de tal maneira que, quando comparamos o projecto que enformou a concepção da localidade, ainda algum tempo antes do final do Século XIX, com aquilo que os partidos políticos da actualidade incluem nos seus programas eleitorais, ficamos deveras surpreendidos por encontrarmos como coisa concreta naquele lugar desde há mais de cento e vinte anos, coisas que noutras partes do Concelho de Cascais, continuam a ser miragens por concretizar em pleno Século XXI... A criação de uma rede de esgotos adaptada às necessidades da povoação; a preocupação permanente de gerir com qualidade o sistema de águas, por forma a garantir um fornecimento ininterrupto aos habitantes; a iluminação pública como sinónimo de conforto urbano e de segurança dos transeuntes; os bancos públicos; as árvores; e os marcos informativos e delimitadores de propriedade; são apenas alguns exemplos de equipamentos que existiam já no Monte Estoril em 1910 (serão provavelmente os mesmos que ainda hoje lá se encontram), e que, sendo assumidamente essenciais para a qualidade de vida diária das populações, teimam em continuar a não existir em vastas zonas habitacionais do Concelho de Cascais que sempre dependeram em exclusivo dos poderes públicos.

A qualidade urbana proporcionada pela Companhia Mont’Estoril era de tal maneira primordial na promoção do bom nome do local que, mesmo nos momentos de maior crise, nunca o Conselho de Administração descurou as actividades de recolha pública de lixo. Somente com a transição para a edilidade, é que, finalmente, se guardou definitivamente o burro e a carroça que, a expensas da Companhia, procediam diariamente a esse importante trabalho: “Uma despesa que esta Companhia vinha mantendo desde a sua fundação e que muito nos preocupava para dela nos libertarmos, sobretudo por não nos aproveitar sob nenhum ponto de vista, nem mesmo o de ser reconhecido o sacrifício que fazíamos com a sua conservação, era a que tinha por causa a retirada dos lixos das casas de habitação. Várias foram as tentativas a que recorremos para nos emanciparmos desse encargo, resultando todas porém infrutuosas, até que nos decidimos terminar de vez com um ónus que esta Companhia não podia continuar a manter, por o não o suportarem os seus recursos e ainda por se achar terminada a sua missão, visto que já não possui terrenos em nenhuma das zonas onde existe a maior parte da edificação. Como consequência daquela resolução, tratámos de vender o macho, a carroça e os arreios existentes, ficando-nos desembaraçada a cocheira que aquele animal ocupava e que logo foi alugada”.

Deste Conselho de Administração, que tomou a decisão de enviar para a Assembleia Geral o pedido de liquidação da empresa, faziam parte o Presidente, Luís Gonzaga dos Reis Torgal, Carlos da Costa Osório, Leopold Kohn, Maurice Romberg-Nisard e Eduardo Hofacker de Moser...

Muitos anos depois, em 1950, quando Maria Filomena Mónica considera que Portugal inverteu as suas tendências urbanas e adquiriu a faceta cosmopolita que hoje já quase todos lhe vão reconhecendo, quase oitenta por cento dos portugueses não possuíam nenhuma das regalias e do conforto urbano que o Conde de Moser e os demais elementos da Companhia Mont’Estoril lhe haviam conferido em 1888 (22): “Em 1950, Portugal tinha 8510000 habitantes. Destes, a esmagadora maioria, cerca de 77% continuava longe das taxas de urbanização verificadas noutros países. Nas aldeias, os dias corriam monótonos. Não havia qualquer tipo de participação política. A política era o exclusivo de um punhado de senhores, vindos de fora, que haviam granjeado a confiança do poder. Os divertimentos reduziam-se às procissões estivais, às feiras semanais, às noitadas nas tabernas. O mundo exterior não existia. O próprio Estado quase só lá chegava na odiosa versão do serviço militar e dos impostos”.

A subserviência do País a um paradigma urbano de segunda categoria, ou seja, a um conjunto de premissas que nunca estiveram acessíveis à generalidade da população, transformou estâncias como o Monte Estoril ou o Estoril, em locais onde a fama de excelência depressa se propagou. De facto, os números apontados por Maria Filomena Mónica não deixam margem para dúvidas, e são demonstrativos de que a situação vivida nas nossas principais urbes era, mesmo em meados do Século passado, altamente desproporcional relativamente aquela em que viviam a grande maioria das cidades de média dimensão do resto da Europa.

Os pequenos pormenores urbanos que desde o seu início caracterizaram o Monte Estoril, importantes se nos ativermos ao factor novidade que representaram, mas também essenciais se os enquadrarmos na planificação prévia da urbanização, são os resquícios mais visíveis da mente iluminada e esclarecida de um grupo muito pequeno de empreendedores que, norteados pela necessidade premente que Portugal possuía de inverter uma tendência para a catástrofe social e económica que a transição entre os regimes monárquico e republicano ainda veio ajudar a agravar, se viram compelidos a observar e a analisar aquilo que de melhor se fazia noutras partes do Mundo para o aplicar, como se de uma espécie de fórmula milagrosa se tratasse, à realidade Nacional.

Contrariamente aquilo que se tem dito, e apesar de sabermos que grande parte desses pormenores que conferem ao Monte Estoril o carácter de excepção urbana que temos vindo a traçar, só foram possíveis devido ao facto de serem da exclusiva responsabilidade da Companhia e por terem sido concretizados por vezes em antecipação à própria estrutura urbana, o certo é que o cerne da questão não se deve colocar na dicotomia entre a iniciativa pública e a iniciativa privada, mas antes nos factores exógenos ao processo que impediram os promotores do cumprimento integral dos objectivos a que se propuseram.

Assim, não é difícil perceber que o esforço de planificação urbanística da Companhia Mont’Estoril, delineando um projecto solidamente estruturado numa realidade que nada tinha a haver com aquilo que se conhecia nas mais importantes localidades portuguesas, falhou redondamente em determinada fase da sua aplicação não tanto por se ter constatado que não existiam condições para a sua concretização, ou por ter existido uma interferência pública na sua vertente prática, mas sim por consequência directa da intervenção dos proprietários que adquirem os lotes e as edificações construídas pela Companhia.

Paradoxal e hoje quase enigmática para os teóricos do urbanismo, esta realidade é incontornável. O principal motivo do fracasso do desiderato da Companhia Mont’Estoril residiu no descontentamento dos proprietários quando perceberam que a qualidade urbana que servirá de base à propaganda oficial do empreendimento, e que os tinha levado a adquirir as suas propriedades, teria de ser sustentada pelos próprios...

De facto, a gestão da distribuição das águas, da recolha de lixos, da manutenção dos arruamentos, das árvores, dos jardins, dos bancos, etc., que conferiam ao Monte Estoril o ambiente de qualidade que tão longe levou o seu nome, jamais poderia ser pago na sua totalidade por uma Câmara Municipal que tinha obrigações administrativas em diversas outras partes do Concelho e que, ainda para mais, poucas ou nenhumas relações ou vínculos possuía com aquela localidade. Foi o carácter privado desses serviços, centralizados na administração da Companhia, que, pela sua proximidade e relação com os problemas, permitia uma resolução rápida, eficaz e consequente dos obstáculos que se levantavam, fazendo uso daquilo que deveriam ser as contribuições espontaneamente assumidas por cada um dos proprietários. Esta forma de actuar, considerando a comparticipação na gestão do espaço público como uma forma de investimento na própria propriedade, num modelo muito semelhante àquele que caracteriza actualmente os condomínios privados, funcionou optimamente enquanto o núcleo principal de proprietários era o mesmo que constituía a Assembleia Geral da Companhia. Quando se iniciou o processo de venda de lotes, até como forma de angariação de financiamentos complementares que suportassem um investimento efectivo em equipamentos de uso colectivo que eram fundamentais para a nova povoação, como aconteceu com a nascente de água que exploraram no Linhó, ou mesmo com a tentativa gorada de criar um enorme lago artificial no espaço que hoje possui precisamente esse topónimo, começou a dispersar-se o núcleo inicial de proprietários, e a surgir o primeiro conjunto de desentendimentos que foram crescendo de forma paulatina e que acabaram por levar, muitos anos mais tarde, à falência da própria Companhia.

A inovação urbana do Monte Estoril, sem qualquer espécie de dúvida, um factor essencial na modernização de Cascais e do seu Concelho, na consolidação da sua vocação turística, e na própria estrutura urbanística Nacional, foi extemporânea em termos cronológicos, uma vez que não estava adaptada àquilo que eram as premissas culturais dos portugueses de então.

Como dissemos mais atrás, o grande problema da Companhia Mont’Estoril, que será algum tempo depois extensível a São João do Estoril, a São Pedro do Estoril, e ao próprio Estoril, foi ter-se alicerçado num princípio de funcionamento que não era partilhado nem sequer entendido por aqueles que deveriam ser os principais interessados no seu êxito. Quando colocada perante o problema, a Câmara Municipal de Cascais de então, e mesmo tendo à sua frente uma figura de grande entendimento e de enormíssimas bases culturais como foi Costa Pinto, mostrou-se incapaz de perceber a situação, remetendo para problemas comuns do foro do Direito Administrativo, aspectos que se assumiam como essenciais para dotar o município daquilo que poderiam ter sido os fundamentos para uma vida renovada.

Tal como acontece na actualidade, não basta a Cascais possuir no seu seio um grupo de urbanistas de renome ou um grupo de empresários comerciais dotados de uma visão moderna e eficaz daquilo que deveria ser o rumo futuro do Concelho. Mais importante do que isso é conseguir alterar a mentalidade vincadamente conservadora e tradicionalista que, mostrando-se totalmente incapaz de perceber com rigor a verdadeira essência do problema que atravessa, se mostra também impossibilitada de o resolver a contento de todos.

Para que Cascais possa inverter a tendência que tem crescido no sentido de perder movimento, clientela e qualidade de vida urbana, com implicações óbvias e nítidas na actividade comercial, é essencial que se confira à nova entidade que deverá zelar pelo cumprimento deste desiderato, a possibilidade de trabalhar com uma comunidade esclarecida e consciente. Como aconteceu com a Companhia Mont’Estoril, é verdadeiramente fundamental que exista um grau de inovação que, mais do que para o presente, possa virar-se para o futuro, e perspectivar realidades novas que ainda se encontram perdidas nos anéis do tempo que há-de vir. No entanto, e para evitar possíveis repetições de realidades que em nada contribuíram para que o nosso Concelho vingasse no panorama turístico Nacional e internacional, é também muito importante que exista empenhamento geral de todos os intervenientes e capacidade de investir, de lidar com o risco e de assumir uma posição empreendedora e inovadora que dote Cascais da perspectiva de progresso que sustente a qualidade de vida que tanto desejamos.

A realidade empresarial do actual Concelho de Cascais, baseada nas premissas impostas por uma história já longa e repleta de sucessos, está muito longe deste paradigma de modernidade e de empenhamento que temos vindo a traçar.

Contrariamente àquilo que muitos entendem ser uma forma alternativa de estar em comunidade, grande parte do empresariado local está instalado passivamente nas suas posições, fundamentado em princípios legais que, apesar de totalmente desadequados daquelas que são as efectivas necessidades políticas actuais, continuam em vigor, sustentando a manutenção de uma série de valores e de formas de estar que impedem o verdadeiro progresso equilibrado e o tão desejado desenvolvimento.

Já no longínquo ano de 1973, quando os alvores do actual regime político já se entreviam no horizonte português, Jacinto Ferreira, Professor Catedrático na Escola Superior de Medicina Veterinária de Lisboa, e docente de reconhecido mérito académico, traçava com precisão as linhas mestras que haveriam de reger os princípios doutrinários dos governos que se seguiriam (23): “Há uma diferença fundamental entre um ideário político e um programa de governação. Enquanto aquele se cinge a um certo número de princípios que convém sejam tão sucintos quanto possível, para serem facilmente apreendidos e assimilados, e até para poderem servir de «slogans» de propaganda – o programa de governação já tem que ser levado a enfrentar questões de pormenor e a ajustar ao contacto das realidades e dos obstáculos os diferentes aspectos do corpo de doutrinas construído. Ainda neste há que distinguir o programa honesto - aquele onde se enuncia apenas o que o estudo das condições sociais, dos costumes, etc., permite tornar viável e aplicável – e o programa desonesto – aquele que, para atrair adeptos, tudo promete, demagogicamente, mesmo o quase impossível, pois é isso exactamente o que mais atractivos encerra e mais adesões faz afluir”.

Com este quadro muito genérico, Jacinto Ferreira traça com grande precisão, num tom que hoje poderíamos caracterizar de quase profético, aquele que viria a ser o caminho seguido pela governação portuguesa a partir de 1974. Deixando de lado as verdadeiras características da Nação, e esquecendo (ou pura e simplesmente desconhecendo completamente) as linhas de rumo traçadas desde há mais de um Século no País, os governos sujeitaram-se às vicissitudes cíclicas do voto popular, agarrando-se a promessas vãs e a uma intervenção discricionárias, que tinha como primeiro objectivo perpetuar o poder e deixava para segundo plano os efectivos interesses de Portugal. A nível do empresariado Nacional, e sobretudo daquela camada empreendedora que era, por assim dizer, a grande responsável pelo esforço modernizativo que se estava a iniciar, foi frontalmente perseguida, deixando de possuir no País as condições mínimas para levar por diante os seus projectos e negócios. Os que ficaram, marcados amiúde por uma vivência política que, em termos dos seus fundamentos, se alicerçava naquelas que seriam as grandes linhas mestras da intervenção de âmbito partidário existentes na Europa, obviamente totalmente desconectadas com a realidade portuguesa, perderam o rumo e a lógica, enveredando por caminhos que deturpavam amiúde o conjunto de orientações que deveriam ter regido a sua prática.

Entre 1975 e 1985, Portugal flui assim politicamente em torno daquilo que importou do estrangeiro. As suas características intrínsecas, aliadas ao fulgor, ao empenhamento e à capacidade empreendedora do seu empresariado, perderam-se em favor de países terceiros, remetendo Portugal para um imobilismo e para uma estagnação que se arrastou até à actualidade.

Simultaneamente, e sobretudo enquanto duraram os processos revolucionários, o Estado arvorou-se ao direito de ser juiz e parte do enredo em que nos envolveram. No que concerne ao empresariado, e pese embora alguma capacidade de entendimento que colaborou em muita da depreciação então instituída, o Estado assumiu-se como crítico e perseguidor da iniciativa privada, transformando-se ele próprio em parceiro que, embora inábil e incapaz, tentou reivindicar para si próprio todo o espírito empreendedor que havia acabado de destruir.

A legislação que resultou deste processo conturbado, concomitantemente agravada pelas constantes pressões que legitimamente os trabalhadores exerciam, como única forma que eram capazes de conceber para garantir o direito ao justo pagamento pelo seu esforço profissional, adequava-se unicamente àquela situação de caos, não servindo obviamente para dotar o País das bases e do sustento que lhe permitiria evoluir para um sistema produtivo mais justo e exequível.

A nível do imobiliário a situação foi ainda mais grave. A usurpação dos direitos fundamentais à propriedade e à justiça social, desde sempre base perene e intocável da institucionalidade Nacional, acabou por desequilibrar por completo o tecido empresarial português, condenando-o, mais de vinte e sete anos depois, a uma situação de insustentável calamidade, que por arrasto, acaba por afectar também a generalidade das actividades que se desenvolvem nos principais núcleos urbanos cascalenses.

O congelamento de rendas, e a desafectação das mais básicas premissas da propriedade privada, aliadas a uma Lei do Arrendamento que promovia o trespasse e motivava a especulação, transformou o conjunto do imobiliário comercial português num conjunto residual de pequenas empresas comerciais que, mercê das condições que lhe ofereciam para funcionar, foram existindo sem investimento e sem perspectivas de crescimento.

Muito embora analisemos esta situação com mais rigor noutro espaço deste trabalho, é fundamental que se perceba que o grande problema do comércio cascalense actual, mais do que as recessões sucessivas que economicamente temos vindo a atravessar, é o da enorme incapacidade que alguns empresários locais têm de fazerem evoluir o seu negócio. As rendas baixíssimas e a possibilidade de trespasses milionário a médio ou a longo prazo [sem que daí resulte qualquer espécie de benefício para o legítimo proprietário do estabelecimento], impelem o comerciante a uma estagnação que nada contribui para o dinamismo que todos sabemos ser necessário para ultrapassar a crise actual.

Quase Sem necessidade de grandes investimentos, nem tão pouco de uma evolução que torne o seu negócio numa empresa competitiva, geradora de rendimento e de postos de trabalho, o empresário comercial que usufrui das regras criadas em 1974/75, paga uma renda simbólica por espaços valiosíssimos, bastando três ou quatro clientes por semana para que se atinja o patamar necessário à sobrevivência. No entanto, e em contrapartida, a falta de interesse e de motivação, aliada a um envelhecimento precoce do tecido empresarial, retira ao núcleo urbano no qual está instalado, a atractividade necessária ao dinamismo urbano desejável.
Consequentemente, num núcleo comercial de grande excelência como o de Cascais, no qual um punhado de empenhados comerciantes luta com vigor pela manutenção dos parâmetros de qualidade de outros tempos, um grupo alargado de empresários instalados nas regras revolucionários, inverte as regras naturais do empreendimento, ferindo de morte a possibilidade de adequar, modificar, melhorar, diversificar e actualizar o tecido empresarial local.

Os dados constantes do relatório “Observar o Comércio em Portugal – 2001” (24), não deixam margem para dúvidas: o grau de escolaridade predominante nos comerciantes portugueses em Dezembro de 2001 é a quarta classe (62%), seguindo-se um conjunto de pessoas com o 11º ano (18%), 10% com menos do que a quarta classe, 8% com o 12º ano, 1% com frequência universitária e também 1% de Licenciados. Apesar de o grau académico não ser distintivo em termos da qualidade profissional e da capacidade empresarial e comercial dos agentes, o certo é que é demonstrativo de uma falta de empenho generalizada na obtenção de meios alternativos e inovadores de funcionamento nesta área.

A nível da idade é também notória uma tendência para o envelhecimento dos comerciantes portugueses. De acordo com os dados do Observatório do Comércio, em dezembro de 2001 18% dos comerciantes tinham mais de 55 anos; 24% tinha entre 45 e 54 anos; 24% estava entre os 35 e os 44 anos; enquanto que somente 16% se encontrava entre os 25 e os 34 anos, e 6% entre os 18 e os 24 anos.

Apesar de em Cascais o panorama ser ligeiramente diferente, uma vez que os dados recolhidos através do questionário elaborado no âmbito do protocolo estabelecido entre a Fundação Cascais e a Associação Comercial do Concelho de Cascais, demonstram algum dinamismo e capacidade de inovação que ultrapassa e transcende aquela que caracteriza o comércio a nível Nacional, a situação também não é também muito melhor: com uma idade média de cerca de 53 anos, os comerciantes de Cascais denotam uma crescente incapacidade de renovação.

Mais acentuada nas Freguesias onde o dinamismo comercial é maior, nomeadamente na Parede, onde a média de idades é de 55 anos; em Cascais, onde a grande maioria dos comerciantes locais tem em média 51 ou mais anos; e do Estoril, com 55 anos de média de idade; o Concelho vai perdendo a sua capacidade de inovação e progresso, remetendo a grande maioria das suas lacunas para um situacionismo que vai degenerando em degradação.

As alterações estruturais que afectaram a actividade comercial ao longo dos últimos anos, nomeadamente aquelas que vieram a inverter a tendência suburbana que guindou Portugal de uma tradicional posição rural para uma sociedade de cariz eminentemente citadina mas quase totalmente desprovida das infra-estruturas que deveriam enformar essa mudança, deveriam obrigar os empresários do sector a esforços acrescidos que permitissem uma total readaptação às novas circunstâncias.

Baseando-se naquilo que se fez, algumas décadas antes, em vários países da Europa, que se debateram com uma problemática semelhante depois de terminado o processo de recuperação política que resultou do descalabro imposto pela Segunda Guerra Mundial, sucessivos governos Nacionais tentaram recriar um conjunto de condições que fomentassem a mudança estrutural necessária. O sector, no entanto, mal preparado para perceber e interiorizar o alcance destas medidas, e sobretudo comprometido com a situação algo confortável que ainda resista como consequência do desenvolvimento sentido sobretudo no turismo, foi quase totalmente incapaz de ultrapassar os seus acanhamentos e de valorar os investimentos necessários à concretização deste desiderato.

Programas como o PROCOM, e mais recentemente o URBCOM, que previam alterações drásticas naquilo que são as principais características da generalidade dos aglomerados urbanos Nacionais, pouco mais foram do que tentativas goradas de empreendimentos que ficaram muito aquém da desejada intervenção.

A criação de novos centros urbanos, consequência perene das alterações atrás mencionadas, veio ainda agravar mais esta situação, uma vez que o aumento da concorrência, e sobretudo a alteração da lógica do mercado, ajudou a confundir ainda mais o já de si complicado panorama comercial português, impondo lógicas novas que o empresariado local permanentemente afirma desconhecer. Contrariamente ao que vem referido no já mencionado relatório “Observar o Comércio em Portugal – 2001”, publicado pelo Observatório do Comércio, o desenvolvimento de conhecimentos específicos na área do urbanismo comercial, sobretudo importados dos países do norte da Europa, não conseguiu recuperar o atractivo, a habitabilidade e a competitividade dos centros urbanos tradicionais, nem tão pouco modernizou as estruturas económicas de formas integrada em processos mais vastos de requalificação do espaço urbano.
Como se pode perceber através do estudo elaborado pela Fundação Cascais, 60 % dos comerciantes concelhios afirma taxativamente desconhecer qualquer espécie de programas de incentivo à renovação comercial, situação majorada ainda nas Freguesias do Estoril, na qual 86 % dos inquiridos nega qualquer espécie de conhecimento dos mesmos, ou de Alcabideche, na qual nenhum dos comerciantes que responderam ao inquérito sabe da sua existência...



Quando questionados sobre os processos de candidatura já apresentados, mais de 70 % daqueles que haviam afirmado conhecer a existência dos mesmos, afirma também de forma taxativa que nunca se candidatou a nenhum deles. Apresentando como motivo para esse facto uma enorme lacuna de informação, e alguma falta de confiança nas instituições promotoras, os inquiridos remetem para a Associação Comercial a responsabilidade pela inexistência de um maior número de inscrições. E se a situação é grave na Freguesia de Cascais, onde apenas 30% dos inquiridos que os conheciam a eles se candidatou, vê-se agravada em Freguesias como Alcabideche e São Domingos de Rana, onde a percentagem de abstémios aumenta drasticamente.

O grande problema que enforma a falta de motivação para uma participação mais proveitosa no conjunto de políticas que têm como principal objectivo o desenvolvimento das estruturas locais de comércio, é sobretudo aquele que se prende com o conjunto de circunstancialismos que afectam e constrangem o sector.

Tradicionalmente pouco preparados para se aventurarem em investimentos desnecessários, os comerciantes portugueses, e também os seus congéneres sediados no Concelho de Cascais, debatem-se com um mercado de arrendamento comercial totalmente abafado pelas consequências perniciosas de uma artificialidade imposta pelas rendas baixas e pelos trespasses muito elevados. De facto, e principalmente se nos ativermos ao conjunto de benefícios e constrangimentos que resultam da ponderação destes dois factores, depressa perceberemos que é muito mais confortável e cómoda a manutenção dos equilíbrios pré estabelecidos, em detrimento de posições de vanguarda que prevejam resultados a médio ou a longo prazo. Este factor, depreciativo em termos políticos, inibe e muitas vezes impede a iniciativa individual, recriando factores de existência que tradicionalmente nada têm a haver com aquilo que paradigmaticamente é o empresário da área comercial.

E é precisamente aí que reside outro dos grandes problemas que afectam o comércio de Cascais. Habituados a situações de total disparidade imposta pela Lei, existindo empresários e empresas a pagar rendas astronómicas por pequenos espaços, em zonas urbanas onde a generalidade dos arrendamentos é antiga, fazendo com que espaços enormes sejam alvo de rendas efectivamente muito baixas, os comerciantes de Cascais sobrevivem marcados por um equilíbrio artificial que inibe a inovação, o progresso e, sobretudo, a concorrência leal.

A informação de que falam alguns dos inquiridos no estudo realizado pela Fundação Cascais, mais do que aquela que a Associação Comercial tem obrigação de fornecer e que se esforça por fazer chegar aos seus associados, é aquela que se prende com as necessárias medidas que eles deveriam tomar para se habilitarem a adquirir o conjunto de competências que são necessárias ao sucesso dos seus empreendimentos. Acções de formação, metodologias próprias para funcionamento comercial, acções de promoção de vendas, etc., são apenas alguns exemplos de iniciativas relacionadas com a evolução do tecido empresarial de âmbito comercial que poderiam surtir efeitos muito importantes na modernização do tecido local, mas que, por força dos circunstancialismos atrás referidos, acabam por servir unicamente a um número diminuto do total dos comerciantes de Cascais.

Mesmo assim, e quando questionados sobre o grau de informação que possuem, mais de 30 % dos inquiridos a nível municipal referem que são portadores do conjunto de dados necessários à sua evolução. Em Cascais e no Estoril, onde se encontram os núcleos mais importantes da Associação Comercial, ultrapassam os 40 % aqueles que assumem a sua preparação e, ao mesmo tempo, alguma falta de vontade para participarem activamente no conjunto de iniciativas que visam sobretudo a preparação de uma forma nova de incentivar o comércio dito tradicional.

De acordo com os dados recolhidos ao longo deste trabalho, foram muitos os empresários comerciais locais que, utilizando como pretexto o descrédito das instituições que tutelam a sua actividade, se escusam de participar em iniciativas e empreendimentos que visem o desenvolvimento de estratégias comuns de actividade. Este facto, preocupante pela forma como impede um concreto crescimento da massa crítica loca, agrava-se ainda com a forma como acaba por influir negativamente na representatividade da associação, e na credibilidade das iniciativas e projectos levados a cabo pelos mais activos membros desta classe.



Quando da totalidade dos associados locais, actualmente cerca de 1200, apenas uma pequena percentagem inferior a 10 % do total, se dá ao trabalho de responder ao questionário que visava preparar uma estratégia comum de incentivo ao comércio local, torna-se óbvio o conjunto de dificuldades com que se debate a associação para levar a bom termo o seu trabalho. Mas mais importante ainda: torna-se evidente qual é verdadeiramente o principal problema dos comerciantes de Cascais...

Ao nível da preparação e da adequação à nova realidade e aos novos desafios, a actividade comercial é hoje uma das principais responsáveis pelo estado de degradação urbana das nossas cidades. As lojas, espécie de cara viva das ruas e ruelas das nossas vilas e dos principais aglomerados habitacionais portugueses, estão desactualizadas, envelhecidas e pouco atraentes, factor que, em conjugação com uma evidente falta de sentido comum de gestão empresarial, contribui de forma efectiva para o enorme atractivo em que se tornaram as grandes superfícies comerciais.

Nestas, ao contrário do que acontece nos aglomerados urbanos principais, cada loja só faz sentido quando perspectivada no conjunto comercial que é composto pelas restantes. Cada ramos, cada actividade, cada montra, cada estratégia de venda, e mesmo cada sorriso, enquadra-se naquilo que poderíamos apelidar de unidade global de gestão. Esta orientação, para além de impor regras e de promover pressupostos diferentes, exige de todos por igual consciência, capacidade, empreendimento e dinamismo, obrigando cada um a aproveitar e a rentabilizar o conjunto de meios que tem ao seu dispor.

Não faz sentido que, numa grande superfície comercial, na qual a gestão global privada do espaço comum se enquadra em contratos de locação específicos, determinado comerciante, possivelmente cego pelos lucros estonteantes de um determinado lapso de tempo, se deixe relaxar no seu investimento. Isto porque, ao contrário do que sucede no espaço urbano tradicional, os restantes membros do grupo e, sobretudo, o gestor responsável pelo funcionamento da unidade, sabem que num determinado corredor a criação de uma excepção pode ser suficiente para fazer inverter a tendência de crescimento e de atractividade e de, desta forma, atrair menos clientes.

O investimento comercial, para manter o ritmo de vendas e o nível de actividade num determinado sector, exige esforço pessoal e motivação para a intervenção comunitária. Os acessos, a limpeza, a iluminação e a animação dos espaços comuns, contrariamente ao que sucede nos espaços urbanos, são responsabilidade de todos e de todos dependem para poderem funcionar de forma conveniente.

A componente formativa, aliada ao grau de escolaridade dos comerciantes e seus funcionários, é exemplificativa do estado de desenvolvimento que actualmente caracteriza o comércio de Cascais. Ao contrário do que acontece com os grandes centros comerciais, onde a grande maioria dos empresários são licenciados em áreas afins às suas actividades, e onde os funcionários frequentam amiúde acções de formação, preparação e actualização que os dotam de conhecimentos que lhes permitem adequar-se às novas exigências, produtos e mercados, no comércio dito tradicional cascalense, cerca de 35 % do total de inquiridos afirma possuir unicamente como grau de escolaridade o ensino básico, ou seja, a antiga escola primária. Muito embora a maior fatia, cerca de 38 % possua formação média ao nível do que era tradicionalmente o ensino liceal, apenas 28 % do total de inquiridos frequentou ou concluiu um curso universitário.



Quando questionados sobre o ano em que os seus negócios iniciaram o funcionamento, atravessando assim de forma transversal a enorme panóplia de informações que podemos recolher nos dois tipos de espaços por forma a sustentarem uma comparação fidedigna entre as duas realidades, verifica-se que quase metade dos comerciantes cascalenses afirmam ter já vinte ou mais anos de actividade. Cruzando esses dados com os restantes, e percebendo que a generalidade dos empresários mais aptos e motivados para a reciclagem e para a modernização das suas estruturas de pensamento, são aqueles que melhor estabelecidos se encontram, depressa se torna visível a enorme discrepância que existe entre as reais necessidades conjunturais do comércio local e a dura realidade que constrange este sector.

Contrariando a ordem natural das coisas, e rentabilizando ao máximo as enormes potencialidades de um sistema que permite a sobrevivência de uma actividade comercial sediada num espaço urbano tradicional praticamente sem investimento, os empresários de proximidade vão-se adaptando unicamente a uma diminuição gradual e progressiva das suas facturações, culpando sempre a estrutura associativa que os suporta e o poder local de génese autárquica, e esquecendo-se que, noutros tempos e em outras realidades, foram sempre eles a criar as condições que lhes garantiam a possibilidade de crescer e sobreviver.

Sendo 1977/1978 o ano em que em média iniciaram funções a generalidade das empresas do comércio local na Freguesia de Cascais, e tendo em conta que no Estoril esse ano foi 1974, tendo sido 1964 em Alcabideche, 1981 na Parede, 1990 em Carcavelos, e 1992 em São Domingos de Rana, o comércio local cascalense passa obrigatoriamente por uma crise de crescimento que, se não for suportada condignamente por estruturas externas que promovam formas alternativas de estar e de crescer, condenarão muitos dos actuais empresários ao evidente desaparecimento.

Perante o panorama quase catastrófico que actualmente vive o comércio de Cascais, é lícito afirmar que, sem o suporte oferecido pela legislação actual, dificilmente conseguiriam continuar a existir a maioria dos empresários que hoje conhecemos neste Concelho.

A lei do arrendamento, plena de direitos para o locatário e fugaz na definição do conjunto de obrigações e deveres, transforma o pequeno comércio numa espécie condenada à partida. No Concelho de Cascais, de acordo com os dados recolhidos pela Fundação Cascais, a renda média de um estabelecimento comercial em local urbano, é de 990,00 Euros, sendo que mais de 70% dos inquiridos assumiu não ser proprietário do estabelecimento que utiliza.

Para completar estes dados, é fundamental sublinhar que este número é uma média do total de inquéritos respondidos, podendo encontrar-se muito longe da efectiva realidade municipal, deturpado ainda pela enorme discrepância existente entre a renda média na Freguesia de Cascais, que ronda os 1275 Euros, e a renda de pouco mais de 350 Euros que em média se pratica na Freguesia de São Domingos de Rana.



Apesar de serem muitas vezes omissas naquilo que se prende com a definição exacta do seu âmbito de funcionamento, as determinações legislativas que enformam a actividade comercial são até bem explícitas relativamente ao seu conteúdo. No Regulamento de Execução do Sistema de Incentivos a Projectos de Urbanismo Comercial (URBCOM), no Artigo 2º que se intitula exactamente “Objectivos”, pode ler-se que os “projectos de urbanismo comercial visam a modernização das actividades empresariais do comércio envolvente e a promoção do respectivo projecto global, integrados em áreas limitadas dos centros urbanos com características de elevada densidade comercial, centralidade, multifuncionalidade e de desenvolvimento económico, patrimonial e social”.

Apesar de tudo, e mesmo tendo como base um conjunto de premissas à partida muitíssimo adaptado ao conjunto das principais reivindicações dos comerciantes locais, a taxa de utilização deste tipo de incentivos é muito baixo, chegando mesmo, no que concerne ao Concelho de Cascais, aos números apresentados mais atrás. A revitalização das cidades descrita na Lei, mais do que a base de trabalho de um efectivo plano global de revitalização da actividade comercial, é visto e entendido pelos comerciantes como um mero conjunto de propostas alternativas que pressupõem um maior endividamento e uma maior dependência dos empresários. No relatório do Observatório do Comércio de 2001, quando se reporta à aplicação das medidas de renovação do tecido empresarial e do comércio de proximidade, os técnicos daquela instituição sublinham o carácter problemático de uma incapacidade de diálogo que subsiste entre as diversas entidades e realidades interessadas na renovação daquilo que é a cara efectiva das nossas cidades: “Apesar de os estudos globais dos projectos, desenvolvidos no âmbito do PROCOM, terem sido bastante amplos nas suas propostas de revitalização, algumas dificuldades de coordenação na sua implementação levam a concluir que, para a promoção da actividade comercial nos centros, é fundamental encontrar mecanismos inovadores e, ao mesmo tempo, aumentar as colaborações efectivas e as parcerias entre os agentes económicos e as autoridades locais”.

A pertinência desta situação, muito embora mal entendida por muitos daqueles que actualmente se encontram no comércio de proximidade em Portugal, é por demais importante, pois ao contrário do que é comum dizer-se, o Estado e as Autarquias, para além de possuírem já a possibilidade de acederem ao conjunto de mecanismos que lhe permitem descentralizar competências e atribuir funções aos seus parceiros da sociedade civil, estão prontos, motivados e até interessados em passar para outrém o peso da culpa pelo estado de caos em que sobrevive o comércio local. A falta de preparação e de capacidade de assumpção de responsabilidades, e sobretudo daquele conjunto de obrigações que resultam sempre deste tipo de actividade, faz com que a generalidade das medidas constantes nestes programas de incentivo, acabem quase sempre por tornar-se em meras declarações de intenção e não, como todos esperávamos, numa efectiva reconversão qualificante das nossas cidades.

Para o Observatório do Comércio, no entanto, é na figura da parceria entre o sector público e o privado, rentabilizando meios, conhecimentos e potencialidades, que reside a principal mais valia de um sistema inovador em Portugal, mas que todos sabem ser essencial para reequilibrar as circunstâncias e para dotar os comerciantes de proximidade das condições que lhes permitam sobreviver: “Em termos globais, verifica-se que a estratégia comum à maior parte das cidades é o desenvolvimento de uma gestão pró-activa das áreas comerciais através de uma nova organização fundamentada no estabelecimento de parcerias de colaboração, e de coordenação de recursos, entre os principais actores urbanos. Tornou-se cada vez mais premente o envolvimento de poderes centrais e locais, investidores privados, organizações não governamentais e cidadãos/consumidores na organização de acções de revitalização que promovam os interesses das cidades como um todo. Neste contexto, as parcerias público-privadas aparecem como instrumentos de intervenção capazes de articular os interesses dos vários actores urbanos. As unidades de gestão de centro urbano e a criação da figura de gestor de centro urbano são organizações inovadoras que permitem gerir de modo profissional a mudança nos centros urbanos”.

O grande obstáculo que se interpõe entre estas formulações teóricas e o conjunto de realidades que envolvem a prática comercial portuguesa, prende-se sobretudo com concepções erróneas relativas ao conjunto de circunstancialismos que envolvem o dia-a-dia. De facto, se atendermos aquilo que são as efectivas necessidades do comércio de proximidade que se situa nos principais núcleos urbanos cascalenses, depressa perceberemos que mais do que a angariação de novas clientelas que suportem o investimento que inevitavelmente devem fazer para assegurar a adaptação, a mudança e a revitalização que todos desejam, o principal problema prende-se com a anomia que progressivamente se vai instalando nesses espaços. A proximidade relativamente a Lisboa, benéfica em termos da gestão de um ambiente profícuo em termos comerciais, possui malefícios que afectam de forma indistinta todos os sectores de actividade. O elevado grau de desagregação social que actualmente caracteriza Cascais, com uma população oriunda de espaços distantes e que não possui raízes ou ligações com o espaço concelhio, promove um desligamento que inibe os habitantes da criação de laços mais perenes e fortes com a envolvência do seu espaço de habitação. Núcleos urbanos considerados de grande valor patrimonial e histórico, como é, por exemplo, a generalidade das zonas que compõem a baixa da Vila de Cascais, são hoje espaços vazios de conteúdo e de sensações, sobrevivendo basicamente daquilo que conseguem recriar em termos de uma artificialidade turística que nada tem a haver com as reais características intrínsecas daquele espaço.

Este conjunto de circunstancialismos, obviamente conotados com um conjunto de razões que se prendem com necessidades económicas e profissionais, e com uma enorme incapacidade política de recriar medidas que permitam inverter drasticamente a situação, descaracteriza os núcleos urbanos, esbatendo ligações e relacionamentos, e promovendo uma cada vez maior aproximação perante as grandes superfícies comerciais.

Quando comparamos estes dois tipos de realidades sociais, facilmente percebemos que os espaços urbanos de outrora ofereciam aos habitantes uma espécie de complemento e extensão das habitações, num conluio que se afirmava positivamente em torno do conceito de uma grande família alargada, enquanto que na actualidade, por força das circunstâncias e das vivências sociais que nos caracterizam, se tornam em ambientes hostis e desconhecidos. Nas grandes superfícies, em contrapartida, as luzes, a cor, a decoração, as plantas, as montras, os espaços de lazer, as áreas de alimentação e a animação permanente, em conjunto com toda uma panóplia de técnicas que visam dotar o espaço de comodidades que surjam como alternativa às condições precárias em que vivem as famílias que habitam nos diminutos apartamentos que hoje cada vez mais proliferam, assumem um conforto extremamente apelativo que promove a relação social e a criação de laços de cidadania. Nos grandes centros comerciais, por vezes de forma pouco perceptível para o cidadãos menos observador, a colocação de escadas e de elevadores, estrategicamente em pontos opostos de um mesmo espaço, obrigam o visitante a passar em espaços estrategicamente preparados para lhes oferecer determinado tipo de benefício.

Contrariamente àquilo que acontece nos espaços urbanos tradicionais, a colocação e disposição das lojas, bem como a montra e a sua preparação, obedecem a rigorosos estudos de viabilidade. Embora à partida pareça não fazer sentido, objectos de luxo e de elevado preço, como relógios e/ou ourivesaria, são colocados nos corredores de acesso aos hipermercados. Considerados compras de impulso, ou seja, compras não programadas que não obrigam o cliente a uma viagem pré preparada para adquirir esse produtos, não faz sentido colocá-los em zonas que obriguem a um plano prévio. Quando o cliente passa por este tipo de montras, procurando o acesso mais rápido do supermercado para adquirir um qualquer produto alimentar, depara-se com um produto que, apesar de nunca lhe ter passado pela cabeça sair de casa para o adquirir, lhe desperta a atenção.

Desta forma, ramos de negócio com enorme produtividade comercial nas grandes superfícies, são geralmente aqueles que menos sucesso possuem nos espaços comerciais urbanos, uma vez que aí, por inexistência do conjunto de regras e de programação prévia que caracteriza a gestão do espaço comum, acabam por se implantar em zonas ou espaços que não se adequam ao perfil de compra que os gestores profissionais tão bem conhecem. Da falência de um ou de outro ramo de negócio resulta, normalmente quando nos debruçamos sobre as realidades comerciais insertas em espaços urbanos, uma crise geral que se torna quase sempre irreversível.

A única forma coerente de ultrapassar estas situação, invertendo a tendência actual para a fuga permanente para as grandes superfícies, é estagnar esta forma diabolicamente individualista de funcionar, e encontrar formas alternativas de gestão comum do espaço público.

É aí que entra, como acontece na grande maioria dos mais evoluídos países europeus, a figura do gestor comercial do espaço público. Normalmente inserido num conjunto institucional de que fazem parte os organismos autárquicos, as empresas privadas, as associações de moradores e os comerciantes e lojistas, o gestor comercial do espaço urbano é a única forma de, com convicção, conhecimento técnico, e autoridade geral, ultrapassar as vicissitudes inerentes aos muitos problemas que resultam da disparidade de interesses que coexistem neste tipo de lugares.

Tal como refere o Observatório do Comércio, as experiências levadas a efeito nas zonas comercias de génese urbana do norte da Europa, mostram que a criação destas unidades de gestão do centro urbano, são a única forma de congregar esses interesses e de estabelecer as parcerias estratégicas essenciais para a sobrevivência do comércio local.

Dependentes daquilo que é a orientação estratégica definida pelo conjunto dos parceiros, e sempre numa lógica de tempo corrente que passa por ciclos longos e muito longos, o gestor comercial surge como intermediário entre os diversos intervenientes, sobrepondo-se a interesses díspares, a eleições e a ciclos de poder, bem como a vicissitudes que se prendem com a inevitabilidade de casos de sucesso e de insucesso que sempre acompanham o percurso das iniciativas comerciais: “A sua principal função é apoiar o conselho de administração da unidade de gestão na concepção de uma estratégia para o centro urbano, na implementação do plano de acção e do programa de actividades e na criação e coordenação das actividades dos grupos de trabalho. Ao gestor do centro urbano compete, ainda, desempenhar a função de interlocutor entre os principais interesses no centro, identificar e angariar financiamentos para a unidade de gestão, e partilhar experiências de gestão com outros profissionais. Os parceiros da unidade de gestão devem definir uma visão estratégica de longo prazo para o centro urbano que seja clara, pró-activa e consensual. Antes de definir a estratégia de intervenção é necessário analisar globalmente o centro nas suas várias facetas: posição comercial na hierarquia regional, pontos fortes (por exemplo oferta diversificada) e fracos (por exemplo acessibilidade), oportunidades (por exemplo participação elevada de comerciantes) e ameaças (por exemplo, áreas comerciais periféricas)”.

A gestão global do espaço público, apoiada ou não em programas complementares de apoio que permitam minorar as principais carências imediatas que afectam o sector, depende em primeira instância daquilo que é a competência técnica do gestor, mas também, como não podia deixar de ser, do grau de consciência do comerciantes e do empresário comercial, bem como da sua capacidade de verdadeiramente investir no sucesso do cumprimento deste desiderato.

De acordo com os dados recolhidos no âmbito do estudo que agora apresentamos, e que, como já sublinhámos anteriormente, se debate com a reduzidíssima percentagem de comerciantes que acederam em responder ao questionário elaborado pela Fundação Cascais e distribuído a cerca de 1200 empresário pela Associação Comercial do Concelho de Cascais, as perspectivas não são muito optimistas neste sector.

Quando questionados sobre as suas expectativas relativamente ao seu ramo de negócio actual, a grande maioria dos comerciantes cascalenses acentua que está razoavelmente satisfeito com a situação em que vive. 42 % dos inquiridos, contradizendo as opiniões que têm vindo a público ao longo dos últimos dois anos, afirma peremptoriamente que é razoável a nível concelhio o nível de facturação que caracteriza o seu ramo de actividade, contra somente 30 % que assume más expectativas relativamente ao mesmo problema. Cerca de 17% afirma serem péssimas as suas expectativas, contra 1 % que se considera com óptimas expectativas, e 10 % que as considera simplesmente boas.




Analisando a mesma questão para cada uma das Freguesias que compõem o Concelho de Cascais, verificamos que a situação é basicamente idêntica, invertendo-se unicamente pela positiva na Freguesia de Carcavelos, onde 8 % dos comerciantes inquiridos afirma serem óptimas as expectativas, e em São Domingos de Rana, onde mais de 70 % dos comerciantes afirma que as expectativas são más. Por curiosidade, é na Freguesia de Alcabideche que as opiniões de encontram mais divididas, com 50 % dos inquiridos a afirma que as expectativas são razoáveis, contra os restantes 50% que as consideram más.

Quando nos reportamos ao estado geral que actualmente caracteriza a existência do comércio de Cascais, são 58% aqueles que consideram ter expectativas razoáveis relativamente aos próximos tempos, acrescidos de 10% de optimistas que acentuam as boas expectativas perante a mesma situação. Ou seja, quando questionados sobre o estado em que actualmente se vive no sector comercial no Concelho de Cascais, 68 % do total de inquiridos considera que a situação é boa ou, pelo menos, razoável. Em contrapartida, somente 20 % considera que a situação é má, acrescido de 13 % que a considera péssima.

Numa análise mais apurada e identificando cada uma das seis freguesias cascalenses, percebemos que a situação é muito mais positiva na Parede, onde 50% dos inquiridos refere ter expectativas razoáveis relativamente aos próximos tempos de actividade comercial, aos quais se juntam mais 13 % que as consideram mesmo boas. Na Freguesia de Carcavelos, até aqui apresentada como aquela que mais grave crise apresenta, são 62 % aqueles que consideram razoável a sua situação, aos quais se juntam mais 8 % que a consideram boa. Se somarmos os dois grupos mais optimistas desta freguesia, depressa perceberemos que 68 % do total de comerciantes inquiridos na Freguesia de Carcavelos, acha que a crise não é assim tão grave, e afirma-se satisfeito com a situação actual.

Na Freguesia de Cascais, onde mais se têm feito sentir as consequências nocivas de uma inversão das tendências de consumo em Portugal, e onde se torna mais fácil o acesso ao núcleo local de comerciantes e às estruturas de apoio da Associação Comercial, a situação só diminui ligeiramente, com 67 % dos inquiridos a afirmarem-se satisfeitos. Destes, 5 % considera que a situação actual é boa, e 62 % considera-a razoável. Na mesma freguesia, 16 % considera a situação má, e outros 16 % consideram-na péssima.



Quando cruzamos estas informações com os resultados da questão relativa à vontade de continuar a ser comerciante no Concelho de Cascais, deixam de restar dúvidas no que concerne a este problema: a nível do Concelho, são 86 % aqueles que consideram que o comércio tradicional continuará a ser o seu modo de vida, contra apenas 14 % que assume desejar abandonar a actividade ou o Concelho de Cascais.

Analisado freguesia a freguesia, verificamos que apenas na Freguesia de Carcavelos, onde curiosamente havíamos registado o maior índice de satisfação relativamente à actual situação comercial, a percentagem daqueles que afirmam de forma peremptória e taxativa que pretendem abandonar proximamente este sector de actividade é de 23 % contra 77 % que deseja continuar a trabalhar.



Mesmo assim, e em Freguesias como as do Estoril, de São Domingos de Rana e de Alcabideche, apesar das taxas daqueles que se assumem insatisfeitos com a situação, não tivemos ninguém que afirmasse pretender abandonar a sua situação profissional actual.

O elevado nível de descontentamento que actualmente caracteriza a actividade comercial do Concelho de Cascais, e principalmente daqueles que se encontram instalados nos principais núcleos urbanos do Concelho, prende-se muito mais com uma efectiva redução das suas margens de lucro, possivelmente como consequência de uma conjuntura desfavorável, do que com uma crise global e geral a afectar o sector.

A falta de preparação dos empresários, pouco motivados para um investimento efectivo numa modernização assumida do sector, vem juntar-se às parcas qualificações técnicas e à precariedade de ocupação dos seus funcionários. As grandes superfícies, consideradas por 29 % dos inquiridos como as grandes responsáveis pela crise, partilham a fama de destruidoras do sector com a falta de qualidade urbana na envolvência dos estabelecimentos, com a falta de unidade na gestão do espaço público, e com erros perpetrados pelos decisores políticos autárquicos.

Quando questionámos os comerciantes cascalenses sobre a forma como têm vindo a actuar os poderes políticos autárquicos, nomeadamente as Juntas de Freguesia e a Câmara Municipal de Cascais, nas decisões que envolvem uma política económica, empresarial e comercial, verificamos que a disparidade de opiniões nos permite supor existir uma grande falta de informação e de conhecimento efectivo sobre as responsabilidades e competências destes serviços.

Relativamente às freguesias, e a nível do Concelho, verificamos que 1 % dos inquiridos considera óptimo o funcionamento comercial da sua Junta de Freguesia, contra 3 % que o consideram somente bom, 35 % que o considera razoável, 48 % que o considera mau, e 13 % que o considera péssimo. Apesar deste cenário, quando questionados sobre os motivos que enformam esta opinião, são muito poucos aqueles que conseguem concretizar com rigor onde estão as falhas ao nível das juntas de freguesia, remetendo para problemas estruturais fundamentais e de posições tomadas pelo anterior executivo camarário para explicar o seu descontentamento. Apesar de tudo, e sobretudo do conjunto de condicionalismos que enformam o sector, a actuação das juntas de Freguesia de Carcavelos, Alcabideche e São Domingos de Rana, são considerados como exemplos positivos relativamente às restantes instituições congéneres.



A Freguesia pior considerada pelos comerciantes que responderam a este inquérito é a do Estoril, na qual 57 % dos inquiridos considera péssima a actuação deste órgão autárquico. Na Freguesia de Cascais, 56 % dos inquiridos também se mostra descontente com o funcionamento desta autarquia.

Apurando os resultados concernentes à actuação da Câmara Municipal de Cascais, é de salientar que apenas 32 % dos inquiridos considera boa ou razoável, logo, positiva, esta intervenção. Para 43 % dos inquiridos, a actuação do anterior executivo municipal foi má, opinião que é agravada junto de 25 % dos inquiridos que a consideram péssima.

Analisada por freguesia, esta informação é substancialmente diferente, uma vez que, em muitos casos, a percentagem daqueles que consideram a intervenção deste órgão como positiva aumenta de forma drástica. Na Freguesia de Cascais, por exemplo, 30 % dos comerciantes que responderam ao inquérito considera razoável a actuação municipal, sendo 33 % aqueles que têm opinião idêntica na Freguesia de Carcavelos. Essa percentagem sobe para 38 % na Freguesia da Parede e para 50 % na Freguesia de Alcabideche.



A suportar esta situação, a par com o que acontece com as freguesias, está o elevado grau de descontentamento que resulta de uma elevada falta de informação e de conhecimentos efectivos sobre as competências e as possibilidades de intervenção das autarquias. Na Freguesia de Cascais, por exemplo, muitos dos comerciantes que neste questionário apontaram críticas ferozes à edilidade, fazem-no com base em pressupostos que não correspondem à realidade, esquecendo-se em algumas circunstâncias de actividades e decisões em que a responsabilidade é inteiramente da Câmara Municipal e da qual resultaram inúmeros problemas para o comércio local, mas que a generalidade dos empresários do sector pura e simplesmente desconhece.



A questão que se prende com a gestão urbana, de eminente importância para os principais empresários comerciais do Concelho de Cascais, é considera menor por muitos dos inquiridos.

Esquecendo-se de que a promoção do espaço público, e principalmente do conjunto de zonas que envolvem o seu estabelecimento é fundamental para recriar um ambiente de conforto urbano que promova a visita e que revitalize o comércio, os comerciantes cascalenses mostram-se muito insatisfeitos com o estado em que as coisas se encontram, mas não apontam caminhos alternativos que permitam resolver o problema. Com excepção das freguesias mais interiores do Concelho, ou seja, daquelas em que o cuidado na gestão, criação e manutenção de espaços públicos como jardins e outros equipamentos afins tem sido menor, como Alcabideche e São Domingos de Rana, a generalidade dos comerciantes do Concelho de Cascais considera mau ou muito mau o estado em urbanisticamente se encontra a sua envolvência.

No primeiro Congresso Europeu sobre comércio e urbanismo, decorrido em Málaga, Espanha, entre 24 e 26 de Fevereiro de 1999, e no qual participaram vários dos maiores especialistas do Mundo sobre esta matéria, os países participantes acordaram uma série de princípios de actuação comum que deveriam enformar a intervenção dos governos de cada País para conseguirem revitalizar os núcleos urbanos tradicionais a partir de uma renovação da actividade comercial.

Inovador e apelativo, o conjunto de intervenções que decorreram nesta ocasião, deram o mote à criação de um documento de síntese que surge com a assinatura de José Luis Marrero, Presidente do Congresso e Director Geral do Comércio do País vizinho. Sendo um passo decisivo em direcção à sensibilização do sector comercial, não poucas vezes pouco preparados tecnicamente para fornecer ao decisor político material crítico que lhe permita melhorar de forma drástica o conjunto de medidas que poderiam inverter situações de crise geral, este documento foi um primeiro passo dado no sentido de reaproximar o comércio e a cidade, tendo servido de base a uma completa mudança que afectou o comércio tradicional em Espanha e em muitos outros países da Europa.

Resultante de um debate alargado, que congregou a súmula das informações recolhidas junto das principais cidades dos países participantes com algumas conclusões retiradas de programas experimentais que haviam sido instituídos em zonas díspares do Mundo, a Declaração de Málaga inclui um conjunto de dezanove orientações básicas que, desde 1999, têm vindo a contribuir para uma alteração definitiva e radical da situação comercial em vastas zonas da Europa.

Eis pois, a súmula dessas orientações, praticamente desconhecidas da generalidade dos empresários do comércio de Cascais, e que, mesmo de acordo com a orientação estrutural proposta pelo Observatório do Comércio Português, poderiam servir de base a uma total reestruturação do sector e, simultaneamente, a uma total revitalização dos nossos principais núcleos urbanos (25):



1. Reconciliação do planeamento urbanístico e da actividade comercial de maneira a reunir um conjunto de instrumentos operacionais e de globalização do fenómeno, suscitando abordagens integradas;



A preocupação com a actividade comercial, necessariamente vital ao estabelecimento dos restantes equilíbrios que suportam a qualidade de vida nas cidades, deixou há muito de ser uma disciplina estanque nas fórmulas utilizadas pelos urbanistas para a analisar. De facto, e a partir do momento em que na cidade se congregam diversas actividades e sectores, principalmente quando no início da década de oitenta do Século XX surgem as primeiras grandes superfícies comerciais e os centros comerciais de segunda geração, o empresário do comércio mantém ligação permanente e perene aos demais interesses com quem partilha o seu espaço de acção. A habitação, os serviços e os restantes equipamentos urbanos, enformando uma espécie de grande bolo em que todos são ingredientes fundamentais, delimitam o campo de intervenção do urbanista, remetendo para uma análise muitíssimo mais ampla, a abordagem aos problemas comerciais.

A globalização do fenómeno, que no Encontro de Málaga foi entendido como ponto de partida para um esforço de remodelação integral da envolvência dos espaços de comércio tradicional ou de proximidade, pressupõe que o primeiro impulso nesta autêntica revolução de mentalidades, passa pela criação de caminhos de comunicabilidade entre todos os intervenientes do processo. Para que isso seja possível, e para que habitantes, empresários, comerciantes e demais sujeitos da existência urbana sejam capazes de cooperar neste processo, é fundamental que se conheçam verdadeiramente as bases que enformam a existência da cidade, por forma a garantir que, ao contrário do que sucede na actualidade, todos são capazes de analisar os interesses alheios como parte integrante dos seus próprios interesses pessoais.

A segurança, a limpeza pública, a iluminação, a decoração dos espaços, a animação, etc., são apenas exemplos básicos de elementos urbanos que atravessam de forma transversal a generalidade destes sectores, obrigando a entendimentos comuns e a uma consciência responsável por parte de todos os intervenientes.



2. Inclusão na estratégia urbanística de três aspectos fundamentais da actividade comercial, enquanto motor económico, equipamento comunitário e base de estruturação do centro das cidades;



Para além das suas funções mais imediatas, tradicionalmente conhecidas e reconhecidas pela comunidade, o comércio de proximidade possui uma importância extraordinária na definição de muitos outros equilíbrios urbanos.
Em interacção permanente com aspectos fundamentais, como a segurança, a higiene urbana e a comodidade da cidade, o comércio assume um protagonismo que, a todos os níveis, é irrepetível. Usufruindo da cidade sempre que ela possui as condições que garantem uma vivência saudável a todos os que nela residem ou a visitam, os comerciantes são também os principais prejudicados quando a cidade perde toda a consistência que deriva da mesma.

De facto, e apesar de alguma controvérsia que poderá resultar desta asserção, o certo é que o comércio herda o melhor e o pior da cidade, sendo sempre uma das instituições responsáveis por aquilo que nela se passa.
Se actualmente quase todos percebem que a cidade não pode viver sem comércio, pois é esta actividade que oferece à comunidade grande parte dos serviços de apoio que tornam o espaço urbano numa zona plena de conforto, são já muito pouco aqueles que conseguem discernir a outra face da mesma moeda, ou seja, a faceta mais consistente da prática comercial.

Quando a Declaração de Málaga integra este princípio, reivindicando a assumpção da actividade comercial como o ponto de partida para uma abordagem global ao espaço urbano, exigindo uma gestão profissionalizada e coerente que seja capaz de responder de forma cabal aos interesses por vezes díspares que ali surgem, está sobretudo a apelar à criação de uma consciência alargada em torno dos principais fenómenos da urbanidade.




3. Satisfação das necessidades da população residente, através do estabelecimento de uma hierarquia de centros, de acordo com o valor do comércio enquanto equipamento comunitário;




4. Suporte da coordenação entre o desenvolvimento comercial e o tecido residencial, através do incentivo ao desenvolvimento de utilizações mistas;


5. Busca de políticas integradas de rentabilização ambiental, através da criação de pólos comerciais no centros das cidades e de uma nova concepção de espaço público;


6. Estabelecimento de um quadro de concertação entre os poderes públicos e os seus parceiros privados, a fim de promover a renovação dos centros urbanos e históricos e de projectar a renovação e o melhoramento dos centros das cidades, de modo a garantir uma participação alargada de todos os interessados na prossecução de objectivos comuns;


7. Promoção de usos diferenciados do centro urbano das cidades pelas diferentes instituições com interesses no loca, por forma a promover a habitação e o equilíbrio nesses espaços;


8. Melhorar as acessibilidades pedonais, os transportes públicos e a construção de mais espaços de estacionamento;


9. Ajudar a converter as áreas comerciais tradicionais em centros comerciais abertos, através do suporte de vários movimentos associativos, dentro de um quadro alargado de ofertas e de um conjunto de projectos integrados;


10. Apoiar a gestão integrada dos centros urbanos, criando serviços de gestão urbana e utilizando técnicas comuns às grandes superfícies comerciais, de forma a tornar possível a criação de uma estratégia de promoção e de marketing urbano através de:

· A manutenção das condições de segurança;
· Criação de condições de higiene;
· A animação das áreas pedonais e dos estacionamentos;
· A organização de eventos públicos, festas, publicidade, etc.;
· O encorajamento de praticas que favoreçam a renovação urbana;


11. Coordenação dos diferentes organismos responsáveis pela administração do espaço público, por forma a estabelecer, através da criação de princípios gerais de homogeneidade e de hierarquização da regulamentação, processos de racionalização administrativa que devem traduzir na pratica uma simplificação profunda dos mecanismos de abertura e de reconversão dos locais comerciais nos centros urbanos;
12. Criar e tornar acessíveis linhas de financiamento a médio e a longo prazo, por forma a garantir que os organismos da administração local têm acesso aos meios que lhes garantirão a possibilidade de beneficiarem o sector comercial;


13. Criar medidas de encorajamento aos comerciantes e empresários comerciais que promovam e melhorem a qualidade, a apresentação e os seus serviços, tendo em conta que a satisfação do consumidor é a sua principal prioridade;


14. Participação mais intensa das câmara de comércio e das associações de comerciantes em acções de renovação urbana em que eles próprios serão os promotores;


15. Criação de estratégias que fomentem o debate entre as diversas associações, academias, clubes e colectividades locais, por forma a criar estratégias de acção efectivas;


16. Melhoramento do espaço físico junto dos estabelecimentos comerciais, através da utilização de novas estratégias de marketing, por forma a criar um atractivo suplementar ao consumidor;


17. Coordenação com as autarquias através da criação de um suporte à promoção comercial em áreas urbanas tradicionais, para a criação de uma imagem corporativa, de logotipos comuns, etc.;


18. Encorajamento de acções de promoção turística dos centros urbanos e dos núcleos históricos, para a promoção do tecido comercial através da coordenação das acções de promoção, dos horários, etc.


19. Assegurar a implementação destas medidas através da criação de um grupo de trabalho permanente a nível europeu que contribuirá para a difusão destes princípios e para a realização dos estudos necessários no plano teórico que suportem a aplicação de medidas práticas.
































(1) SARAIVA, José Hermano, Evolução Histórica dos Municípios Portugueses, Problemas da Administração Local, Lisboa, Centro de Estudos Político-Sociais, 1962.
(2) PIRENNE, Henri, As Cidades da Idade Média, Mem-Martins, Publicações Europa-América, 1989.
(3) PERES, Damião, História dos Descobrimentos Portugueses, Porto, Vertente – Distribuição de Livros Ldª., 1992;
(4) CARVALHO, Sérgio Luís de, História de Sintra, Sintra, Veredas Editora, 1992;
(5) MESQUITELLA, Teresa, A Região Saloia, Cascais e as Linhas, Nº 6, Dezembro de 2001;
(6) GOITIA, Fernando Chueca, Breve História del Urbanismo, Madrid, Ediciones del Prado, Agosto 1994;
(7) GEORGE, Pierra, La Ville, Paris, Presses Universitaires de France, 1952;
(8) Ver nota 1;
(9) HENRIQUES, João Aníbal {Coord.}, Uma Intervenção Psicopedagógica nas Minas da Panasqueira, Lisboa, Universidade Moderna, 1999;
(10) Ver nota 8;
(11) Ver nota 6;
(12) SANTOS, Leandro Miguel dos, História da Ericeira – Contributos para a História e Toponímia da Ericeira, Ericeira, Fórum Ericeirense, 1998;
(13) CAETANO, Marcello, O Município em Portugal, Revista Municipal, nº 4, 1940;
(14) HENRIQUES, João Aníbal, O Estoril e a Paróquia de Santo António, Cascais, Fundação Cascais, 1999;
(15) COLAÇO, Branca de Gonta e ARCHER, Maria, Memórias da Linha de Cascais, Lisboa, A.M. Pereira, 1943;-
(16) PINA, Paulo, Portugal – O Turismo no Século XX, Lisboa, Lucidos Editora, 1988;
(17) JACOBS, Jane, Cities and the Wealth of Nations, New York, Vintage Books, 1985;
(18) FERNANDES, José Manuel, Arquitectura Portuguesa –Temas Actuais, Lisboa, Edições Cotovia Ldª., 1993;
(19) CÂMARA, Teresa Bettencourt da, Óbidos Arquitectura e Urbanismo – Séculos XVI e XVII, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1990;
(20) COMPANHIA MONT’ESTORIL, Relatório e Contas do Conselho de Administração e Parecer do Conselho Fiscal relativo ao 12º Exercício – 1900, Lisboa, Typographia Baeta Dias, 1901;
(21) COMPANHIA MONT’ESTORIL, Relatório e Contas do Conselho de Administração e Parecer do Conselho Fiscal relativo ao 20º, 21º e 22º Exercícios – 1908-1910, Lisboa, Papelaria e Typographia de Paulo Guedes & Saraiva, 1911;
(22) MÓNICA, Maria Filomena, Os Costumes em Portugal, Cadernos do Público, Lisboa, Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e Público, 1992;
(23) FERREIRA, Jacinto, No Debate das Ideias, Lisboa, QP, 1973;
(24) OBSERVATÓRIO DO COMÉRCIO, Observar o Comércio em Portugal, Lisboa, Observatório do Comércio, 2001;
(25) Declaração de Málaga, Madrid, Ministério da Economia de Espanha, 1999;