por João Aníbal Henriques
Nascida à beira das águas tépidas da sua baía, e impregnada com o cheiro acre da maresia, a Vila de Cascais viveu sempre de e para o mar. As suas gentes, os seus monumentos, e toda a sua estrutura urbana, são repositórios integrais de uma relação ancestral com a baía, que as recentes intervenções parecem não conseguir compreender.
Guarda avançada de Lisboa, e garante da segurança na Barra do Tejo, Cascais nasceu e cresceu em estreita ligação com o mar. Desde que em 1363 o poder político concedeu a autonomia administrativa aos seus homens do mar, a vila assumiu essa vocação, recriando-se em torno do marulhar incessante das ondas da sua baía.
O seu património construído, e mesmo a estrutura urbana que presidiu ao seu crescimento, foi permanentemente marcada por esse cunho especial, deixando antever um conjunto de monumentos que, mais do que à arte e ao engenho da arquitectura, ficam a dever a sua importância ao papel preponderante que desempenharam na História Marítima de Portugal.
O Património Cascalense, dividido entre uma interioridade de génese rural e a litoralidade ocêanica, encontra-se profundamente marcado pela preponderância desempenhada no município pelas actividades, ofícios e obrigações relacionadas com o mar. Em termos de técnicas de construção, ou mesmo da sua disposição e distribuição no espaço, as principais e mais interessantes peças da sua monumentalidade encontram-se junto à baía, garantindo a segurança das suas terras, ou explorando as maravilhosas paisagens que resultam da cadência entre as arribas e os areais.
Por tudo isto, o mar e as intervenções a ele associadas tiveram sempre uma especial importância no devir histórico local, gerando expectativas, ideias e sonhos que raramente se concretizaram.
Quando na década de 40 do Século XX se construiu a Estrada Marginal, obrigando a entubar a antiga Ribeira das Vinhas e a demolir as inúmeras e ancestrais pontes que ligavam as suas duas margens, a face de Cascais foi completamente alterada.
Quando na década de 40 do Século XX se construiu a Estrada Marginal, obrigando a entubar a antiga Ribeira das Vinhas e a demolir as inúmeras e ancestrais pontes que ligavam as suas duas margens, a face de Cascais foi completamente alterada.
Com o desaparecimento da ribeira, e a consequente resolução de muitos dos graves problemas de salubridade urbana que resultavam da estagnação das águas, e da sua utilização como depósito de lixo e canal de esgoto, a vila perdeu uma das suas principais ligações à água.
No entanto, e apesar de serem poucos aqueles que actualmente ainda reconhecem na agitada Marginal o leito daquele antigo troço de água, ela permaneceu como elemento essencial na simbólica espacial desta vila cosmopolita.
No entanto, e apesar de serem poucos aqueles que actualmente ainda reconhecem na agitada Marginal o leito daquele antigo troço de água, ela permaneceu como elemento essencial na simbólica espacial desta vila cosmopolita.
Ao longo dos anos, e com o intuito de restaurar esse laço primordial, têm sido muitos aqueles que idealizam utopicamente o reatamento dessa relação.
Pedro Falcão, cascalense de coração, erudito, académico, e profundo admirador das potencialidades das águas de Cascais, esboçou um quadro polémico que serviu de base a muitos projectos de reconversão da vila. Reabrindo a Ribeira das Vinhas no troço que vai da sua foz até ao actual Edifício São José, e tornando possível a navegação no interior de Cascais, ele sonhou com uma vila onde o cheiro a maresia se impregnava em todos os edifícios, trazendo as traineiras e o peixe até à população. Teimava ele, com o seu génio reconhecido por todos, que a ligação de Cascais ao mar havia sido desvirtuada, e que só assim se poderia reconstruir o vínculo que subsistiu durante séculos.
A pesada intervenção urbana que implicava este projecto, assumida por Pedro Falcão como única forma de reaproximar Cascais do seu mar, procurava rebater o afastamento progressivo que se vinha instalando desde há muito tempo.
No início do Século XX, numa iniciativa da Comissão de Iniciativa e Turismo do Concelho de Cascais, já havia sido esboçado um projecto com idêntico objectivo.
Assinado por Manuel José Ávila Madruga, Raul Ressano Garcia, Carlos Bonvalot, António Maria Cardoso e José Roberto Raposo Pessoa, o projecto de reaproveitamento turístico do espaço envolvente da Cidadela de Cascais pretendia criar uma estrada panorâmica que envolvesse aquela importante peça patrimonial, criando ainda um cais de acostagem e um enorme complexo de jardins. Dizia-se então, em jeito de defesa de tão arrojada ideia, que Cascais precisava de se reconciliar com a sua baía, rentabilizando turisticamente as suas paisagens marítimas e os monumentos a elas associados.
Apesar da beleza, da harmonia, da justeza, e até do romantismo associado a estes projectos, Cascais nunca conseguiu reconstruir o seu estreito relacionamento com o mar. As pontes da antiga ribeira continuam sujeitas ao peso brutal ao alcatrão, e a principesca vista panorâmica do projecto envolvente à Cidadela ficou definitivamente condenada com a construção da actual marina.
De costas voltadas para Cascais, e perdida no meio de sonhos inglórios de uma pujança que nunca conheceu, a marina jaz quase morta, por ter sido construída contra as expectativas dos cascalenses. Com a sua construção, Cascais ganhou um equipamento marítimo que sempre desejou, mas viu desaparecer a idílica enseada de Santa Marta, que servia de postal ilustrado da vila, e de moldura ao Palacete O’Neill e à Casa de Santa Maria; e viu também a sua Cidadela, monumento ímpar consagrado ao oceano, colocada a seco, desvirtuando o seu relacionamento ancestral com a água.
A esperança, agora, depende do projecto de reconversão que a C.M.C. pretende implementar naquela zona. Talvez Cascais readquira finalmente a vocação marítima de outros tempos, reconduzindo os cascalenses aos sonhos utópicos com cheiro a cândida maresia que sempre a caracterizaram.