sexta-feira

Aquilino Ribeiro: Deturpar Portugal




por: João Aníbal Henriques

De tempos a tempos, e em áreas completamente díspares, Portugal é abalado por acontecimentos que, pela sua importância, se tornam decisivos para o futuro do País.

Contrariamente ao que seria de esperar, muitos desses acontecimentos acabam por não possuir o envolvimento mediático que lhes conferiria a notoriedade pública que merecem, passando despercebidos aos cidadãos menos atentos, e relegando para uma pseudo-elite culturalmente exigente as discussões em torno das repercussões dessa situação no devir Nacional.

Foi exactamente isto que se passou recentemente em Portugal. O escritor Aquilino Ribeiro, quarenta e quatro anos após a sua morte, foi transladado para o Panteão Nacional com o apoio unânime a aclamação de todos os Deputados da Assembleia da República.

O gesto, envolto na pompa e na circunstância que lhes foram conferidas pela presença do Presidente da República e por algumas das mais altas instâncias da Nação, representa um choque profundo para a Portugalidade, possuindo repercussões graves na essência quase mística que envolve o dia-a-dia de Portugal.

Reconhecido de forma unânime como um dos grandes vultos literários e culturais do Portugal do Século XX, com uma obra profusa e de enorme (e inquestionável) qualidade, Aquilino Ribeiro foi paralelamente um activista político, com posições muito próprias e atitudes condizentes. Foram essas actividades que nortearam a sua vida, determinando de forma efectiva aquilo que foi a sua relação social com os outros e com o País. Quer queiramos ou não; quer gostemos ou não; quer partilhemos ou não com Aquilino as suas opiniões, posições e formas de intervenção, há qualquer coisa que é inultrapassável e que marca a diferença nas apreciações que dele possamos fazer: assumiu sempre aquilo que foi e aquilo em que acreditava.

A cerimónia de transladação de Aquilino Ribeiro foi, no entanto, um acto de profundo desrespeito por ele, pela sua vida e pelas suas posições, sendo que, no plano oposto, foi também um momento que não dignificou as causas dos que se opuseram a este acto.

De um lado, os políticos e intervencionistas ditos de esquerda, apoiantes da homenagem, que teceram comentários jocosos àqueles que levantaram dúvidas sobre a legitimidade do acontecimento. Do outro, um conjunto de personalidades ditas de direita (na comunicação social tidas erradamente como monárquicos), que inventaram contra o escritor, tentando aniquilar a sua obra à sombra da mancha que paira sobre o seu desempenho político.

Com estas atitudes, posições e opiniões todos erraram. Uns, porque anulam o político intervencionista que Aquilino sempre foi e assumiu, dando ênfase exclusivamente à sua componente de escritor e de homem de letras; outros, porque fizeram exactamente o contrário. Anularam a genialidade cultural do escritor, e tornaram-no unicamente no assassino do Rei Dom Carlos e do Príncipe Dom Luís Filipe.

Ambos erraram porque nos dois campos distintos, o político e o cultural, Aquilino foi sempre aquilo que foi, tendo assumido os seus actos, ideias e obra, agindo em conformidade com isso. Não se considerava um génio, e sabia ter cometido actos em nome dos seus ideais que contrariam os princípios mais básicos da dignidade Humana.

Passando aos factos: Aquilino é, inquestionavelmente, uma referência incontornável da culturalidade Portuguesa do Século passado. Só quem nunca leu a sua obra, e quem nunca se deliciou com a forma rebuscada como utilizava a língua Portuguesa, sublimando a sua faceta mais erudita e complementando tudo isso com os trejeitos avoengos de outrora, pode não aceitar esta premissa.

Por outro lado, e na sua vertente política, Aquilina foi também um intervencionista extremista, membro activo da carbonários e defensor de ideais neo-anarquistas que o colocaram em situações dramáticas em determinados momentos da sua vida. Foi o próprio Aquilino Ribeiro quem, pelo seu próprio punho, assume que participou directamente no assassinato do Rei. É ele próprio quem diz que ninguém viu ou soube mas que ele estava lá, sendo directamente responsável pelo acto atroz e por tudo aquilo que ele representa.

Aquilino colaborou e participou directamente na morte do Rei. E a razão para tal, presente de forma transversal em toda a sua obra, foi simples e linear: não gostava daquele homem e não se identificada com o regime político que ele representava. Por isso, e sabendo de antemão que não existir nenhuma outra forma de o derrotar, matou-o.

Do alto da sua verticalidade, e contrariando os que agora o dizem defender, jamais negou a situação, não tendo tentado adaptar a História às novas necessidades e realidades entretanto surgidas. Aquilino assumiu aquilo que fez, e se esse erro macula a sua vida numa perspectiva moral, nada lhe retira em termos do génio literário que foi.

Mas em termos práticos, há factos que a passagem dos anos não conseguem alterar. Aquilino Ribeiro matou; colaborou com uma organização terrorista; e participou em actos ignóbeis que colocaram em causa a liberdade de expressão e até de existência de outros Seres Humanos.

A vida Humana é intocável e sagrada. Como todos os abemos. E sem entrar nas discussões monárquico-republicanas que envolveram este acontecimento, ninguém que mata outrem pode ser homenageado Nacionalmente como heróis.

Os Deputados que apoiaram a transladação e a homenagem; o Presidente da República que teceu rasgados elogios ao escritor fingindo esquecer tudo o resto; o Primeiro-Ministro que se associou à cerimónia; o Presidente da Assembleia da República que foi a cara de todo o processo; e todas as demais entidades e personalidades que estiveram presentes; deveriam responder a algumas perguntas simples para elucidar os Portugueses: Apoiam Aquilino? Apoiam o terrorismo político? A chacina? A morte de alguém?

Se não, porque não uma homenagem ao Aquilino homem de letras, numa qualquer praça Portuguesa? Uma estátua, um ciclo de conferências, um livro com memórias!... Nunca o Panteão Nacional onde se colocam aqueles que ascendem à categoria de heróis.

A transladação de Aquilino Ribeiro para o Panteão Nacional é ignóbil por isto: um regime dito democrático não pode vacilar perante o terrorismo; perante o ataque á liberdade; perante o radicalismo; perante a intolerância… Não pode ser convivente com os extremismos e com a violência.

Em homenagem ao aquilino vertical, que foi grande nas letras e nas suas crenças, e que assumiu tudo o que fez, deveríamos retirá-lo do Panteão Nacional. Porque lá, tratando-o como o herói que não foi, se contrariam e deturpam os ideais de tolerância, ecumenismo, e diálogo que sempre caracterizaram o Homem Português.