Existem cidades que são mais do que uma mera cidade. Estremoz, assente na brancura imaculada do seu mármore de qualidade conhecida e reconhecida internacionalmente, é um desses espaços especiais. Conjuga uma história milenar com um vastíssimo rol de histórias e lendas que, oferecendo-lhe a grandiosidade das grandes capitais, a envolvem num laivo de glamour que envolve quem tem a sorte de nela se perder.
por João Aníbal Henriques
Estremoz é uma cidade especial.
Dividida em duas partes que se conjugam operando como dois pólos de atracção
junto daqueles que a visitam, a cidade comporta um intrincado e emaranhado
conjunto de ruelas antigas que dão forma ao seu espaço medieval, compartimentado
dentro das muralhas do seu ancestral castelo, e o amplo espaço moderno, que se
espraia ao longo da planície, com as suas praças bem delineadas e os monumentos
que valorizam cada esquina.
Quem entra em Estremoz pela
primeira vez, fica imediatamente marcado pelo impacto que resulta da sua torre
medieval. Do alto da colina onde assenta o núcleo mais antigo do burgo, a torre
é possivelmente o mais antigo monumento da cidade, uma vez que o palácio real,
bem como todo o quarteirão envolvente, foi completamente destruído por uma
misteriosa explosão acontecida durante uma noite de Inverno no Século XVII. À sua volta, com aquele tom intimista que a
cidade ainda tem, tudo o resto são reconstruções mais recentes, sendo que a
grande maioria foi construída durante o reinado de Dom João V e com o apoio da
Casa Real.
Apesar de aparentemente não fazer
qualquer sentido, pois sendo cidade pequena quando comparada com as capitais de
Évora, Portalegre e Beja que a envolvem, a monumentalidade e a grandeza de
Estremoz prende-se com o carácter simbólico que subjaz da sua história muito
especial.
O primeiro personagem grande da
História de Estremoz, depois de uma longa ocupação humana que se pressupõe ter
começado ainda na Pré-História mas que teve momentos de grande fulgor durante o
período Romano e, mais tarde, sob domínio Muçulmano, é Geraldo o Sem Pavor,
herói mítico do Alentejo que, sob ordens de Dom Afonso Henriques, terá
reconquistado para a Cristandade grande parte das cidades do Sul de Portugal. Sabe-se
que Geraldo conquistou Estremoz em 1185 e que, mercê do período conturbado que
então se vivia, ela foi perdida e reconquistada muitas vezes até ter entrado em
definitivo na posse dos Reis de Portugal. Em 1258, pela mão de Dom Afonso III,
recebeu o seu primeiro foral, facto que sustenta e comprova a importância que
tinha no contexto da consolidação política nacional.
De entre outros, foi Dom Dinis um
dos principais impulsionadores dessa importância relativamente à cidade. Foi
ele quem, possivelmente por gosto pessoal relativamente ao espaço e à paisagem,
mandou edificar o Paço Real e a torre de menagem atrás mencionada, que passaram
a funcionar como baluarte da defensão do reino nas paragens longínquas do
Alentejo.
O seu topónimo – Estremoz – é,
aliás, um repositório importante dessa situação extrema em que se encontra a
cidade, localizada numa zona de fronteira e sempre sujeita às vicissitudes e às
pressões que dela derivavam.
A Rainha Santa Isabel, ligada de
forma indelével e permanente aos destinos de Estremoz, onde aliás morreu em
1336, vê reforçados os seus laços com a urbe como consequência desse facto. A
sua santidade, mais do que ao milagre das rosas, que lhe dá fama, fica a
dever-se ao trabalho que efectivamente fez pela paz no reino de Portugal e que,
por vicissitudes diversas, a traz amiúde até estas paragens.
Filha do Rei de Aragão e de uma
princesa Italiana, Isabel casou com Dom Dinis e sofreu em vida as amarguras de
um casamento do qual parece que resultou pouca afeição. O rei, conhecido
admirador do belo sexo, dedicava-se pouco à sua santa esposa e procurava amiúde
o folguedo junto das damas da região. Conhecida pela sua bonomia, a rainha terá
sido conivente com tal situação, recebendo no paço, onde lhes facultava condições
de vida e uma educação semelhante à que dava aos seus filhos naturais, os
vários bastardos reais.
O futuro Dom Afonso IV, seu filho
primogénito e legítimo herdeiro do trono, foi ele próprio alvo dessa situação,
dado que o seu pai, tendo preferência por um dos seus filhos bastardos, teimou
em deixar-lhe por herança o reino de Portugal. O príncipe, defendendo os seus
direitos, terá dado início à primeira guerra civil da nossa história, que teria
sido muito mais sangrenta se não fosse a intervenção permanente da sua mãe a
Rainha Santa Isabel.
Em 1336, a antiga rainha que
havia professado em Santa Clara-a-Velha, em Coimbra, onde desejava passar os
seus últimos dias ajudando os pobres, vê-se obrigada a nova e derradeira viagem
a Estremoz para evitar uma nova guerra do seu filho agora já rei com o seu
cunhado Rei de Castela. Deixando Coimbra carregada de peste, a rainha sucumbe
em Estremoz, não sem antes evitar novo derramamento de sangue e de ter deixado
expressa a sua vontade de ser sepultada em Coimbra conforme havia planeado
fazer.
O cortejo fúnebre, que se alongou
durante vários dias sob o calor tórrido do Julho no Alentejo, transportou os
restos mortais da rainha de Estremoz até Coimbra. O caixão, levado em ombros
pelas principais personagens do reino, acabou por rebentar durante o percurso,
deixando sair um líquido viscoso que se ia espalhando ao longo do trajecto.
Mas, para surpresa e gáudio dos que tiveram a sorte de participar neste triste
evento, o líquido que saia deixava no ar um forte aroma a flores que reforçou a
aura de santidade que já se atribuía à rainha. Não se sabendo com exactidão
quanto haverá de lenda e de realidade nesta história, o certo é que, muitos
séculos depois, quando o caixão voltou a ser aberto quando se procedeu à
transladação do corpo de Santa Clara-a-Velha para Santa Clara-a-Nova, se
encontrou incorrupto o corpo da rainha, sendo que ainda hoje, quase setecentos
anos depois da sua morte, se expõe a sua mão à devoção dos Portugueses.
Mas para além de Geraldo – o sem
pavor, de Dom Dinis – o plantador de naus a haver, e da rainha Santa Isabel,
também por Estremoz passaram outras ilustres figuras que ajudam a perceber a
real importância desta cidade única de Portugal. Em 1367 morreu em Estremoz o Rei
Dom Pedro I, muitos anos depois dos míticos e românticos amores com a sua
eterna apaixonada Inês; Em 1385, foi Estremoz das poucas praças que sem vacilar
apoiou a Causa Nacional durante a crise que levou ao trono o Mestre de Avis e
que deu forma à Ínclita Geração, tendo sido dali que Dom Nuno Álvares Pereira,
o Condestável Santo que fez nascer a Casa de Bragança e aquela que virá a ser a
última das dinastias no trono de Portugal, saiu para as batalhas dos Atoleiros
e de Aljubarrota, dando corpo a uma defesa total e intransigente do interesse
Nacional. Da mesma maneira, alguns anos depois, é a Estremoz que o rei Dom
Manuel I se dirige para entregar a Vasco da Gama a importante tarefa de
descobrir o caminho marítimo para a Índia e de estabelecer o contacto com o
Prestes João…
Não se percebendo bem de onde vêm
tão ilustres pergaminhos, perdidos no sem-sentido que dá forma à história
local, o certo é que Estremoz conjuga em si própria os encantos maiores do Sul
de Portugal. Tal como o País vai sobrevivendo quase incólume às muitas
desgraças que dão forma à sua história maior, também Estremoz reafirma a sua
Portugalidade em torno de feitos e acontecimentos que se conjugam no plano das
ideias ara dar forma ao desígnio maior da nação.
Visitar Estremoz, subindo ao
amplo terraço que se encontra no topo da Torre de Menagem, é ser capaz de
reviver os passos difíceis que por ali deram os nossos ancestrais avós,
abarcando com a vista a amplitude infinita da paisagem alentejana. Deslumbrante
e avassaladora, a brancura de Estremoz acompanha a beleza extraordinária do seu
mármore que, depois de um processo alquímico associado à purificação maior das
impurezas que o compõem, se transforma na pedra maior que dá forma ao que de
melhor se construiu em Portugal. Está por todo o lado, nas asas, nas ruas e nos
lambris dos passeios. Mostra-nos a altivez, o charme e a riqueza deste recanto
mágico de Portugal.