por João Aníbal Henriques
A Anta da Pedra da Orca, também
conhecida na região como Dolmen do Rio Torto, é um dos mais importantes
monumentos do Concelho de Gouveia. A definição estrutural da história da
comunidade, marcada de forma evidente pela presença deste monumento megalítico,
é bem visível na forma como o designativo do local se impõe como topónimo
espacial, até porque, sendo sinónimos as palavras anta e orca, derivam ambos da
referência expressa ao megalítico que dá corpo a este espaço, e que desde há
muito foi marca perene no devir quotidiano da localidade.
Analisada pela primeira vez ainda
em pleno Século XIX pelo ilustre investigador minhoto Martins Sarmento, que por
ali deambulou em busca das origens primevas da portugalidade, a Anta da Pedra
da Orca foi alvo de posteriores investigações sob a tutela de Maximiliano
Apolinário, que ali encontrou vários vestígios arqueológicos de grande
importância e que actualmente se podem ver no Museu Nacional de Arqueologia em
Lisboa.
Composto basicamente por pontas
de seta, fragmentos cerâmicos e restos de ossadas humanas, o espólio encontrado
nesta anta reforça a sua datação como originária do final do período Neolítico,
com cerca de 8000 anos, enquadrando-se tipologicamente nas estruturas comuns
desse período existentes por toda a Península Ibérica. A sua estrutura pétrea,
da qual subsistem alguns dos esteios que suportavam a grande pedra de fecho, estaria
originalmente tapada por uma grande quantidade de terra e pequenas pedras que,
configurando uma espécie de monte artificial, teria como principal função a de
dissimular o monumento na paisagem, evitando assim a sua identificação e o
eventual saque que dela resultasse.
A câmara, ou seja, o espaço central
da anta, teria uma funcionalidade eminentemente funerária, servindo para a
deposição dos restos mortais dos membros da comunidade local, num contexto
simbólico que denota já uma alargada capacidade simbólica e que exigia
necessariamente uma estruturação social complexa e bem organizada. O corredor
de acesso, numa alusão simplificada ao canal vaginal feminino, supõe uma
ligação perene entre à ritualidade ligada aos cultos da fertilidade, presumivelmente
em linha com os cultos da Deusa-Mãe e da mitologia associada ao eterno feminino
cujos vestígios surgem amiúde em outras antas espalhadas por todo o território nacional.
Nesta perspectiva, em que os
cultos matriarcais prevalecem, assume especial importância a sua localização
numa das encostas Nascentes da Serra da Estrela, simbolicamente conotada com
essa vertente feminina e que determinou de forma evidente toda a simbólica
religiosa que virá a caracterizar as comunidades humanas que ali se instalam em
períodos subsequentes. É esta Deusa-Mãe, cujo útero úbere se enche de vida num
processo mágico que o Homem de então desconhece, quem define a ligação
simbólica mas pragmática que os povos desta região desenvolveram com a
mitologia de origem feminina e que, depois da queda do Império Romana e da
Cristianização do território peninsular, se vai paulatinamente adaptando aos
novos uso e costumes, adoptando a essência mais profunda de uma associação que
a aproxima da figura primeva da Mãe de Jesus, ou seja, de Nossa Senhora…
E, se a Rainha e Padroeira de
Portugal é Nossa Senhora desde 1640, é certo também que a devoção mariana conflui
no Portugal que hoje temos precisamente para o designativo de Nossa Senhora da
Conceição ou seja, numa calara alusão ao carácter fértil da Mãe de Deus,
recriando assim uma ponte simbólica entre aquela que se assume como a principal
das linhas de pensamento religioso actual e estas primitivas expressões do
sagrado nas comunidades. Em suma, é a mesma devoção sagrada, numa expressão de
mistério que impõe a ultrapassagem das barreiras do tempo para, no âmbito de um
contexto comum, juntar comunidade cujas vidas estão separadas por espaços de
vários milhares de anos, mas que convergem na sua capacidade de identificar a
divindade nos mesmos pressupostos e de para eles encaminhar a expressão mais
profunda da sua Fé.
O regresso às origens, ao útero
materno e ao mundo interno configurado pelo ninho escuro do ventre materno,
transforma-se assim num processo de recondicionamento da própria vida. Quem
nasce, necessariamente cresce, vive e morre, regressando então às suas origens
num périplo de retrocesso à primitiva pureza original. A anta, de uma forma
geral, e esta de Gouveia em particular, é assim o primeiro pilar estrutural de
uma forma de pensamento que dará corpo àquilo que são hoje os alicerces da
própria humanidade, ajudando a compreender a complexificação das relações entre
os homens a partir da forma como eles expressam o seu entendimento pelos
mistérios maiores da vida (ou das vidas) que vão vivendo.
No caso específico da Anta da Pedra
da Orca, a ligação ancestral à estrela ainda aprofunda mais esse pressuposto. A
estrela, simbolicamente expressando a forma da luz primordial e inacessível, ou
seja, a candeia que acompanha o homem no se percurso final em direcção ao céu,
é fundamentalmente um apelo à condição primordial da dependência da vida
relativamente à mulher. Não há vida, nem trabalho, nem prosperidade sem a
mágica sublime da concepção e do nascimento. E, da mesma maneira, nada disso
existente sem a condicionante final da morte, expressão sublime da existência
humana, exigindo assim sistemas complexificados de pensamento que ajudem a
explicar e a perceber um fenómeno que, sendo transversal a todos os seres
humanos, é por eles entendido de forma incipiente.
As ossadas humanas encontradas no
espólio da Anta da Pedra da Orca são, por isso, os vestígios que restam das
comunidades que certamente durante várias gerações utilizaram este monumento
como espaço funerário, sendo que os restantes objectos votivos, principalmente
as pontas de seta e os recipientes cerâmicos que ali foram descobertos, teriam
uma funcionalidade efectiva na vida subsequente daqueles que ali eram
depositados, num regresso ao colo materno, quando a morte de aproximava e a
vida chegava ao seu fim definitivo e terreno. Os construtores neolíticos, ainda
tão primitivos tecnicamente quando comparados com aqueles que lhes sucederam, tinham
já nessa época a convicção profunda da dualidade espírito-corpo que actualmente
define as religiões modernas, consignando a morte como um mero momento num
percurso ou caminho mais longo e amplo em direcção à eternidade espiritual dos
que morreram.
Por tudo isto, mais do o impacto
maravilhoso que este monumento impõe sobre quem o visita, a Anta da Pedra da
Orca, em Gouveia, representa de forma subtil a operação maior pela qual o homem
passou em direcção à humanização que hoje temos. E, definindo de forma rigorosa
a via que a isso levou, num percurso necessariamente longo e complexo, mostra-nos
com exactidão o papel que nesse desiderato desempenhou a comunidade que
habitava naquela região do actual território português.
É que, não sendo ainda o Portugal
que hoje temos, é já o embrião totalmente perfeito dos Portugueses que hoje
temos a capacidade de ser.