Devolvida aos Cascalenses 2000
anos depois…
por João Aníbal Henriques
2000 anos depois de Titvs
Cvriativs Rvfinvs ter chegado à Lusitânia oriundo de Roma e ter solicitado
autorização aos Deuses Manes para se instalar no território que hoje pertence
ao Município de Cascais, os vestígios que restam da sua enorme villa
agro-senhorial foram finalmente devolvidos a Cascais e aos Cascalenses!
A Villa Romana de Freiria,
localizada junto a Polima, na Freguesia de São Domingos de Rana, tem uma
ocupação humana que se perde nas brumas do tempo. Utilizada provavelmente desde
a Pré-História, mercê da sua localização privilegiada junto ao estuário do Rio
Tejo e do carácter muito fértil das suas terras agrícolas, Freiria apresenta
vestígios únicos que atestam os principais momentos da evolução civilizacional
do Homem, e um conjunto de estruturas do período romano que são peças únicas da
arqueologia mundial.
Entre os dois conjuntos termais,
com águas quentes e frias, o espaço habitacional e de lazer profusamente
decorado com mosaicos e irrigado com um complexo sistema de distribuição de
águas avançadíssimo para o seu tempo, e as estruturas agrícolas de grandes
dimensões e de uma qualidade construtiva sem par, a Villa Romana de Freiria
possui um potencial cultural extraordinário que se cruza com o valor turístico
que a vocação de Cascais não permite renegar.
Descoberta por Virgílio Correia
no início do Século XX, a Villa Romana de Freiria foi escavada em dezenas de
campanhas que se prolongaram ao longo de todo o século, num esforço hercúleo
que permitiu recolher milhares de artefactos únicos e atestar de forma
comprovada a imensa importância do local.
Desde meados do século passado,
quando a expansão urbanística da região de Grande Lisboa determinou o
alastramento absurdo da mancha habitacional e reformatou a matriz urbanística
das periferias a partir do caos imposto pelas construções clandestinas, que
Freiria foi sendo envolvida por centenas de construções desregradas que, para
além de comprometerem a integridade do espaço, acabaram por influir de forma
dramática na sua conservação e na possibilidade do seu usufruto por parte da
população local.
Praticamente desconhecidas dos
Cascalenses, as ruínas romanas foram sobrevivendo aos ataques sucessivos das
últimas décadas através do enorme esforço da equipa de arqueólogos que foi
acompanhando e estudando o local e que, através de estratagemas quase impensáveis,
foram conseguindo esconder, tapar e guardar alguns dos mais importantes
detalhes do espaço, salvando assim a sua integridade até à actualidade.
O poder político (ou melhor
dizendo) os poderes políticos que sucessivamente foram tomando conta dos
destinos de Cascais, demonstraram sempre uma incapacidade latente ao nível
decisório, tendo sido todos eles incapazes de contribuir o que quer que seja
para a salvaguarda e para o aproveitamento do potencial deste local.
No início dos anos 90 do século
passado, quando a Freguesia de São Domingos de Rana cresceu de forma
desmesurada e desregrada, a Villa Romana de Freiria foi literalmente engolida
pela clandestinidade envolvente, havendo mesmo casas, oficinas e outro tipo de
construções que utilizaram materiais das próprias ruínas para as suas próprias
edificações. E quando foi apresentada a primeira proposta de um Plano de
Pormenor que visava salvar o local, a inoperância política de quem mandava
impediu a sua cabal concretização e manteve o cenário de abandono e de incúria
até praticamente à actualidade.
As memórias de Titvus Cvriativs
Rvfinus, o romano de cepa que chegou a Freiria no Século I d.C. pareciam estar
destinadas a uma mera prateleira numa qualquer sala de museu, à medida em que o
abandono do espaço incitava à presença dos caçadores de tesouros, dos curiosos
e dos detectores de metais, iam esboroando aos poucos aquele que era um dos
principais patrimónios de Cascais.
Mas nesta semana, num acto digno
de louvor, a Câmara Municipal de Cascais terminou e inaugurou uma intervenção
extraordinária no local.
Para além de vedar de forma total
o espaço da villa romana, e de recriar um conjunto de passadiços em madeira que
permitem percorrer todo o perímetro do monumento sem comprometer a estrutura arqueológica,
a intervenção agora concretizada contempla a colocação de sinalética com a
identificação dos principais motivos de interesse para quem o visita e, acima
de tudo, informação clara e eficiente acerca do que se está a ver e a
interpretar.
Com esta intervenção agora
inaugurada, Freiria é finalmente devolvida aos Cascalenses, a Cascais e a
Portugal, que agora passa a poder usufruir, a conhecer e a reconhecer uma peça ímpar
na História deste local.
Desta maneira, mercê do circuito
interpretativo, da salvaguarda da integridade do espaço, e do conforto para a
visitação, a Villa Romana de Freiria transforma-se no cadinho que desde sempre
deveria ter sido de potenciação cultural do local. E, ao invés do que muitos
diziam quando há cerca de 20 anos se instalou a polémica acerca do estado de
abandono do monumento, passou a ser também um dos principais motores
qualificadores de todo o espaço envolvente, fomentando a identidade local e as
potencialides turístico-culturais de Cascais e da Freguesia de São Domingos de
Rana.
Com a inauguração do pólo
universitário de Carcavelos, e a selagem recente do aterro de Trajouce, cria-se
nesta zona um eixo de crescimento sustentado e de qualidade que não pode deixar
ninguém indiferente. Todo o Vale da Ribeira da Lage, desde o Bairro do Pomar
das Velhas até ao novo pólo universitário de Carcavelos, passa agora a ter
condições para se destacar da paisagem inóspita da invasão clandestina que
caracterizou o Cascais de outros tempos, traduzindo-se em elementos geradores
de qualidade de vida para todos os Cascalenses.
Estão de parabéns as equipas de
arqueólogos que desde há muitas décadas dedicaram o seu tempo a lutar pela
preservação de Freiria. Estão de parabéns as equipas técnicas que idealizaram e
concretizaram este importante programa de salvaguarda. E estão de parabéns, os
decisores políticos que foram capazes de passar das palavras aos actos e de
(finalmente) devolver a Cascais um dos valores maiores da sua culturalidade.
Ganhou Cascais. Ganharam os
Cascalenses e ganhou Portugal.