por João Aníbal Henriques
Sítios especiais rimam geralmente
com memórias únicas e inolvidáveis. É o que acontece na Aldeia do Penedo, junto
a Colares, no Concelho de Sintra. Ali, no cimo de uma penedia vincada pelo
guinchar permanente do vento, cruza-se a versão pagã original dos cultos
anímicos ancestrais com a mística sagrada do Cristianismo mais recente… e se o
touro morre às mãos do povo, é a sua carne que alimenta o corpo e a Alma do
Imperador, Senhor do Espírito Santo. Vale a pena conhecer este recanto mágico
de Portugal.
Perderam-se no tempos as
informações fidedignas sobre a origem da Aldeia do Penedo, em Colares. A
documentação histórica, marcada pelos tempos em que o registo já era prática
comum, leva-nos directamente para o Século XVI, quando no primeiro numeramento
oficial realizado em Portugal, se registava um total de 34 vizinhos a residir
no Penedo.
Mas este número de habitantes, indicador
potencial de uma aldeia já com certo peso histórico, contradiz de sobremaneira os
sinais existentes no terreno, que denotam uma origem remota e muito longínqua
para a generalidade das mais antigas construções que ali encontramos.
No ciclo das construções e das
reconstruções, temos então uma Aldeia do Penedo cuja principal marca surge
associada à documentação mas, não só pelas evidências arqueológicas como até
pela etnografia do local, tudo aponta para uma origem muito mais antiga deste
local.
A Capela do Penedo, com um duplo
orago dedicado a Santo António e a Nossa Senhora das Mercês, foi instituída em
1547 por Francisco Nunes Dias e sua mulher Maria dos Anjos Gonçalves. Através
desta instituição, procuraram apaziguar a ira dos deuses, através de um acto de
entrega simbólica de uma parte substancial dos seus haveres aos irmãozinhos
mais desafortunados pela vida que habitavam naquele lugar.
Com decoração opressivamente
marcada pela azulejaria polícroma representando hagiograficamente o santo
lisboeta, todo o interior do templo transparece da ligeireza formal dos templos
de origem chã da região saloia. O Altar Mor, com as imagens de Santo António e
de Nossa Senhora das Mercês, cumpre o duplo efeito de recuperar as principais
memórias religiosas do povo que frequente o templo e, em épocas festivas, de
servir de cenário para a coroação imperial votiva do Império do Espírito Santo.
Anualmente, num ritual também ele
perdido nas brumas do tempo, uma criança impúbere do sexo masculino era
escolhida e coroada como Imperador do Penedo, recebendo as honrarias próprias
de quem comanda a terra dos seus. E, sendo notoriamente um papel que todas as
famílias desejavam ocupar, era simultaneamente uma honra e uma responsabilidade
que se cruzavam no ritual de alimentar os pobres da região…
As raízes provavelmente
proto-históricas deste ritual, assente na lide à corda de um touro no espaço
público, recuperam valores que desde sempre caracterizaram a população do
local. Simbolizando a força e a determinação, obviamente imprescindíveis para
quem quisesse sobreviver no topo fustigado pelas intempéries de uma Serra
sempre especial, o touro é o animal que contrapõe a balança da singeleza imposta
pela pureza original da criança coroada imperador. Se um é forte e possante,
sendo lidado por todos para que a comunidade imponha a sua vontade aos deuses,
quem manda verdadeiramente, ou seja, o próprio imperador, é escolhido e coroado
sempre por ser o mais jovem, o mais puro e o mais desprotegido de todos os
jovens da região, simbolizando a grandeza de quem é pequeno e a enormidade dos
valores e princípios que mais tarde o Cristianismo plasmará no Sermão da
Montanha de Jesus Cristo.
Antes de ser morto sem se saber
exactamente por quem, encoberto por um véu de mistério que só a história
permite desvendar, o touro é transportado à volta da capela três vezes. Uma
primeira em honra do Pai, seguindo do Filho e, por fim, em honra do
Espírito-Santo. E é depois desta terceira volta, quando é benzido pelo Prior
local num holocausto místico em que todos participam também, que o animal é
morto e esquartejado, sendo o seu corpo cozinhado em pleno largo da capela e a
refeição servida aos pobres da zona como bodo cerimonial.
Um culto ancestral, provavelmente
muito mais antigo do que a própria capela que agora ali temos e que, num
registo anímico de entrega à espiritualidade, recupera de um só ensejo a marca
perene do paganismo pré-histórico em linha com os valores espirituais da
cristianização galopante. A caridade que dali deriva, porque os mais
desprovidos da materialidade ali obtêm as proteínas da carne de que tanto
necessitam para viver, encobre-se ritualisticamente para não ser “caridadezinha”,
partilhando de forma relevante ensinamentos essenciais para que verdadeiramente
ali se cumpra o destino maior de Portugal.
Quadro maravilhoso que sobressai
do cenário idílico da Serra de Sintra, a Aldeia do Penedo e a Capela de Santo António
são visita obrigatória para quem deambula pela Alma de Portugal. Ali se encontram,
num cruzamento sentido, as marcas maiores que fizeram coisa enorme deste país
tão pequeno.
Porque quem sabe entende.