por João Aníbal Henriques
Existem construções que transcendem o imenso valor que se associa ao
seu uso e que, pelas suas características intrínsecas, se impõem na paisagem
definindo com precisão a vocação das localidades onde foram construída. É o que
acontece com o Chalet Almeida Pinheiro, mais conhecido como Hotel Miramar, em
pleno coração do Monte Estoril…
O Chalet Almeida Pinheiro,
situado em pleno coração do Monte Estoril, é uma das peças mais emblemáticas da
arquitectura de veraneio em Portugal. Concebido para cumprir a dupla função de
ostentar a riqueza, o poder e a diferença da sua primeira encomendadora, uma
“excêntrica africanista” de acordo com a descrição do Engenheiro Almeida
Pinheiro que o construiu, e de servir como habitação de luxo para a mesma, a
casa apresentava uma volumetria excepcional, impondo-se na paisagem e no
registo de veraneio que caracterizava as casas existentes na sua envolvência.
De acordo com as descrições da
época, a dimensão do Chalet Almeida Pinheiro era de tal forma inusitada que a
casa fazia lembrar uma enorme praça de touros colocada estrategicamente dentro
de um grande e frondoso jardim que, encobrindo tenuamente alguns dos seus
detalhes, despertava a curiosidade e o interesse de quem por ele passava
naqueles tempos. Deixava implícita uma certa descrição, apesar de o apelo maior
seguir na linha da ostentação, apelando à imaginação e ao enleio.
E desde logo, quando ainda era
uma construção muito recente no autêntico emaranhado de egos que deu forma ao
desenho arquitectónico do Monte Estoril original, se transformou no cadinho
maior da identidade monte estorilense assumindo papel fulcral na definição
estética do que haveria de vir a ser aquela localidade enquanto berço primária
da vocação turística municipal.
Os principais elementos
definidores da importância arquitectónica do Chalet Almeida Pinheiro tiveram
uma função estética e decorativa.
A arcaria que suportava o
alpendre situado na fachada principal, encimada mais tarde pela propaganda ao
Hotel Royal e ao Hotel Miramar que o substituiu, recupera também ela a
formulação estética daquilo que mais tarde vem a ser a “Casa Portuguesa”. A
encomendadora, que teria enriquecido em África e que era de origens humildes de
uma das aldeias provincianas do interior Português, precisava avidamente de se
mostrar aos seus pares e, sobretudo, de o fazer de forma linear e
inquestionável. E a casa, repositório maior dos seus anseios, surge no Monte
Estoril do Século XIX como memória maior do velho solar de província que
assenta os seus alicerces em laços de sangue antigos e perenes cujas origens se
perdem nos princípios do próprio tempo…
Por fim, recriando-se enquanto
cenário enquadrador do alpendre profundamente prenhe dos valores ancestrais da
Portugalidade e do torreão altaneiro em guarda perante uma invasão que
simplesmente se ousava imaginar, o muro delimitador da propriedade rematava a paisagem
com um apelo quase rude às memórias da pedra solta de uma qualquer casa rural
na várzea sintrense. Naquela altura, como é evidente, poder-se-ia ter colocado
ali um muro de emparelhamento regular e com corte rectilíneo dando foco à casa
e cumprindo a função de segurança que um qualquer muro deve ter. Mas não foi
assim. Em linha com tudo o resto, o muro é também ele próprio elemento
estruturante da paisagem e reforço emblemático da força da casa no contexto do
Monte Estoril que estava a nascer. Pretendia transparecer a ideia de coisa
antiga e forte, em linha com a ambição social de quem o concebeu.
Num dos seus artigos mais
emblemáticos sobre o Monte Estoril, a Professora Raquel Henriques da Silva
caracteriza o esquema quase “esquizofrénico” do local para sublinhar o seu
carácter único e excepcional. De facto, o caso do Chalet Almeida Pinheiro, com
a sua imensa excentricidade e pujança, só podia ter surgido naquele local e
naquela época, num Monte Estoril onde tudo transbordava de romantismo e de sonho.
O carácter onírico da localidade, onde os telhados de duas águas aguardam
eternamente os nevões enormes que se sabe de antemão que nunca chegarão, e os
castelos medievais construídos já em pleno Século XX sem nenhuma funcionalidade
nem utilidade prática que não fosse a de servirem inocentemente de cadinho de
esperança para o carácter mas sonhador dos seus habitantes, sobrepõem-se a
todos os resquícios de lógica e de discernimento. Ali, num espaço de sonho em
que se sonha, tudo é de facto passível de acontecer e, em linha com esse
pressuposto, o custo de cada uma destas excentricidades é tido como um
investimento.
No Monte Estoril de 1899 o Chalet
Almeida Pinheiro é muito mais do que uma casa qualquer. É símbolo maior de uma
movimento arquitectónico recriado de raiz a partir daquele que será porventura
o primeiro masterplan Português. Aqui vale tudo e tudo faz sentido fazer, até
porque sendo palco de excêntricos, era simultaneamente uma ponte maior entre as
agruras da vida real e o sonho maior que todos afincadamente desejamos viver.
Foi esse pressuposto, mais do que qualquer preciosismo canónico que a
arquitectura de então pudesse ter, que fez desta uma localidade total e
completamente diferente. E foi essa diferença, marcada pela igualmente
diferente maneira de ali se viver, que recriou a identidade coesa, forma,
determinante e determinada que perdurou (contra tudo e contra todos) até época
muito recente.
Mas como todos os sonhos são
frágeis e inconsistentes, também este clima de quase-loucura que o Monte Estoril
teve o ensejo de desenvolver, se debateu com problemas estruturais que o
pragmatismo da vida normal sempre tem a capacidade de oferecer. E, logo na
abertura do novo Século, quando Portugal se envolveu nos períodos negros das
revoltas políticas e a Corte de sangue azul desapareceu para sempre, os
castelos de cartas que os sonhadores de outros tempos haviam ousado empreender,
desmoronaram-se sucessivamente ao sabor do um vento que rapidamente os fez
tremer.
E as casas, castelos e torreões,
despidos de utilidade prática, tiveram de ser reconvertidos e reconfigurados
perante a nova lógica funcionalista que acabava de nascer. Vendidos e
restruturados, acabaram quase todos por assumir novas funções e por desempenhar
papéis diferentes num Portugal novo que a Implantação da República acabou por
trazer. Como peças únicas que eram, e com custos de produção incomportavelmente
altos para a época de crise que o novo regime consolidou por muito tempo,
tornaram-se cada vez mais motivo acrescido de interesse por parte de todos
aqueles que desejavam deslumbrar-se com a pujança artística que estas
construções acabavam por ter.
Ao Monte Estoril, primeiro de
Lisboa e arredores e depois de todos os cantos e recantos do Mundo, vinham
muitos para passear nas ruelas pseudo-medievais, para se deslumbrarem com os
castelos fugazes e com os muros de pedra, e para apreciarem os jardins imensos
onde cresciam pretensamente livres espécies vegetais que haviam sido plantadas
ali depois de terem sido trazidas de origens inóspitas somente com o intuito de
fazerem diferença e de acentuarem o cenário de exclusividade que o Monte
Estoril conseguiu ter.
Nasce assim o turismo em
Portugal. E nasce no Monte Estoril porque ser aquele um local único no Mundo
inteiro. Nasce no Monte Estoril porque ali era possível usufruir dos bons ares
da praia, da vida excelente que se afagava com o tom azulado dos sangues dos
que ali viviam sempre, e também da paisagem marcante e marcada pela força bruta e inesperada de imóveis como este.
Quando em 1906 o Engenheiro
Almeida Pinheiro vendeu a sua casa a uma sociedade de empreendedores, nasce na
velha mansão o mítico Royal Hotel e em 1914, depois de se afirmar no contexto
da Primeira Grande Guerra, é novamente vendido a Ricardo Allen, Salvador
Villanova e Ventura Garcia que o adaptam funcionalmente a um novo registo de
hotel, e o rebatizam com o nome de Hotel Miramar.
Funciona assim, já perdido nas
suas origens mais remotas e no sonho inalcançado a velha africanista de outras
eras e de outros tempos, até 1975 quando é destruído por um incêndio.
Passaram-se muitas décadas desde
que o Chalet Almeida Pinheiro desapareceu fisicamente da praxis urbana monte
estorilense. Mas a pujança da sua força, o carácter enorme do seu torreão e o
enquadramento cénico dos seus muros ancestrais, sobreviveu até hoje, mostrando
que mais do que a sua funcionalidade, é a sua presença física que serve de
fulcro identitário maior da comunidade onde se insere. Apesar do estado
avançado de ruína, ele continua a fazer parte da estrutura cénica do Monte
Estoril que ainda temos.