por João Aníbal Henriques
Vive-se de contrastes em Piódão. O
azul do céu, reflectindo de forma insana o verde das escarpas da serra, abre
caminho para o negro do xisto, em contraste profundo com o branco e o azul celestial
da Igreja Matriz. É terra de todos e de ninguém, alcandorada nas lembranças
rudes da Serra da Estrela e nos sonhos inexpressivos das curvas e contra-curvas
desérticas que temos de atravessar para chegar até ela. Mas impõe-se à vista e
aos sentidos, quando sob a égide maior da Senhora que Concebe, se abrem as
janelas da Alma para um transbordar imenso do suor de Portugal. Está prenhe de
Portugal. Está plenamente cheia do contraste enorme que dá forma à Nação e que
à sua volta congrega a vontade maior de todos os portugueses. Uma preciosidade!
Miguel Torga, citado numa das
pedras lavradas que se encontram à entrada desta Aldeia Histórica de Portugal,
descreveu o Piódão como sendo o “ovo primordial de Portugal”. Ali, segundo o
próprio, reencontrou a essência maior de uma País que espartilha desde há quase
900 anos uma gigantesca Nação. O Portugal do Piódão não é aquele que vem nos
livros e nos enche as horas intermináveis das lições nas escolas. É um Portugal
suado e vivido, assente na interpretação da natureza e na fusão quase perfeita
entre a vontade de Deus, expressa na força física que a envolve, e a do Homem,
traduzida no azul quase grotesco que lhe acentua as formas.
As suas origens, perdidas no meio
das imensas nascentes de águas que fertilizam aqueles socalcos, fundam-se
directamente na pujança física do território em que se insere. As primeiras
comunidades humanas que ali se instalaram, algures nos idos longínquos do Neolítico
mais remoto, interpretaram o carácter úbere daquelas terras e nele alicerçaram
a sua vida e a sua sobrevivência numa rotina cíclica de interdependência sadia
que perdurou ao longo de milhares de anos e de centenas de sucessivas gerações.
É daí que vem, muito
provavelmente, a ligação mítica e mística aos mais ancestrais arquétipos
sociais e religiosos que mais tarde hão-de consolidar a própria Nacionalidade, eivados
da certeza (mais do que unicamente dos laivos periclitantes da Fé) de que a
Senhora da Conceição, Rainha e Padroeira de Portugal, era ali a força palpável
e viva que determinava a própria existência.
Em termos decorativos, a
formulação primordial de Piódão surge da confrontação aos opostos. O preto do
xisto, determinante por resultar do aproveitamento natural e consistente dos
recursos existentes, aparece aos nossos olhos sublinhado pelo azul cobáltico que
delimita as portas e janelas, como se se tratasse de uma quase humanização do
espaço, das coisas e das casas que ali foram sendo construídas. Mas o contrates
maior, sobressaindo em harmonia plena da paisagem de conjunto do povoado,
aparece em linha com a fachada inesperada e magnânima da sua Igreja Matriz
dedicada precisamente a Nossa Senhora da Conceição.
Sendo recente, porque o actual
templo que detém esta configuração somente desde o Século XIX, quando o Cónego
Manuel Fernandes Nogueira ali instalou o seu colégio de preparação para a formação
dos seminaristas e reformatou a velha igreja ao sabor de um estilo neo-barroco
que interpretou o sentir da população e o traduziu no monumento pujante de impacto
que hoje conhecemos, a Igreja Matriz de Piódão carrega consigo dois segredos
que ajudam a contextualizar e a perceber a própria povoação. Em primeiro lugar,
sabe-se que foi o estado de ruína eminente em que a igreja se encontrava que
determinou a intervenção do clérigo já mencionado que, segundo reza a lenda,
terá recolhido junto dos seus conterrâneos uma quantia insuspeita de dinheiro em
volume suficiente para aquela imensa construção. Por isso, no mesmo lugar e
provavelmente com contornos substancialmente diferentes, terá existido outro
templo cuja origem está situada em pleno Século XVII.
Mas, tendo a mesmo orago, uma vez
que existe ainda hoje uma imagem de Nossa Senhora da Conceição datada do Século
XVI, ela própria reinterpretava realidade mais antiga, como se a força da Fé
dos que ali habitavam fosse crescendo ao ritmo da passagem paulatina das gerações
que se iam sucedendo…
De qualquer maneira, os ciclos de
construção e de reconstrução do templo, mantendo a devoção original à Senhora
que Concebe, reforçam a convicção de que o culto que lhe dá forma se centra na
própria ancestralidade da ocupação do espaço, consolidado a partir de um
movimento de cristianização que consolida os saberes e que denota um reforço
permanente e sucessivo das certezas primordiais que caracterizam a própria comunidade.
A Senhora da Conceição, na sua origem assente na imagem do Crescente que tem
aos pés, carrega consigo a significância maior de uma tradição milenar. Mais do
que os dois mil anos de História do Cristianismo, esta é um alicerce simbólico
profundíssimo que reforça a certeza de que a natureza e os homens, quase sempre
em uníssono, são capazes de conjugar as suas existências num plano de
eternidade onde o sentido se perde no que somos, no que fazemos, no que dizemos
e no que pensamos.
Nossa Senhora da Conceição, orago
maior de um Piódão que não deixa indiferente ninguém que o visite, representa a
reconfortante certeza de que os ciclos são eternos e que a vida, que o peso do
corpo físico nos obriga a carregar durante um período muito curto de tempo, é
afinal um mero interregno num caminho sinuoso mas profícuo de eternidade!
Visitar o Piódão e conhecer a
Igreja Matriz de Nossa Senhora da Conceição é, assim, o mesmo que mergulhar de
forma profunda na Alma de Portugal. E o ovo primordial que Torga descreve, um
verdadeiro recomeço para todos aqueles que ousem perder-se por completo na
amálgama de emoções que este espaço desperta.
Vale a pena. Mesmo!