por João Aníbal Henriques
Os “Meninos da Graça” como é conhecida
em Évora a Igreja Renascentista de Nossa Senhora da Graça, são míticas figuras
Atlantes. E, cumprindo o desígnio maior de zelar pela memória de Portugal,
estão ali na qualidade de guardiões das quatro partes do Mundo descobertas
pelos Portugueses. Todo o templo, resquício inesperado do substracto místico e
mítico de Portugal, transparece em lendas e em mistério, rendendo homenagem
maior aos feitos enormes que noutras eras e noutros tempos caracterizaram este
País tão especial…
Considerada por muitos como o
mais antigo templo renascentista do Alentejo, a Igreja de Nossa Senhora da
Graça, situada no coração da egrégia cidade de Évora, é um dos mais
interessantes monumentos de Portugal.
Integrando o antigo Convento dos
Frades Eremitas Calçados de Santo Agostinho, a igreja que agora conhecemos foi
construída depois da instalação da Ordem em Portugal, no ano de 1511, com traço
de Miguel de Arruda e esculturas de Nicolau de Chanterene. Terá vindo ocupar o lugar de um templo de
menores dimensões e de pouca exigência arquitectónica que os frades construíram
naquele lugar logo depois da sua chegada a Évora, sendo provavelmente sido na
década de 1520 que se iniciaram as obras que lhe conferem o aspecto actual.
Integrando de forma sublime todos
os detalhes que definem o período renascentista em Portugal, a Igreja da Graça
leva quase ao extremo a sua inquietante demanda pelos símbolos maiores da
nacionalidade, apelando de forma directa ao alicerce raramente assumido do inconsciente
colectivo de Portugal. A temática marítima, em voga na época em que a igreja
foi edificada, cruza-se com as lendas maiores do Globo Terrestre, espécie de
brinquedo temático que se consagra por inteiro a Portugal, como se o Universo
todo conspirasse de uma forma global para canalizar para este recanto encantado
os destinos maiores da humanidade em geral. Resultam daí as escapadelas ao
ideário Atlante, numa sede quase mística do desconhecido e do inexplorado, um
pouco em linha com a mítica demanda do Santo Graal e, em Portugal, com a espera
eterna pelo Rei Desejado.
Este caminho, feito nas sombras
visíveis de uma sociedade ainda maioritariamente dependente dos equilíbrios e
das certezas medievais, assume especial relevo se nos reportarmos ao Alentejo
de então. A região, marcada de forma telúrica por uma dependência extrema
relativamente às agruras da natureza, sustenta o seu edifício simbólico no
tronco maior que dá relevo à inovação da Senhora da Graça, ou seja, àquela que contra
tudo e contra todos, se materializa na miraculosa capacidade de tudo fazer.
A Atlântida, continente mítico
elevada de forma eterna à plenitude maior do saber e da sabedoria,
consubstancia-se na Igreja da Graça através de toda a simbologia que dá forma
ao edifício. Mas também, porque o Céu e a Terra são ambos necessários para a
compreensão integral de Deus, nas práticas seguidas e cumpridas de forma
sentida pelos frades que ocuparam este convento durante muitas gerações. É a
eternidade, composta pela mistura integral entre o finito e o infinito, que nos
surpreende quando nos deparamos com a fachada granítica e imponente desta igreja.
Uma eternidade que é sustentada pelo conhecimento superior e pela sabedoria
daqueles que regressaram de um lugar diferente. O ideal celeste, condicionado
pelas necessidades próprias da vida terrena, resulta aqui numa amálgama de
símbolos que se interligam num plano de consciência que tem necessariamente de
estar alterada para ser verdadeiramente entendida e compreendida.
O ímpeto cenográfico da Igreja da
Graça, de carácter fortemente impactante na pujante vida cultural eborense da
época renascentista, dá corpo ao reforço deste movimento arquitectónico e
artístico em Portugal. Na sua evolução para o maneirismo, o templo congrega o
carácter humanista profundo que enforma a acção dos seus mecenas originais, El-Rei
Dom João III e o seu primo o Bispo Dom Afonso de Portugal. São eles, mercê da formação que tiveram no
contexto da Europa em que viveram, que canalizam para este espaço de Évora os
meios que permitem a construção de um tão vetusto templo. E com esse acto,
aparentemente singular, dão um contributo extraordinário para a viragem
cultural que definirá Portugal ao longo dos séculos seguintes.
A importância da Igreja da Graça
é, por isso, muito superior ao seu valor patrimonial. Ela é o testemunho mais
evidente da forma como Portugal, assente num conjunto de valores espirituais
profundamente difundidos por todo o território, foi capaz que os plasmar na sua
realidade física, social e política e, dessa maneira, concretizar o sonho
imenso dos descobrimentos. Atesta, numa linha de continuidade que nos carrega
até à actualidade, que o espírito transcende de facto a matéria, tornando
possíveis os milagres e enfatizando que as fronteiras são pouco mais do que
meros obstáculos que se interpõem durante a vida de cada um.
Única na sua formulação física e
patrimonial, mas também na mensagem que carrega, a Igreja de Nossa Senhora da
Graça, em Évora, é pilar axial essencial para compreender a Portugalidade.