por João Aníbal Henriques
Com uma História única que
resulta de um conjunto extraordinário de acasos, a Cidade de Setúbal mistura as
suas origens com a lenda, recriando um cenário onde o sonho e a realidade dão
origem a uma palete de cores que condiciona a realidade e promove uma forma
alternativa de ser, de estar e de viver a cidade.
A Igreja de Nossa Senhora da
Anunciada é um exemplo paradigmático desta realidade e, traduzindo de forma
muito eficaz a génese histórica de Setúbal, funciona aqui como uma espécie de máquina
do tempo que nos permite regredir ao longo de muitas gerações para podermos
perceber quais foram e como foram as várias eras que definiram a cidade que
hoje encontramos.
Quando a freguesia da Anunciada
foi criada, em pleno Século XVI, já a igreja existia e era de tal forma velha e
impactante que foi imediatamente transformada em Igreja Matriz. A sua
importância no casco antigo da cidade, provavelmente porque as suas origens sagradas
deverão ser anteriores à própria cristianização daquele território, foi
determinante na forma como urbanisticamente se construíram as casas, as ruas e se
definiriam os equilíbrios sociais entre Setúbal e as suas gentes.
Em termos arquitectónicos, a
Igreja de Nossa Senhora da Anunciada, com novo orago depois da reconstrução que
sofreu em virtude dos estragos provocados pelo grande terramoto de 1755 e a
partir daí consagrada à devoção do Sagrado Coração de Jesus, apresenta hoje
traços neoclássicos, com decoração barroca, que escondem a sua origem
primitiva.
Quando, ainda no Século XIII, uma
imagem de Nossa Senhora apareceu a uma pobre mulher que por ali circulava,
pedindo-lhe que fosse constituída uma confraria em seu nome, e que a partir
dela se instalasse naquele lugar um hospital para apoiar os mais necessitados, já
Setúbal possuía mais de 1000 anos de uma História pujante. Pelo mesmo desde a
ocupação romana, quando naquela zona se instalaram várias fábricas de salga e
conserva de peixe que era exportado para a Península Itálica.
A lenda de Nossa Senhora da
Anunciada de Setúbal tem, também ela, alguma coisa de estranho. É que, ao
contrário do que acontece com outras aparições congéneres, principalmente
aquelas que se prendem com a alimentação das populações que morriam à fome e
que geralmente se consagram a Nossa Senhora da Conceição, a história que se
esconde por detrás desta lenda prende-se com o fogo e com o poder dissuasor de
Nossa Senhora relativamente ao elemento destruir que ele representa.
Enquanto circulava pela praia à
cata de lenha para a sua fogueira, a pobre velha que dá corpo à lenda terá
trazido um feixe de madeiras que deitou imediatamente para a sua fogueira. Mas,
poara seu grande espanto, um pequenbo toro de madeira dos que ela tinha
apanhado junto do rio, saltava teimosamente para fora do fogo de cada vez que
ela teimava em pô-lo lá dentro. E a velha alertada por tão estranho
acontecimento, terá olhado com atenção para o madeiro e percebido que era uma
pequeníssima imagem da Virgem Maria que dessa forma parecia comunicar com ela.
Fácil se torna perceber, desta
maneira, que tal acontecimento causou alvoroço na cidade. E a imagem de Nossa
Senhora, anunciada pela velha a toda a gente como milagre maior que lhe
aconteceu, acabou por gerar uma devoção que rapidamente se alastrou pelas
gentes de Setúbal, potenciando a criação da confraria e, mais tarde, a
construção da igreja e do seu vetusto hospital.
Nas imediações desta igreja, como
se de um farol se tratasse, a vida seguia o seu rumo ligada às artes do mar e à
exploração do sal que era riqueza maior naquele Portugal.
O sal de Setúbal, pedra angular
da criação e desenvolvimento da cidade, era assim sustento e vida que dali se espalhava
por todo o império romano, num movimento porventura milagroso do qual derivava
uma forma alternativa de ser e de estar.
Provavelmente por esse motivo,
quando a Ordem de Santiago se instalou em Alcácer-do-Sal e em Palmela, Setúbal
conheceu o seu grande impulso populacional, para ali sendo enviados os recursos
que permitiam aproveitar condignamente e rentabilizar a imensa riqueza que lhe
era fornecida pelo Rio Sado.
Nossa Senhora Anunciada era,
enfim, o motor a partir do qual se organizavam todos os importantes pilares
definidores da vida na cidade e onde os mais necessitados encontravam o amparo
de que precisavam nos momentos de maior aflição.
Olhando para a História e para a
lenda que a acompanha, fácil se torna perceber o papel determinante que o dito
milagre tem na formatação identitária de Setúbal. E, também, a importância que
este espaço sagrado teve, tem e terá sempre na determinação daquilo que é a
identidade arreigada desta velhíssima capital do sal.
Como disse Jesus: “Vós sois o sal
da terra”. E em Setúbal, este sal que é vida, foi anunciado divinamente neste
local!