por João Aníbal Henriques
Marcada pelo ritmo austero da sua
fachada, o Solar dos Falcões, situado no coração do núcleo urbano consolidado
de Cascais, é um dos mais importantes e significantes edifícios da vila. Tendo
sobrevivido ao grande terramoto de 1755, quando os danos que sofreu não
impediram que tenha passado a ser utilizado como substituto da igreja paroquial
que, ali mesmo ao lado, havia sido bastante danificada pelo cataclismo, é um
dos mais antigos edifícios de Cascais, carregando consigo informações
essenciais para compreendermos como era a vila antes das grandes transformações
ocorridas a partir de 1870 quando Dom Luís I escolheu este local como estância
de veraneio.
De salientar, até porque é bem
demonstrativo desta importância, o papel que teve Manuel Rodrigues de Lima, o
arrematando da hasta pública que vendeu esta casa e a capela anexa em 1864, na
concretização desse projecto de trazer a corte para a vila. Esse seu
proprietário, num acto inusitado de entrega ao bem comum, constrói no terreno
do velho solar um magnífico teatro dedicado a Gil Vicente que, na magnificência
do seu projecto, contrasta de forma evidente com a simplicidade chã que
caracterizava Cascais naquela época. E, despertando nos seus contemporâneos a
estranheza por tão grandiosa obra num espaço tão desinteressante, depressa se
percebe que a mesma fazia já parte de um plano maior engendrado pelas mais
importantes e influentes personalidades da vila, das quais faziam parte o dito
Manuel Rodrigues de Lima mas também João de Freitas Reis e, principalmente, Joaquim
António Velez Barreiros, Visconde de Nossa Senhora da Luz, que com um espírito
muito empreendedor foram dotando a vila dos equipamentos necessários para que
ela pudesse vir a ser escolhida pelo monarca como destino para o final das suas
férias de Verão.
O Solar dos Falcões e a Capela de
Nossa Senhora da Nazaré, em conjunto com o que resta do seu antigo jardim, apresentam
a formulação urbanística que definiu o nascimento e crescimento do casco antigo
da Vila de Cascais. A simplicidade dos volumes, contrastando de forma evidente
com a riqueza da sua decoração interior, é demonstrativa da influência que teve
a arquitectura popular tradicional da região saloia naquilo que foi a
consolidação da vila enquanto cerne de afirmação do poder municipal.
O provável instituidor da capela
e possível construtor do solar, terá sido Bernardino Falcão Pereira e sua
mulher Antónia Felícia Gameiro Feyo que, algures ainda no Século XVII,
assumiram este espaço como morada para a família e como jazigo privado. Foram eles quem, depois de um processo de
instalação no território municipal muito marcado ainda pela exploração dos
recursos primários da vila, deram origem a uma linhagem familiar que foi
determinante na recriação do Cascais da Corte cujas repercussões se sentiram até
à actualidade. Pedro Falcão, o saudoso autor da mítica obra “Cascais Menino”
era um dos orgulhosos descendentes destes primeiros Falcões, fazendo eco deste
legado nas suas obras e nos vários momentos que determinam a sua profusa vida
de cascalense.
Em termos artísticos o Solar dos
Falcões possui um importante conjunto azulejar que, com data de 1729, foi
pintado pelo Mestre António de Oliveira Bernardes e centra-se numa pintura
figurativa de Nossa Senhora da Nazaré a ressuscitar um homem. Os símbolos
marianos, que enchem a Capela-Mor, acompanham várias figuras infantis com
ligação directa às litanias de Maria, compondo um quadro que complementa de
forma evidente a abordagem mariana existente no vizinho Convento de Nossa
Senhora da Piedade e o dogmatismo católico que caracteriza a abordagem
pragmática expressa de forma visual na Igreja Paroquial de Nossa Senhora da
Assunção situada ali mesmo ao lado.
Em termos históricos, e para além
da forma como o conjunto monumental evoluiu ao longo da sua longa existência,
importa sublinhar a provável utilização desta casa para a assinatura da chamada
“Convenção de Sintra”, na qual o General Francês Junot assina a sua rendição
perante as tropas inglesas que na mesma altura estavam aquarteladas no edifício
dos Condes da Guarda, actuais Paços do Concelho. Importante é ainda, entre 1741
e 1753, a breve ocupação do imóvel por padres da Ordem de São Francisco de
Paula que pretendiam utilizar a casa para ali instalar o seu convento em
Cascais, e do qual desistiram depois de se aperceberem da existência de
condicionantes à posse plena da propriedade.
Estando a capela classificada
desde 1978 como Imóvel de Interesse Público, e o solar como de Interesse
Municipal desde 2009, o conjunto composto pelos dois monumentos faz parte
integrante da matriz identitária de Cascais e recupera os valores mais
importantes da génese de índole rural desta vila piscatória.
Integrada no quarteirão onde o
Teatro Gil Vicente impera visualmente, dando o mote para que se perceba como
evoluiu historicamente a vila desde meados do Século XIX até à actualidade, o
Solar dos Falcões e a Capela de Nossa Senhora da Nazaré serão porventura as
mais abrangentes peças do património cascalense.