por João Aníbal Henriques
A cidade de Setúbal, com a sua
origem provavelmente pré-histórica, tem uma relação directa e permanente com o
Rio Sado. O alimento das suas gentes, bem como a prodigalidade dos seus
engenhos, ofereciam condições extraordinárias de vida aos primeiros
assentamentos humanos que escolheram este local para viver. Por esse motivo, e
também porque o bem-estar geral providenciado pela abundância de recursos não trazia
grandes exigências a quem ali morava, o burgo foi crescendo ao sabor das
necessidades quotidianas, sem grande ensejo de uma pujança que de nada servia
nem acrescentava absolutamente nada ao esforço permanente de angariação de
sustento que determinava as leis da vida.
A invocação a Nossa Senhora das
Graças, provavelmente de origem muito mais recente, é ela própria tradutora
desta ligação milenar que determina a intercessão da Virgem Maria no dia-a-dia
dos habitantes. Na sua faceta de defensora dos seus filhos humanos, a Senhora
das Graças é a personificação adaptada da Imaculada Conceição de Maria, a Nossa
Senhora da Conceição que é simultaneamente Protectora e Rainha de Portugal. Concebida
sem pecado, a futura Mãe de Deus – e por extensão mãe divina de todos os homens
– faz parte da matriz identitária da grande maioria das cidades portuguesas,
carregando consigo um laivo de Fé que é transversal e que, até em última
instância, justifica a independência política e o sucesso tantas vezes
alcançado por Portugal.
No caso de Setúbal, em
particular, a actual Igreja de Santa Maria da Graça é o resultado da
reconstrução concretizada no Século XVI com traço do Arquitecto António
Rodrigues. A magnanimidade do projecto, assente na força telúrica emprestada à
sua fachada maneirista pelas duas enormes torres sineiras, é demonstrativa da
pujança que tinha a sociedade sadina durante esse período áureo dos
descobrimentos portugueses, nos quais o porto de Setúbal, bem como a linha de
navegabilidade que o Sado definia e que era essencial para a ligação aos
mananciais agrícolas daquela zona do Alentejo (veja-se p.e. a História da
Herdade da Palma em Alcácer do Sal), acabavam por ser determinantes na
capacidade de produzir e de comercializar que eram essenciais para suportar estruturalmente
a estrutura dinâmica das próprias descobertas.
Digna de uma nota especial, não
só pelo impacto que tem neste projecto, mas também porque simbolicamente ajuda
a perceber essa situação verdadeiramente extraordinária no contexto do que foi
Setúbal durante esse período virtuoso da História de Portugal, é a intervenção
de Mestre José Rodrigues Ramalho na criação da Capela-Mor da igreja, em talha
dourada, que em 1697 foi acrescentada ao templo original.
Nas suas origens documentalmente
mais antigas, até porque provavelmente existirão pré-existências neste espaço
que permitirão estender a sacralidade do lugar a mais alguns séculos, a igreja
original que antecedeu estruturalmente a actual terá sido sagrada no dia de
Nossa Senhora da Assunção no ano de 1245.
Em plena Idade Média, terá sido a
Igreja de Santa Maria da Graça a definir o perímetro urbanístico da cidade,
dela dependendo o surgimento dos primeiros bairros que estenderão a ocupação
urbana até ao local onde actualmente se encontra a Praça Bocage, a Poente deste
núcleo inicial.
Magnífica no seu enquadramento
simbólico, e eminentemente tradutora da significação mais profunda da Cidade de
Setúbal no contexto nacional, a Igreja de Santa Maria da Graça é hoje um
testemunho muito importante que nos permite compreender melhor a interacção
existente entre os recursos disponíveis para uma determinada comunidade humana
e a consolidação da sua estruturação identitária a partir de uma concepção do
sagrado que lhe define os contornos mais profundos.
As sombras impostas à sua volta
pela altura determinada pelas suas torres, ainda hoje significa para os setubalenses
a cobertura provida pelo manto de Nossa Senhora enquanto padroeira maior da
cidade e de Portugal.