quinta-feira

Cascais em 1879: um Portugal a fingir...





Em 1879 tudo mudou em Cascais. Com a chegada da Corte e da Família Real, a vila ganha uma nova paisagem urbana e vê os seus hábito sociais profunda e radicalmente alterados. Mudam-se os tempos... mudam-se as vontades...

por: João Aníbal Henriques

Tudo é ilusão nesta terra única em Portugal. 

Em Cascais iludiam-se os pergaminhos através de apelos nem sempre bem conseguidos ao bom gosto e à vida requintada. Lutava-se, muitas vezes corpo a corpo, por impor as regras e os costumes que de muito longe se importavam. O resultado, quase sempre inglório, traduzia-se numa feroz incapacidade para tornar verdadeiro o dia-a-dia que aqui grassava. As senhoras, oriundas da mais ilustre aristocracia, deambulavam com os seus trajes de gala por entre as redes de pesca sujas e com os pés enterrados no profundo areal. Fingiam-se confortáveis e bem. Fingiam-se preparadas para enfrentar a dura realidade de um Portugal muito atrasado onde as discrepâncias entre a vida quotidiana das pessoas e o dia-a-dia na capital era gritante, preocupante e abissal. Fingiam sorrisos quando se cruzavam umas com as outras ou quando, mercê do acaso e da sorte, encontravam em pleno passeio algumas das figuras mais relevantes da corte de então. Até o Rei ou a rainha, com muita sorte, se podiam encontrar nas ruas de Cascais. E elas fingiam. Fingiam sempre para a eventualidade de terem um encontro igual e de, nesse momento, poderem curvar-se perante tão excelsas figuras que eram o modelo da sociedade de então.

Mas nessa altura os pescadores também fingiam. Dedicavam-se a servir os senhores e tentavam portar-se à altura dos costumes que eles traziam consigo da capital. Abandonavam as suas casas e moravam em barracas precárias para ganharem algum dinheiro durante o período estival. E fingiam que era sempre assim, que as casas não eram as suas, e que aqueles senhores que vinham com o Rei eram iguais ao cliente habitual. As mulheres, cientes do seu papel na economia do casal, lavavam a roupa, vendiam o peixe e comentavam os vestidos, as maneiras e os modos desta gente tão especial. E também fingiam. Fingiam-se importantes perante os fingidores que lhes ocupavam as casas onde elas passavam o seu Natal. Fingiam todos, afinal.




E o contra-senso imperava. Quem fingia menos era precisamente o Rei e a Família Real. Instalavam-se na Cidadela de Cascais, precariamente adaptada a residência real mas não o faziam para fingir nada de especial. Dom Luís, primeiro, e D. Carlos, depois, gostavam mesmo de Cascais. Gostavam do mar, das ondas, do clima, do peixe, dos barcos e da praia. Dom Luís refugiava-se nos seus estudos e nas prospecções. Estava em Cascais para poder estar próximo do mar. Morreu assim, a contemplá-lo. Dom Carlos gostava de tudo o resto. Gostava do mar também, mas não perdia uma ocasião para andar livremente por Cascais, sem escoltas, seguranças ou quaisquer outros cuidados. Fingia um pouco também. Fingia que não era ninguém importante e fingia que era seguro perder-se assim conversando aqui e ali com os pescadores de Cascais.

Nessa altura não se fingia. Perante o Rei todos eram como eram… pois se ele era assim também.

Mais um contra-senso para a Estória da região. Porque motivo não fingia ninguém perante o Rei e fingia-se sempre que ele virava costas e se dedicava ao mar? Possivelmente porque só assim se compreende a vida da corte e o mundanismo que atrai a atenção e transporta consigo o brilho do glamour que todos desejam.