por João Aníbal Henriques
Um dos mais ilustrativos exemplos da forma como as casas e os espaço influenciam de forma concreta as pessoas é o edifício Luís Vergani, situado na Rua de Nice, no Estoril, onde desde há mais de meio
século funciona a conhecida e reconhecida Pastelaria Garrett. Tendo ali
funcionado originalmente o Hotel Paris, faz parte do conjunto de edificações
que serviam de apoio aos Banhos do Viana e que, depois de terem sido
substituídos pelas modernas unidades hoteleiras, acabaram por readaptar as suas
funções e por manter-se activas no seio da nova dinâmica urbana da povoação.
O
prédio, que ainda hoje se encontra figurativamente próximo daquilo que era
naquela época, trás consigo as memórias vividas de um tempo em que o Estoril
ainda não era elegante e em que surgia sempre relacionado com as enfermidades
que buscavam a cura através dos banhos. A ocupação do mesmo pela pastelaria,
que desde há muito tempo assumiu o seu carácter de pedra basilar da melhor
sociedade Estorilense, centra em si próprio o cerne da História moderna do
Estoril. Aos fins-de-semana, logo pela manhã para o pequeno-almoço e ao final
da tarde para o chá, a Pastelaria Garrett enche-se de Estorilenses que ali vão
para verem e serem vistos, trocando os cumprimentos que tantas vezes
condicionam os equilíbrios políticos e sociais da região e mesmo de Portugal.
Há muitas décadas atrás, ainda antes do seu bolo-rei ter ganho a fama que faz
com que actualmente, na quadra de Natal, seja comum ver na Rua de Nice filas de
muitas centenas de metros de gente que pacientemente aguarda a sua vez para
adquirir aquela que é considerada como uma das melhores iguarias de Portugal,
eram os queques ainda quentes que faziam as delícias de quem andava por lá. Os
queques, bonitos e amarelos que saíam dos seus fornos, eram comidos ao
pequeno-almoço pelos filhos das melhores famílias do local e que normalmente
antecediam a entrada no comboio que os levava ao liceu, ao trabalho ou à
empresa situada em Lisboa. Eram, desta forma, os queques da linha, adoptando um
designativo que ganhou força social e que passou a descrever também os meninos
bem comportados e bem penteados que do Estoril chegavam a Lisboa através da
linha do caminho de ferro… Os queques da linha, de bons modos e boas maneiras,
são o repositório integral e total da genialidade de Fausto de Figueiredo,
conjugando a linha de comboio, as acessibilidades a Lisboa e a própria
formulação urbana e especial da estância com a criação de uma sociedade nova e
moderna que suportasse o nascimento de um novo Portugal.
Os
comportamentos dos “meninos da linha”, apelidados de “queques”
pelos que noutras partes da região de Lisboa os viam chegar de comboio sempre
aprumados e muito bem-educados, nascem precisamente da capacidade que aquele
empreendedor, através da sua Sociedade Estoril Plage, teve de promover os
relacionamentos através da conjugação de diversos factores associados ao seu
espaço.
Como
facilmente se verificará ainda hoje, e que infelizmente a história mais
recente de Cascais tão tristemente comprovou, teria sido mais lógico e
financeiramente significante que Fausto de Figueiredo urbanizasse o Estoril a
partir da linha de comboio e da estação. Os terrenos que reservou para jardins
e a largura das avenidas que os abraçam, fechando os relvados numa espécie de
espaço particular pensado à semelhança de uma casa ou de um lar de família,
poderiam ter sido enchidos com lotes de construção que renderiam muitos
milhares de contos a qualquer promotor imobiliário. Mas Fausto de Figueiredo,
tal como os seus visionários e sonhadores antecessores haviam ousado fazer no
Monte Estoril, teve a capacidade genial se alargar o seu horizonte temporal e
de vislumbrar no futuro os frutos da sua planificação no presente. Os jardins
do casino e o conforto urbano que ofereciam, associado à proximidade da estação
e na facilidade de acessos a Lisboa, promovem a vida ao ar e as caminhadas.
Nada mais natural, para os capitalistas ricos que viviam nos lotes urbanos que
envolviam o Estoril, do que saírem de casa a pé em direcção à estação. Nas
caminhadas matinais que os levavam aos queques da Garrett e depois ao comboio
que em pouco mais de vinte e cinco minutos os levava a Lisboa, depressa se
foram conhecendo, reconhecendo e estreitando laços de amizade e vizinhança
transformando uma povoação completamente nova, construída de raiz para gente
sem raízes comuns que pudessem partilhar e que suportassem a criação de
vínculos de uma identidade sã, num Estoril onde quase todos são uma família
constituída artificialmente pelo promotor, mas sólida nos vínculos que no seu
seio vão criando.
Os
jardins do casino, confortáveis, elegantes e apetecíveis numa terra onde são
raros os dias de chuva e para os quais o frio nunca vem, são o local onde
naturalmente passeiam as senhoras e os filhos dos capitalistas que trabalham em
Lisboa e que, não trabalhando elas, ali gastam as suas tardes entretendo os
filhos e partilhando também elas um queque e um chá na vistosa Pastelaria
Garrett. As crianças crescem em conjunto, partilhando diariamente aqueles
jardins que sendo públicos quase parecem ser uma extensão da casa deles, e no qual
desenvolvem laços onde a filiação conta menos do que as amizades que se vão
impondo de forma sã.
Nasce
assim um Portugal moderno, atractivo e simpático, onde a cidadania e a
identidade surgem bem vincadas e em que os costumes se assumem que devem ser diferentes.
As crianças, pulando e rindo em brincadeiras pueris por entre as palmeiras, os
tamarindos e as demais espécies exóticas que enchiam o Estoril, vão ouvindo a
partilhando as conversas das mães no seu dia-a-dia despreocupado. Nas festas de
aniversário, nos jantares de amigos, nos bancos do Colégio João de Deus e mais
tarde dos Salesianos, vão consolidando os laços de família e recriando uma nova
forma de viver em comunidade. Mas passa pela cabeça a alguém cuspir para o chão
ou dizer palavrões dentro da sua própria casa? É evidente que não. E o Estoril,
com os seus espaços urbanos excepcionais, é como se fosse a casa de cada um
deles, que se vão habituando a um comportamento tendencialmente diferente
daquele que caracterizava a juventude noutras zonas de Portugal. E se as mães,
em conversas longas ou em torno de um queque e um chá, se vão demorando por
ali, partilhando com as crianças o processo natural do seu crescimento e dessa
forma criando afinidades, como hão-de-ser chamadas pelos mais novos? Senhoras
donas? A gente que está tão próxima? Que é a mãe do meu melhor amigo e que me
viu crescer? Aquela senhora que mantém sempre aberta a porta de casa para que a
criançada Estorilense por ali se espraie partilhando brincadeiras e o mistério
agradável desta vida suave? É evidente que não. Não o sendo em ternos
sanguíneos, são-no efectivamente por proximidade afectiva… são as tias do
Estoril que, como os meninos da linha, darão fama a uma terra que se constrói
através de um processo sociologicamente muito especial e o tornarão num espaço
que, visto de fora, é diferente, agradável, sempre certinho e muito bem
educado…
E é novamente Ramalho Ortigão, nas mesmas
“Praias de Portugal” que atrás citámos que explica como vai ser o Estoril,
cerca de cinquenta anos antes de Fausto Figueiredo ter começado a sonhar com
uma estância balnear excepcional, e de os meninos da linha, com a sua muito
própria de ser e de estar, terem começado a encher os jardins com as suas
brincadeiras infantis: “O sindicato de Cascais propõe-se transformar o lindo
arrabalde do Estoril, onde junto da praia há uma rica nascente de água termal,
em vila de banhos e de águas no moderno tipo elegante de Wiesbaden, de
Trouville ou de San Sebastian. (…) Desde que se decidiu para todos os efeitos
que isto é um alegre desfazer de feira, que depois de nós pode vir o dilúvio
quando for servido, porque a gente vai acabar com o resto que há para perder o
mais velozmente que se possa, - desde que esta decisão se tomou por acordo
geral e a contento do maior número – o Estoril-les-Bains, tornou-se para nós
uma necessidade social. A meia horas de Lisboa, por um caminho-de-ferro de luxo
na margem do Tejo, Estoril-les-Bains com o seu grande estabelecimento de
banhos, com o seu casino, com as suas salas de ópera e de concertos, com as
suas roletas, com os seus pavilhões enigmáticos, com os seus cottages
misteriosos, e com os seus camarões permanentes em gabinete reservado, é um
imprescindível complemento da civilização que felizmente desfrutamos.”