por João Aníbal Henriques
Sendo inquestionável que a
liberdade é um valor civilizacional e que qualquer ataque que contra ela seja
perpetrado põe em causa o humanismo em que ainda vivemos, o vil ataque contra o
semanário francês “Charlie Hebdo” desencadeou um conjunto absolutamente
inusitado de reacções dando forma a um exercício de hipocrisia transversal que
é inaceitável num mundo verdadeiramente democrático como aquele que defendemos.
Na manifestação solidária de
Paris, como também noutras que se espalharam pelo mundo fora, líderes de vários
países viraram costas às discordâncias e gritaram em uníssono que todos eram
Charlie. De todos os continentes, com crenças diversificadas e religiões por
vezes antagónicas, houve unanimidade na condenação ao terrorismo e ao que
aconteceu na redacção do jornal francês.
Mas esqueceram-se hipocritamente
de várias coisas essenciais. Esqueceram-se que a liberdade enquanto valor
absoluto não pode sobrepor-se a outros valores que, como ela, são essenciais na
corporização do mundo que queremos. Liberdade sem responsabilidade e sem respeito
transforma-se desde logo numa arma terrível que uns tantos, à sua sombra, não
deixarão de utilizar contra aqueles que pensam de maneira diferente. Liberdade
sem conhecer, perceber e assumir as diferenças entre os homens, entre as suas
crenças, entre os seus usos e costumes e entre o conjunto de valores que
enformam a sua identidade, é um exercício totalitário que assenta no controle
da vontade alheira. Liberdade sem transparência e honestidade, é um mero lençol
que vai cobrindo os males que se fazem e impedindo a comunidade de os conhecer.
E no Sábado, na enorme
manifestação e que encheu televisões e jornais no mundo inteiro, os líderes
vieram de todo o lado e deram os braços para se solidarizarem com as vítimas do
semanário francês. Mas esqueceram-se que, virando as costas aos pilares
primordiais que sustentam a própria liberdade, estão com este seu acto
hipócrita a distorcer a realidade e a impedir o mundo de progredir livremente.
Nestes últimos tempos têm sido
infelizmente muitos e inaceitáveis os actos de violência contra a humanidade
que têm vindo a acontecer. Por todo o Médio Oriente, na Palestina, em Israel,
na Turquia, na Ucrânia, na Síria, no Paquistão, no Egipto e em muitos outros
locais, houve terroristas que mataram gente a coberto da pretensa defesa da
liberdade ou de um culto qualquer.
E que eco tiveram ou têm todas
estas desgraças que estão acontecer? E que impacto vão ter na definição das
políticas por esse mundo fora e de que forma vão ajudar a transformar a
humanidade tal como a conhecemos? Nenhum. Praticamente!
E não tiveram porque em Paris se
reuniram os líderes que confundiram religião com terrorismo. Porque em Paris
todos deram os braços esquecendo e fazendo esquecer o que nos seus países
continua a acontecer. Porque em Paris
todos se abstiveram (ou foram incapazes) de falar sobre o respeito, a
responsabilidade e sobre o conjunto de princípios basilares do humanismo que
eles próprios são incapazes de ter. Hipocrisia simplesmente…
Valeu-nos uma vez mais o Papa
Francisco, líder dos Cristãos Católicos e que cada dia que passa se vai
transformando progressivamente no fulcro que o mundo precisa de ter. Sem
encenações, sem moralismos fajutas, sem medo de ferir susceptibilidades
daqueles que dão os braços por valores que nem eles próprios têm coragem de
verdadeiramente defender, foi livre ao explicar o que se passou no semanário “Charlie
Hebdo”.
Não é de religião nem de
liberdade de imprensa que se trata. Não se trata de Cristãos, Muçulmanos ou Judeus.
Trata-se de bandidos que em Paris, como no Médio Oriente e nos espaços que
atrás referimos, cometem crimes contra toda a humanidade de uma só vez.
Para que o mundo possa ser
verdadeiramente livre, e todos possam viver acreditando naquilo que quiserem, é
preciso acabar com hipocrisias como esta.