por João Aníbal Henriques
D. Simão do Santíssimo Sacramento Pedro Cotta Falcão
Aranha de Sousa e Menezes (Cascais 1908-2000) foi a personagem mais
importante da sua obra-prima “Cascais Menino”. Não tanto por ter dela feito
parte, ao longo das deambulações tantas vezes anacrónicas que vão enchendo estas
páginas extraordinárias sobre a sua vila natal, mas mais por terem sido os seus
olhos de menino o principal instrumento que utilizou para captar os resquícios
mais profundos da Alma de Cascais.
Década e meia depois da sua morte, quando em Cascais já
são muitos aqueles que nunca se cruzaram com Pedro Falcão nas suas sempre
polémicas intervenções em defesa desta terra, é notória a falta que faz o
discernimento e a capacidade crítica que o escritor-artista tinha para
interpretar a realidade local.
O Cascais onde ele nasceu, cresceu, viveu e morreu é
intemporal e, tal ele repetia sistematicamente, mantém-se sempre menino na sua
incapacidade de se olhar de frente… é um Cascais que se sente, que se intui e
se adivinha, mas que é impossível de descrever. É um Cascais substancialmente
maior do que as casas e as ruas, os becos e as vielas, os palacetes e as
grandes famílias que neles viveram, ou mesmo que as muitas estórias que dão
corpo à sua longa História. É um Cascais que cruza utopia e realidade,
esponjando as suas redes mais rudes sobre a mais subliminar e requintada
essência. Neste Cascais, que Dom Simão Aranha personifica durante toda a sua
vida e que enche a sua obra, reis e pescadores partilham um palco comum onde os
dramas e as desventuras da vida caminham lado-a-lado com as alegrias dos vários
quotidianos que as eras e os tempos nos vai deixando.
Defendia o escritor que o tempo não fazia sentido em
Cascais e que as personagens desta terra, as suas casas e as suas vidas se
eternizam numa espécie de memória-comum a todos os Cascalenses. Para ele, gente
como o pescador João Ruço, o Rei Dom Carlos, o Visconde de Athouguia ou a
Menina Mariquinhas, não podem morrer. Porque se assim acontecesse seria sinal
de que estava a morrer também aquela aura mística que desde há tanto tempo caracteriza
lá fora aquilo que os Cascalenses sentem cá dentro no seu peito. Este é um
Cascais riquíssimo de todas as questiúnculas e divergências que compõem o devir
diária de uma qualquer povoação Portuguesa, mas também um espaço onde os laços
de união fraterna e universal dão corpo a uma comunidade profundamente
arreigada e coesa.
O Cascais Menino é o cimento que vai juntando as
pedras para formar o edifício onde vivemos. Para eles contribuem todos os que
são Cascalenses, independentemente de cá terem nascido ou não, ou de cá terem
chegado somente em época recente. Porque para Pedro Falcão o ser Cascalense é
uma condição superior ao que está escrito na certidão de nascimento, dependendo
muito mais dessa capacidade quase infantil de amar esta terra do que de
qualquer outro pressuposto ditado pelos acasos que vamos vivendo. Por isso,
existem Cascalenses que somente por cá passam as suas férias, da mesma forma
que existem outros cá nascidos, que cá moram e que cá hão-de morrer que nunca
alcançaram o epíteto de verdadeiros Cascalenses…
No passeio deste Domingo, organizado pela Academia de
Letras e Artes e pela Fundação Pedro Falcão e Yanrub, mergulhámos literalmente
nos entrefolhos profundos desta Cascalidade que Pedro Falcão nos deixou nas
palavras que teve a arte de escrever. E é quase dilacerante a certeza com que
ficamos de que ele teve razão naquilo que teve a coragem de defender.
Cascais precisa da pureza do olhar de uma criança para
ser entendido verdadeiramente. Necessita com avidez de se perder nos conceitos
redutores do tempo e do espaço para que, bem alicerçado nos valores únicos que
corporizam o seu passado, possa enfrentar estruturadamente o futuro, oferecendo
aos Cascalenses a alegria de saberem que fazem parte de um lugar tão especial
quanto este.
(Fotografias gentilmente cedidas por João Barata, Manuela Barreto, Tó Cortez,
João Pedro Amorim e Luís Athouguia)