O cataclismo que se abateu sobre
Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755 deixou um rasto de destruição na Vila e no
Concelho de Cascais. O terramoto e o posterior maremoto, foram acompanhados de
incêndios e muitos dos principais edifícios que existiam foram completamente
destruídos.
A face urbana da Vila de Cascais,
com a monumentalidade própria de uma pequena vilória piscatória, sofreu enormes
alterações e, mercê dos muitos interesses instalados nesta terra, terá sido porventura
o terramoto o embrião da primeira operação de especulação que Cascais conheceu…
De facto, as Memórias Paroquiais,
bem como as respostas dos reitores das igrejas às questões levantadas pelas
autoridades depois do terramoto, apresentam-nos informações muito úteis para
conhecer e compreender o que então aconteceu em Cascais. A menção à antiga
torre-relógio, que desapareceu nessa manhã fatídica, e a organização espacial
dentro das muralhas do velho castelo, estão bem expressas nas palavras do
pároco de então: “Está esta vila sem relógio porque este, e sua grande torre
feita pelos mouros, que sefes em cinzas. O palácio dos marqueses de Cascaes uq
era de hua excelente perspectiva, e de exquisitas pinturas, com hua bella
ermida, desconhecesse tudo pelo que foi, e já não hé (…). Nesta freguesia há hu
castelo, cujo hoje está todo cheio de moradores e para nada serve mais, porem
ahinda selhe conservão alguas amejas, cujo fica para abanda da ribeira, pegado
com os palacios dos marqueses de Cascaes”.
Também Frei António do
Espírito-Santo, um dos frades carmelitas do Convento de Nossa Senhora da
Piedade (actual Centro Cultural de Cascais), dá-nos conta do estado do castelo
após o terramoto de 1755: “cahio a torre com o seu mais especioso relógio nas
sonoras vozes do seu sino, que fica olhando para norte, e matando 22 pessoas”.
Esta torre, bem identificada em
muita da cartografia antiga que se conhece, corresponderia à torre que se
situava na parte Nascente do Castelo, com frente para a área do antigo Rossio.
Teria planta redonda, em linha com a tradição arquitectónica deste tipo de
edifícios, facto ainda visível nas fotografias tiradas no início do Século XX
por João da Cruz Viegas, D. António de Castelo-Branco e pelo Visconde de
Coruche. De salientar que alguns dos torreões do antigo castelo, marcando os
eixos que deram forma ao núcleo urbano inicial da Vila de Cascais, subsistiram
até aos anos 60 do século passado, quando foram demolidas no âmbito do surto de
construção que assolou Cascais nessa época.
Em termos religiosos, eram vários
os edifícios que existiam em Cascais neste final do Século XVIII. Mas a maior
parte, mercê das agruras do cataclisma, acabou por ficar muito danificado ou
mesmo completamente destruído.
De acordo com o testemunho do
Reitor da Igreja Matriz de Cascais, Padre Manoel Marçal da Silvejra, ao
responder em 1758 aos inquéritos paroquiais, nada sobrou do terramoto e o que
se manteve de pé estava em tais condições que a ele lhe parecia que mais valia
destruir para construir novas edificações de raiz do que proceder ao seu
restauro: “(…) a villa ficou toda arruinada até ao chão. Não há caza, wur ou
não cahisse em terra, ou não ficase abalada, ameaçando ruína. Os templos, a
ponte, a cidadela, e os eus quartéis, tudo está demolido, e feito em pó. A
major parte da villa haita ahinda em barracas fora, e dentro do destricto, a
ponte está com hu só arco em pee, e senaõ passa po rella, sem que se reparasse ahinda
nada, somente alguas czas setem levantado, poucas, ao mesmo tempo, que outras,
com as tempestades e ventos, se tem acabado de postrar”.
Do reitor da Freguesia da
Ressureição, a segunda freguesia de Cascais e situada no espaço extra-muros,
recebemos a informação de que foi esta uma das mais afectadas freguesias do
país com a catástrofe do terramoto de 1755: “De todas as terras foi esta aq. Experimentou
mayor ruina (conforme dizem todos) por causado ditto terramoto, pois todos os edifícios
serruinarão, e quazi todos cahiram, e algum q. nan cahio de todo ficou
inahabitavel, mas ao prezente is se acham muntos deles reedificados”.
Mas, se é certo que a destruição provocada
pelo terramoto foi enorme, certa é também a dose de exagero patente em todos
estes documentos, explicável possivelmente com a necessidade de chocar quem os
lê-se para sensibilizar o poder nacional para a necessidade de recursos que
Cascais sentia para proceder à sua recuperação urbana. De facto, tendo ruído a
Igreja da Ressurreição, que se situava sensivelmente onde actualmente se
encontra a estação de comboios, muitos outros monumentos civis, militares e
religiosos se mantiveram de pé o foram reconvertidos e/ou recuperados e ainda
hoje podem ser apreciados na Vila de Cascais.
A Igreja de Nossa Senhora da
Assunção, por exemplo, uma construção de meados do Século XVII que resistiu à
força do terramoto, foi bastante alterada no seu exterior tendo sofrido várias
alterações que lhe conferem a imagem que hoje apresenta. Na sacristia e no arco
que suporte o coro, ainda são visíveis as sequelas do cataclisma, ao lado com
uma pequena inscrição que informa que o templo havia sofrido obras de restauro
em 1720 à custa dos irmãos pescadores.
Mais à frente, e para além dos
muros antigos do castelo, a Cidadela de Cascais e a Fortaleza de Nossa da Luz
resistiram ao terramoto, tendo acontecido o mesmo com o Convento de Nossa
Senhora da Piedade que, já no Século XIX, foi comprado em hasta pública pelo
Visconde do Gandarinha que o adaptou a residência de veraneio. Quando essas
obras foram efectuadas, estavam ainda em estado razoável de conservação a
antiga sala do capítulo, a capela, o claustro, a cisterna e mesmo o friso de
janelas viradas a Sul que ainda hoje se mantém.
Da mesma maneira, e para além das
pequenas capelas de Nossa Senhora de Porto Seguro e de Nossa Senhora da
Conceição, sobreviveram ainda as capelas de Nossa Senhora da Vitória, a Igreja da Misericórdia e a Igreja
e Nossa Senhora dos Navegantes que foram reconstruídas depois da catástrofe.
Tendo exagerado de forma linear a
verdade do que aconteceu, a documentação coeva dá-nos uma primeira imagem do
que era Cascais naquela época. E, sabendo nós que o ímpeto de construção que se
lhe segue fica a dever-se à generalizada informação de ruína eminente em que
pretensamente Cascais se encontrava, fácil se torna perceber que naquela
altura, como ainda hoje, foi sobre inverdades e premissas adaptadas às
necessidades do momento, que se deu uma nova cara ao Cascais de sempre.