por João Aníbal Henriques
Sendo certo que as memórias mais
antigas do actual Concelho de Rio Maior se perdem nas brumas do tempo,
existindo vestígios antiquíssimo de actividade humana que remontam ao primórdio
da instalação dos primeiros homens sobre a Terra, é mais certo ainda que tal
ancestralidade promove uma história que mistura factos com lendas, recriando
uma espécie de cenário maravilhoso que enriquece a Identidade local.
Em cada canto e recanto destas
terras, provavelmente em estreita ligação com a fertilidade do solo e com a sua
extraordinária capacidade produtiva, existem tesouros escondidos e memórias
ocultas de princesas mouriscas que de tempos a tempos insistem em nos
maravilhar.
É o que acontece em Assentiz, a
mais recente freguesia do município de Rio Maior. Situada em zona próxima da
Vila da Marmeleira, e beneficiando da mesma ligação férrea à força telúrica da
terra, Assentiz desenvolve-se sobretudo a partir do Século XVIII, acompanhando
o desenvolvimento da casa senhorial que mais tarde dará lugar ao Morgado de
Assentiz. É, pois, esta ligação profunda à terra e aos ciclos da natureza que
vem determinar os fluxos de desenvolvimento do local, muito embora os vestígios
que subsistem, bem como a documentação que se preservou, permitam supor que a
génese de tudo surge em momento bastante anterior.
A presença romana em terras de Rio
Maior, bem atestada pelos vestígios arqueológicos existentes, desenvolve-se a
partir da antiga estrada que ligava Lisboa, Santarém e Coimbra, determinando
assim que o atravessamento daquelas que são agora as fronteiras desta concelho
levassem ao reconhecimento da sua riqueza e fertilidade.
De facto, junto à actual
localidade de Assentiz, podemos encontrar os restos do que popularmente se
designa como a “Ponte Romana”, ligando as margens do ribeiro que por ali passa.
A Ponte Romana de Assentiz, originalmente com dois arcos que um cataclisma
acontecido no Século XVIII terá reduzido a um só, será assim um dos vestígios
centrais da presença dos invasores itálicos nesta parte do território rio
maiorense. Mas, tal como acontece amiúde com este laivo de deslumbramento
lendário que envolve as terras de Portugal, parece que a dita estrada não
passava exactamente neste lugar e, nesse caso, a ponte em questão terá uma
origem diferente daquela que a sabedoria popular lhe atribui.
Qualquer que seja o caso, é
importante ressalvar que a memória associada a este monumento é indestrutível,
tal como o são os inúmeros vestígios da presença dos Romanos em território de
Rio Maior. E a ponte, tenha sido construída durante a ocupação Romana ou, como
alguns investigadores advogam, somente durante o reinado da Rainha Dona Maria
I, já em pleno Século XIX, contribui de forma decisiva para o reforço da
Identidade local, promovendo a ligação intrínseca entre o povo que ali habita e
as memórias ancestrais que deram lugar à construção da monumentalidade actual.
No caso da Fonte Mourisca, local
de rara beleza que mistura a sua lendária origem com um enquadramento
cenográfico sem par, a situação é tendencialmente idêntica. Reza a tradição
popular que a fonte será de origem moura e terá sido construída alguns anos
antes da reconquista cristã do território de Portugal. Mas, se na sua
formulação simbólica a dita fonte carrega consigo o peso das inúmeras lendas
que povoam a imaginação de quem visita o local, a sua estrutura, associada a um
tanque cuja origem terá estado no processo de desenvolvimento agrícola que o
senhorio de Assentiz terá trazido para a povoação, parece apontar para uma
origem mais recente, na qual surge incauta uma ligação ela sim antiga aos ritos
da água na sobrevivência rural do seu povo.
Qualquer que seja a realidade associada
ao monumento, certo é que as lendas sobrevivem ao real e, no caso da Fonte Mourisca
de Assentiz, povoam o imaginário popular de histórias que se misturam com
factos numa amálgama de deslumbramento que não deixa ninguém indiferente.
Diz a lenda que no local onde
actualmente se situa a fonte, terá existido um antiquíssimo assentamento mouro
que teia como função defender aquelas terras da investida dos Cristãos. E que,
no fulgor da batalha empreendida pelo primeiro Rei de Portugal, terão os mouros
fugido deste local, deixando atrás de si uma imensidão e tesouros que, apesar
de nunca terem sido vistos, são desde logo pilares estruturais do imaginário
popular. De acordo com esta história, existiria por ali, provavelmente
aproveitando a nascente que alimenta a estrutura actual, uma gruta profunda que
era utilizada como espaço para guardar material. E os mouros, perseguidos de
forma indefectível pelo cavaleiros cristãos, optaram por utilizá-la para ali
esconder as riquezas imensas que haviam conseguido alcançar durante a sua
estada em terras de Portugal.
Ora, como é fácil de perceber,
até porque a presença sarracena nestas terras se prolongou ao longo de muitos
séculos, não se trata propriamente de uma utilização temporária de um espaço no
qual as pilhagens serviam de instrumento único para a obtenção de riquezas sem
igual. Pelo contrário. Os muitos séculos da presença islâmica indicam
precisamente um assentamento longo e definitivo, com ciclos de vários gerações
a explorar a terra e o espaço e a considera-lo como coisa sua definitivamente e
em carácter de permanência final. Assim sendo, qualquer tesouro extraordinário
que os Árabes tenham deixado em Assentiz derivaria da força do seu trabalho, da
sua dedicação à terra e dos ciclos de riqueza que geracionalmente haveriam de
resultar da pacatez da sua vida rural. Isso explica a herança ao nível das
técnicas agrícolas, dos pressupostos linguísticos, dos usos e costumes, etc.
Por isso, e contrariando a voz
popular, a haver tesouro, nunca ele poderia ser o manancial extraordinário de
riquezas que a lenda faz por descrever…
O conjunto formado pela fonte com
as suas três bicas, os tanques de lavagem de roupa e a mãe-de-água que os
abastece foi totalmente recuperado nos últimos anos e apresenta-se hoje como um
bom exemplo do que com o património se pode fazer. Ponto central da vida
comunitária de Assentiz, uma vez que durante muitas décadas era ali que a
população ia buscar a sua água e era também ali que se lavava a roupa de toda a
gente, a fonte é hoje um ponto incontornável nas memórias da terra.
Os romanos e mais tarde os
mouros, que certamente deambularam noutros tempos por estes espaços
extraordinários do município de Rio, decerto teria dificuldade em reconhecer o
Assentiz que hoje temos.
Mas, mais importante do que os
factos que contrariam as lendas, é que neste dois monumentos ímpares de Rio
Maior, estão concentrados os arquétipos ancestrais da Identidade deste concelho
bem como os sonhos, as memórias e o ensejo das suas gentes.
E é isso o mais importante em
qualquer terra!