por João Aníbal Henriques
Reza a lenda que, há muitos anos,
nos tempos em que mouros e Cristãos se digladiavam pela posse das úberes terras
ribatejanas, Nossa Senhora terá aparecido nos campos de Arrouquelas a um grupo
de pobres criancinhas.
A história, cujos contornos mais
efectivos se perderam já nos escolhos brumosos do tempo, surge em linha com
muitos outros relatos de aparições e de milagres acontecidos nos recantos
encantados destas terras tão especiais, com especial relevo, neste ano de
centenário, para as aparições marianas de Fátima em 1917.
E, tal como na Cova da Iria e,
anos mais tarde, na Asseiceira, as aparições de Nossa Senhora em contexto rural
dão sequência a outras histórias e lendas que cruzam o romantismo bucólico das
mouras encantadas, à simbologia profunda e sentida do apego e da Fé na Mãe de
Jesus. Aqui, em Arrouquelas, diz-se que algures nas imediações da actual igreja
de Nossa Senhora da Encarnação está enterrado um pote de ouro com um tesouro
mouro… E, sendo assim que o fumo da tradição popular nos aproxima da verdade
histórica, será também certa a possibilidade de a actual igreja ser o
reaproveitamento natural de uma antiga mesquita árabe que, colocada no centro
de um território úbere do qual dependiam as populações, centralizaria o culto a
Alá a partir das práticas maometanas que tão importantes foram na definição dos
arquétipos ancestrais da Portugalidade.
A própria Encarnação de Nossa
Senhora, processo profundamente alquímico de transformar em carne o espírito de
Deus, traduz na essência a condição privilegiada em que este tipo de recantos
desenvolve uma espiritualidade arreigada e sã, deixando transparecer nos actos
de culto grande parte daquilo que é a pedra basilar da sua existência vivida.
Mas, em termos de factos
históricos, pouco se sabe sobre as origens da Igreja de Nossa Senhora da
Encarnação.
Uma inscrição colocada na fachada
posterior da igreja, e que terá sido reencontrada durante uma das campanhas de
obras que recentemente ali se fizeram, indica a data de 1718. Mas os factos
apontam para que a igreja seja bastante anterior…
De facto, quando em 1739 as
autoridades de Rio Maior solicitam ao Rei a autorização para criarem uma feira
na localidade, que viria basicamente a substituir a antiga feira de
Arrouquelas, já há muito tempo existia neste espaço uma comunidade assente no
aproveitamento das potencialidades agrícolas do solo e, por isso, uma actividade
comercial sustentada e sustentável que congregaria à sua volta um manancial de
riqueza que não seria certamente desprezível.
E alguns anos antes, quando em
1634 a Irmandade de Nossa Senhora de Arrouquelas solicita ao Estado o alvará de
que necessitava para regularizar a sua feira anual, já avança com a necessidade
de avançar com obras de renovação e embelezamento na sua igreja. Ora, como facilmente
se entende, o estado avançado da organização presente no espaço não se
compadece com a inexistência de um templo e, por isso, será natural que a
tradição popular que anuncia a igreja como o corolário de um processo paulatino
de adaptação de um qualquer templo anterior, seja verdadeira, explicando o
processo que culmina no surgimento do edifício que hoje conhecemos.
Qualquer que seja a verdade
relativamente às suas origens ancestrais, que só poderão vir a ser desvendadas
de forma definitiva com uma intervenção arqueológica consistente, o certo é que
a igreja actual apresenta uma definição espacial desconcertante e diferente. De
forma inesperada, a sua colocação num barranco de características amplas parece
contrariar a orientação no espaço. O adro, espaço sagrado de excelência,
define-se a partir da extrema do terreno, a ponto de ter de ser sustentado por
um talude de alguns metros de altura que, embora abrindo a paisagem para o
espaço envolvente, restringe de sobremaneira o seu crescimento, contrariando
assim a natural apetência para que se tivesse procedido a uma implantação
espacial completamente diferente.
O relógio de Sol que recentemente
foi reimplantado no terreno, marcado com a data de 1869, é outro dos elementos
sui generis desta igreja extraordinária. O contexto artístico em que foi
definida a sua orientação, rodeado por uma rosa dos ventos de forma circular que
o rodeia envolvendo o espaço num enquadramento cenográfico próprio das velhas
tradições megalíticas de cunho alentejano, transporta todo o espaço para uma
dinâmica de Fé transcendente, ajudando a consolidar as histórias e as lendas e
contornando de forma assaz curiosa o conjunto de factos arreigados que
caracterizam o povoado e as suas gentes.
Com data de 1918, marcando também
ela um período pungente da História de Portugal, existe ainda um painel de
azulejos oferecido pelo Arrouquelense Abílio Reis, em paga pela intervenção de
Nossa Senhora da Encarnação em defesa dos jovens locais que engrossaram as
tropas Portuguesas durante a primeira Grande Guerra. O carácter polícromo deste painel, no qual a
expressão da Encarnação de Nossa Senhora
se define de forma atípica e profundamente deslocada no tempo, reforça
anda mais a indefinição em torno das características deste espaço, bem como a
sua importância na definição daquilo que foram, são e serão os sentimentos identitários
na comunidade vivida de Arrouquelas.
Seja qual for a sua História
verdadeira, e os factos concretos que transformaram a Igreja de Nossa Senhora
da Encarnação de Arrouquelas num dos mais importantes e significativos
monumentos do Concelho de Rio Maior, o certo é que todo o espaço em que o
edifício se insere está carregado de simbolismo. Ele traduz, até pelas
características que apontámos na sua versão cruzada com as histórias e lendas
que o acompanham, um quadro de ligação perene aos ritmos da natureza, em linha
com aquilo que sempre foi o sustento principal das comunidades que ali viveram.
Pelo que não nos dizem os documentos e pelo que todo o
edifício deixa perceber, valeria a pena aprofundar em termos científicos o
conhecimento em torno deste monumento, até porque a sua significação profunda,
misto de laivo de Fé e de capacidade de empreendimento, determinam de forma
cabal a nossa percepção em relação àquilo que é efectivamente o concelho e as
suas gentes.
Vale a pena, por tudo isto, fazer
o desvio que nos leva a Arrouquelas para conhecer, explorar e adivinhar este
recanto magnífico e tão diferente!