terça-feira

Património Cascalense: O Fim do Princípio




Por João Aníbal Henriques

Um clima ameno e uma relativa proximidade da capital, foram dois dos elementos decisivos no desenvolvimento urbano que Cascais conheceu ao longo dos últimos anos. Desde 1870, altura em que Dom Luís I passou a utilizar a Vila como local de veraneio, até à actualidade, muitas foram as vicissitudes que Cascais teve de enfrentar conseguindo, no entanto, ultrapassar de forma harmoniosa a quase totalidade das dificuldades.

Consequência directa de um devir histórico profundamente marcado pelo sucesso, o património histórico, arquitectónico e arqueológico do concelho de Cascais ainda é actualmente um dos mais ricos do País, reflectindo gostos e necessidades que se espraiam desde o período paleolítico até às mais recentes formulações arquitectónicas de origem pós-moderna.

A arquitectura tradicional, com o seu cariz vincadamente popular, traduz a essência das tipologias chãs, fornecendo às formulações eruditas os princípios que orientarão a sua posterior integração, e a manutenção de uma harmonia que só o presente tem conseguido destruir.

A falta de interesse, de meios, de capacidade e, muitas vezes de sensibilidade para com o património edificado, aliado a uma legislação desadequada face à realidade, tem contribuído para que se assista a uma paulatina degradação do património arquitectónico cascalense nas suas diversas vertentes arquitectónica, arqueológica e rural.

O número de imóveis abandonados e sujeitos às pressões do tempo e das vontades, para além de ter aumentado, tem também conhecido uma progressão qualitativa, pois actualmente, para além das tradicionais habitações de características aldeãs que, pela sua singeleza poucos se preocuparam em defender, também as construções eruditas têm conhecido igual destino. Palácios, chalés e habitações de personagens ilustres da História de Portugal, com uma espacialidade própria e características muitas vezes irrepetidas em todo o Mundo, são também eles alvo deste processo degradativo, o qual culmina inexoravelmente na destruição e na sua substituição por imóveis recentes, descaracterizados e inoperantes.

O Chalé da Condessa d’Edla, na Parede, recentemente desaparecido do panorama patrimonial cascalense, é apenas um das várias dezenas de exemplos que, pelo seu estado actual, prognosticam a perda irrecuperável de uma parte significativa da memória e das raízes de Cascais.

Para mencionar somente imóveis com expressão concreta na memória popular, por serem tradutores de realidades que marcaram a essência da existência consciente do Concelho de Cascais, urge observar, analisar, estudar, verificar, catalogar, proteger e divulgar os casos da Casa da Torre, no Estoril; da Casa das Janelas, no Estoril; da Casa de Sant’Anna, no Estoril; da Casa de Luís Beltrão, no Estoril; do Casal de Nossa Senhora da Conceição, no Estoril; da Vivenda Marysol, no Estoril; da Vivenda Monte Branco, no Estoril; da Villa Pomares, no Monte Estoril; do Hotel Miramar, no Monte Estoril; do Chalé Brito, em São João do Estoril; da Casa de Tertuliano Lacerda Marques, em São João do Estoril; da Casa de São João Baptista, em São João do Estoril; dos Casais Velhos, na Areia, ou da Casa Pinto Basto, em Cascais.

A substituição dos antigos edifícios da orla costeira, onde a História convive amiúde com o presente, e dos velhos casais agrícolas do interior, para além de resultar numa solução estética que afasta definitivamente todas as pretensões à assumpção por Cascais de um lugar de destaque no turismo de qualidade a nível europeu, contribui decisivamente para a diminuição da qualidade de vida daqueles que aqui habitam.

A cidadania e a consciência cívica, mais do que na escola, aprende-se no espaço concreto e na realidade. As casas, as coisas e as gentes, conjugando-se de forma natural numa existência comum, formam a base da vida das comunidades. A descaracterização de Cascais, sinónimo de insegurança, de perda de valores e de criminalidade, resulta também da incapacidade de conhecer e reconhecer e gerir o nosso valor patrimonial.

O processo de gestão do nosso património, com a conivência da Lei e das instituições responsáveis, passa pela entrega dos imóveis às inclemências do tempo, que se encarrega de grande parte do trabalho. Uma janela estrategicamente aberta, para além de facilitar os elementos naturais, deixando a chuva e o vento libertos para intervir no interior da casa, ajuda também à entrada do “cigarro libertador” que, lançado “casualmente” para o seu interior, vai atear o incêndio que “comprova” o estado de “ruína” em que a casa “se encontrava”.

Para além de tudo isto, não passará despercebido a ninguém as actividades menos lícitas que se desenvolvem nestes edifícios devolutos. Droga, prostituição, violações, etc., são alguns dos problemas que derivam desta situação, não se conseguindo perceber qual a razão que impede as entidades competentes de, pelo menos, mandar fechar convenientemente estes locais, zelando pela segurança e pela memória de Cascais...