quarta-feira

O Dia da Raça e as Memórias de Auschwitz





por: João Aníbal Henriques

No seu discurso comemorativo do Dia de Portugal, o Presidente da República, Cavaco Silva, referiu-se à necessidade de reforçar a comemoração do “Dia da Raça”.

Essa expressão, que os partidos da esquerda mais radical imediatamente associaram à prática instituída pelo Estado Novo para reforçar o sentimento de pertença a Portugal que todos sabiam ser necessário para estruturar o esforço Nacional que o País devia fazer para ultrapassar as vicissitudes de uma Europa conjunturalmente em caos, tornou-se de imediato no fulcro de dezenas de peças jornalísticas nos diversos jornais e televisões, servindo ainda como lenha para atear as fogueiras de vários comentadores.

Num País que já pouco sabe de si próprio, e no qual (como aliás o próprio Cavaco Silva referiu ainda há pouco tempo) a História é considerada elemento retrógado que deve ser esquecida para dar lugar a abordagens de futuro, a intervenção do Presidente da República só pode ser entendida de duas maneiras:

1ª – Ele conhece a nossa História recente e utilizou a frase como forma assumida de contextualizar o caos recente em situações análogas que Portugal já atravessou, deixando pistas que permitem perceber quais são os melhores caminhos para o garante do êxito final;

2º - Ele não conhece a nossa História recente e foi somente a sua argúcia política que, tendo em consideração o estado de caos económico-político-social em que vivemos, lhe ditou o caminho mais estruturado para ultrapassar a crise.

Em qualquer dos casos, e tenha dito a frase de forma consciente ou inconsciente, é sempre meritório assistir a um Chefe de Estado que tem capacidade de distinguir a força da Alma Nacional, cadinho da energia de que a Nação necessita para prosperar noutras áreas, das vicissitudes conjunturais que afectam o País.

Portugal enquanto País, oprimido pelos bloqueios que lhe impõe uma Europa com a qual pouco tem a haver; pelas dificuldades estruturais que o caracterizam enquanto País; pelas conjunturais necessidades que a situação internacional acarreta; e pela complexidade que está inerente ao facto de o sistema político-partidário em que vivemos estar total e completamente moribundo; pouco mais pode fazer para resolver a crise convulsiva em que se encontra do que gerindo dia-a-dia os equilíbrios tecidos pelos muitos problemas com que vai tendo de lidar.

Enquanto Nação, no entanto, a força de Portugal é intocável e, como Cavaco Silva bem percebeu, incentivar esse fogo que dá alento ao País, significa alentar o povo, as instituições e a sociedade civil a reencontrar dentro de si própria formas inovadoras de se transcender e de se impor perante as vicissitudes do Mundo e da Europa.

Para que isso se torne possível, e para além do futebol (que já todos percebemos que é capaz de fazer esquecer os problemas e unir o povo em torno de algo imaterial), é fundamental que se reconstruam memórias e se conheça a História. É essencial que saibamos de onde viemos, quem somos e para onde poderemos ir. É fundamental que a consciência individual se fundamente num juízo crítico baseado nos factos e nas informações.

Essa consciência pessoa, mesclada com outras similares, forma a consciência Nacional que Portugal já mal se lembra de ter existido. Seria ela que, dando corpo às escolhas pessoais de cada um, permitiria que os actos eleitorais, as formações de listas para órgãos de soberania, a composição do parlamento, etc. fossem sinónimo de democracia (que não temos), porque ela só é possível com consciência e a consciência só é possível com base no conhecimento!...

Depois do discurso de Cavaco Silva, e por entre os muitos comentários radicais que ouvimos, houve aqueles que centralizaram em Salazar, no Estado Novo e até no Município de Santa Comba Dão as vicissitudes dos nossos males.

Diziam que o discurso do Presidente da República seria seguido do retorno ao passado; que agora só faltava a autorização para a abertura do Museu do Estado Novo; e que tudo isto tem como objectivo fazer Portugal voltar ao pré-25/04.

Olhando para trás, para uma Europa acéfala e cada vez mais perdida num crescimento híbrido que vai pondo cobro a algum alicerce identitário que possa ter existido, rapidamente percebemos que o pouco que resta se deve à memória que se foi criando.

O que seria da Europa sem as memórias das muitas guerras e atrocidades que aqui se cometeram? O que seria da Europa sem os espaços-memória de Auschwitz e dos campos de concentração nazis? O que seria do Mundo sem os dias do trabalhador, da família, da mãe e do pai, do ambiente, etc.? O que seria de nós sem conhecermos o que nos precedeu e sem termos a possibilidade de sobre essa informação erguermos o nosso espírito crítico?

Para nós, que assumidamente sabemos o mal que resultou da experiência soviética; dos projectos trabalhistas; das revoluções socialistas; das atrocidades comunistas; etc. não podemos deixar de aplaudir e de apoiar a construção, criação e promoção de museus e espaços de memória que garantam que perdura no tempo o resultado dessas experiências. Porquê? Porque foram péssimas; porque influíram negativamente nas vidas de milhões de seres humanos; e sobretudo porque não queremos que se repitam. E a única maneira de alcançar esse desiderato é mostrando o que foram.

Quando se fala (a medo) do Dia da Raça, suscitando comentários extremistas contra a ligação que essa expressão poderá trazer relativamente ao Estado Novo, isso só dá vontade de perguntar aos seus autores:

- Têm medo que se mostre por saberem que resultaram bem e que o povo perceba que nem tudo o que se disse no pós-25/04 é verdade?...