por João Aníbal Henriques
No Monte Estoril, foi criada de raiz a partir de 1880 uma estância
habitacional e turística que funcionou como motor de um estereótipo urbano que,
após ter sido importado das mais cosmopolitas cidades europeias, se adaptou
perfeitamente ao devir social e histórico das localidades cascalenses.
A Companhia Mont’Estoril, que em 1890 tinha como principais
accionistas o Conde de Moser, Carlos Pecquet Ferreira dos Anjos, a Sociedade
Agrícola e Financeira de Portugal e o Banco Lisboa & Açores foi sempre,
desde a sua fundação, o exemplo ideal de um projecto global de urbanização que
se deparou com os problemas resultantes das muitas questiúnculas de pequena
importância que impedem o excelente cumprimento do desiderato que inicialmente
se propõe. De facto, quando foi criado, a Companhia Mont’Estoril pretendia
unicamente transformar o Pinhal da Andreza, espaço vazio onde, segundo Branca
Colaço e Maria Archer, se ouvia somente o sussurrar permanente do pinheiral,
numa estância de renome internacional na qual a qualidade de vida urbana,
assumidamente assente na vertente privada de todas as componentes urbanas do
empreendimento, se assumia como principal objectivo.
Para o cumprir, os primeiros impulsionadores deste projecto,
utilizando o prestígio social e profissional de cada um, recorreram a capitais
privados para adquirir toda a área de implantação do actual Monte Estoril
[excepção feita ao Monte Palmela]. Posteriormente, e dando mostras de uma larga
criatividade que transcendia de forma absurdamente extraordinária tudo aquilo
que se afigurava como procedimento normal em Cascais ou em Portugal, entenderam
ser essencial que se procedesse a uma planificação prévia e minuciosa de tudo
aquilo que se pretendia fazer. No âmbito desta actividade, foram projectados os
arruamentos, a distribuição de água, as infra-estruturas primárias como esgotos, iluminação, etc., as
construções, e mesmo os pormenores decorativos de cada um dos equipamentos que
haveriam de servir a nova localidade.
Como é evidente, sobretudo se pensarmos que no local onde a
Companhia Mont’Estoril pretendeu erguer a sua novíssima estância, existia um
espaço sem uso que envolvia uma das mais agradáveis zonas costeiras do Concelho
de Cascais, fácil se torna perceber que a sua utilização como passagem pública
seria óbvia, evidente e natural. De facto, povoações situadas a Norte do Monte
Estoril, como a Amoreira, o Casal do Giraldo, Alcabideche ou Alcoitão,
serviam-se de caminhos milenares que atravessavam o Pinhal da Andreza para
aceder aos seus lares. Quando a nova companhia se instalou, dando início ao
processo de urbanização, jamais se pensou em coarctar os direitos de
atravessamento que ali existiam, nem tão pouco em privar as populações das
redondezas daquilo que haviam sido as principais linhas que orientaram até aí a
sua existência.
Apesar de tudo, e como consequência de um conjunto de querelas
levantadas por parte de alguns dos inquilinos das propriedades da Companhia, no
ano de 1900, o Presidente da Câmara Municipal de Cascais, Jayme Arthur da Costa
Pinto, envia aos Directores da Companhia Mont’Estoril um ofício indicando que a
pedido de um grupo de moradores da localidade, a edilidade iria proceder a uma
vistoria coerciva à urbanização com o intuito de garantir que fica
salvaguardado o livre trânsito e os direitos de propriedade dos requerentes.
Como resposta a esta missiva, e demonstrando que a legitimidade
inerente ao carácter privado do empreendimento e ao conjunto de espaços de uso
público que o integravam, se via reforçada com esta forma de gestão urbana, os
administradores da Companhia Mont’Estoril, Arthur de Souza Tavares Perdigão e
Carlos da Costa Osório, sublinham junto do Presidente que a edilidade não tem
qualquer espécie de direitos nos terrenos pertencentes àquela entidade, tendo
sido, por isso, ilegal, a vistoria que haviam anteriormente anunciado. Em
termos que podemos considerar pouco próprios para lidar com uma instituição de
sublinhada legitimidade como era a edilidade cascalense, os dois responsáveis
indicam à câmara que, caso seja necessário, enviarão para a justiça este tipo
de procedimentos: “Não reconhecendo direitos alguns à Câmara Municipal de
Cascaes, ou a qualquer particular, contra a posse e propriedade da Companhia, e
estranhando o procedimento havido, «por acto particular», sem processo judicial
nem ordem de juiz, invadindo propriedade alheia, esta Companhia expoz sua
situação legal e protestou contra o que se pretendia praticar. [...] Todos
estes actos são até previstos e punidos no Código Penal”.
O ilustrado Presidente da Edilidade, remetendo para o uso milenar
daqueles acessos por parte da população circunvizinha, responde aos
proprietários que se não podem tolerar interferências de particulares na gestão
corrente dos espaços públicos municipais: “Acusando a recepção do ofício de
V.Exªs. de 11 do corrente, cumpre-me , em nome da Câmara da minha presidência,
declarar que, as Ruas e Avenidas do Mont’Estoril, há anos abertas ao trânsito e
ao serviço público, não estão, nem podem estar sujeitas aos caprichos ou
interesses de qualquer particular, tanto mais, que, algumas daquelas vias
públicas, são apenas variantes dos antigos caminhos para os lugares da
Amoreira, Alcabideche e outros”.
A dualidade entre o público e o privado, contrapondo decisões
consideradas essenciais pela administração da estância turística do Monte
Estoril com necessidades de gestão corrente da edilidade, ficou cada vez mais
evidente, à medida em que se foram esbatendo as características privativas e
elitistas da Companhia que, com a proibição do jogo, viu altamente prejudicada
a procura aos seus serviços e se viu constrangida a vender largas parcelas da
sua enorme propriedade inicial. Na querela levantada por um grupo de moradores
e/ou proprietários de lotes no Monte Estoril junto da Câmara Municipal, é
visível a perda progressiva da força urbana da Companhia, bem como a diluição
dos rígidos princípios doutrinários que haviam enformado a criação daquela nova
localidade e que, como todos bem sabemos, haviam sido os principais
responsáveis pelo elevado índice de qualidade até aí apresentado. No conjunto
de correspondência trocada entre as duas instituições, o edil Jayme Arthur da
Costa Pinto chega ao ponto de ostensivamente sugerir o recurso aos tribunais
para a resolução do problema, colocando-se numa posição de vantagem perante o
conjunto de pretensões dos outros litigantes: “A própria Companhia que V.Exªs.
dirigem, compreenderá decerto, que esta Câmara não podia ficar indiferente
perante a ameaça, em parte realizada, de se privar o público da livre passagem
das ruas em que V.Exªs. mandaram colocar marcos; procedimento este, que alarmou
os proprietários do Mont’Estoril, os quais, em representação legal, vieram à
Câmara pedir providências urgentes afim de não serem esbulhados os seus
direitos”.
Com as duas partes em litígio, ou melhor, com a penosa disputa que
se estabeleceu entre uma entidade que pela primeira vez em Portugal procedeu à
criação de uma urbanização ampla e previamente planeada, e o grupo de
proprietários que, após terem adquirido lotes ou edificações no seu seio,
acabaram por sentir que o conjunto de obrigações impostas pela entidade
vendedora, e que se destinavam a garantir que os parâmetros de qualidade se
atingiam e se mantinham eram demasiadamente onerosas, o Monte Estoril acabou
por se tornar no primeiro exemplo daquilo que mais tarde se vai tornar o
dia-a-dia do urbanismo no Concelho de Cascais: excelência, beleza e qualidade,
na generalidade dos panfletos propagandísticos que promovem as novas
urbanizações, mas um desesperante e abandonado caos urbanístico a caracterizar
a dura realidade que posteriormente se implementa.
O princípio do fim da excepcionalidade do Monte Estoril, ao
contrário do que pretendem fazer crer alguns investigadores, não se ficou a
dever ao complicado processo de falência da Companhia. Pelo contrário!... O
processo de insolvência da Companhia Mont’Estoril, bem visível, por exemplo,
nos relatórios de contas relativos aos anos de 1908, 1909 e 1910, foi somente a
primeira consequência daquilo que poderíamos considerar como a transição de uma
gestão privada para uma gestão pública do espaço global do povoado.
Enquanto a Companhia Mont’Estoril controlou a totalidade dos
elementos urbanos do povoado, desde os esgotos, à iluminação, passando pela
distribuição de águas e pela limpeza dos arruamentos, a generalidade das
despesas era assumida pela sua administração, que recolhia essas verbas do
exercício das suas funções e das participações várias vezes solicitadas aos
seus accionistas privados. No decorrer desse período, e pese embora o conjunto
de pesados encargos que cabiam aos proprietários, a excelência era uma questão
de honra no Monte Estoril, e a vida no povoado, em todos os pequenos pormenores
que caracterizam o dia-a-dia, afigurava-se radiosamente fantástica.
Quando alguns proprietários, sentindo ser muito mais confortável e
menos dispendioso, fazer transitar para a edilidade o conjunto de compromissos
que haviam assumido junto da Companhia, e que eram as suas obrigações pessoais
na manutenção dos parâmetros de qualidade que, inclusivamente, os havia
impelido a adquirir as suas novéis propriedades, o processo de descalabro
torna-se irreversível, e a qualidade urbana de outros tempos inicia uma fase de
desmoronamento que se mantém até hoje.
Em 1911, quando o próprio Conselho de Administração, provavelmente
bafejado com as interessantes e apelativas ideias de uma República recém-instituída,
se resigna a esta passagem de testemunho, escreve-se então a primeira página do
livro que leva à falência da Companhia, e que fará do Monte Estoril aquilo que
ele é hoje: um monte em ruínas, envolto em betão, e sem qualquer espécie de
resquícios de uma qualidade urbana que o caracterizou noutros tempos. O texto
que o Conselho de Administração insere no relatório de actividades atrás
mencionado é exemplificativo desta inversão de princípios orientadores (21):
“Na ocasião de elaborarmos este relatório, uma comissão da qual fazem parte
alguns dos mais distintos moradores do Mont’Estoril e que tomou sobre si a
generosa iniciativa de promover melhoramentos locais para levantar o
Mont’Estoril à altura a que a sua fama lhe dá direito, substituindo-se a esta
administração para, entre outros trabalhos, conseguir a transferência das
nossas ruas para a Câmara Municipal de Cascaes, transacção essa que se impõe
pela necessidade de nos libertarmos dessa responsabilidade, dada a redução das
nossas receitas e ainda pelo facto de o uso dessas ruas somente aproveitar ao
Município. Além dessa circunstância existe ainda a de a transferência referida
representar a vontade de todos os habitantes do Mont’Estoril que muitos são,
pois entendem que esta Companhia já fez o mais que pode, de modo a reconhecerem
a sua ausência de direitos para reclamarem contra o mau estado das ruas cuja
reparação deve pertencer de facto ao Município que do Mont’Estoril cobra farta
percentagem das receitas do Estado que incidem sobre a propriedade daquela
estância”.
Mais à frente, deixando denotar alguma arbitrariedade na forma
como altera a sua postura sobre os poderes públicos vigentes, e possivelmente
deixando antever um cansaço que ficou a dever-se a mais de duas décadas de luta
permanente com um conjunto de proprietários que permanentemente se inibe de
investir nas suas propriedades como forma de contribuir para o bem comum da
povoação, o mesmo Conselho de Administração apresenta uma espécie de rol de
equipamentos urbanos que deveriam transitar para o poder público e que, pela
sua actualidade e valor, são demonstrativos do estado de desenvolvimento que o
Monte Estoril conheceu na sua faceta urbana, enquanto esteve dependente da
iniciativa privada, em comparação com outras zonas do Concelho de Cascais que,
dependendo sempre da gestão pública, ainda hoje não possuem este tipo de
equipamentos que os monte-estorilenses do início do Século XX já há muito
conheciam: “Entregaríamos, portanto, as ruas com as suas colunas e candeeiros
de iluminação, bancos, arvoredo, e marcos, assim como o colector geral, que
constitui actualmente o nosso único domínio de subsolo e transferiríamos para a
Câmara, o contrato de iluminação das ruas que em tempos firmámos com as
Companhias Reunidas Gaz e Electricidade. Entendemos que todo o nosso cuidado
deve incidir sobre o legítimo respeito e observância dos contratos em tempos
celebrados entre esta Companhia e Carlos Pecquet Ferreira dos Anjos, as
Companhias Reunidas Gaz e Electricidade e Geral de Águas”.
O grau de aperfeiçoamento urbano do Monte Estoril era de tal
maneira que, quando comparamos o projecto que enformou a concepção da
localidade, ainda algum tempo antes do final do Século XIX, com aquilo que os
partidos políticos da actualidade incluem nos seus programas eleitorais,
ficamos deveras surpreendidos por encontrarmos como coisa concreta naquele
lugar desde há mais de cento e vinte anos, coisas que noutras partes do
Concelho de Cascais, continuam a ser miragens por concretizar em pleno Século
XXI... A criação de uma rede de esgotos adaptada às necessidades da povoação; a
preocupação permanente de gerir com qualidade o sistema de águas, por forma a
garantir um fornecimento ininterrupto aos habitantes; a iluminação pública como
sinónimo de conforto urbano e de segurança dos transeuntes; os bancos públicos;
as árvores; e os marcos informativos e delimitadores de propriedade; são apenas
alguns exemplos de equipamentos que existiam já no Monte Estoril em 1910 (serão
provavelmente os mesmos que ainda hoje lá se encontram), e que, sendo
assumidamente essenciais para a qualidade de vida diária das populações, teimam
em continuar a não existir em vastas zonas habitacionais do Concelho de Cascais
que sempre dependeram em exclusivo dos poderes públicos.