por João Aníbal Henriques
Maria gemia alto, sem pudor nem
vergonha, deitada na enxerga de estopa que tinham colocado no meio da sala.
Apesar da penumbra que a envolvia, impedindo-a de ver a tez congestionada da
parteira gorda que andava para trás e para a frente sem conseguir esconder a
preocupação enorme que sentia, via-se que estava envolvida em bujardas de
sangue que se espalhavam de forma atroz por toda a dependência.
Ao fundo, encostada a parede,
estava Cipriana, a sua mãe. Precocemente envelhecida depois da morte do marido
Pedro, que sucumbira há uns meses às febres que se lhe tinham pegado ao corpo e
à alma depois de uma noite ao relento para tomar conta do rebanho, rezava de
forma inconsciente fiadas de Padres Nossos e Avés Marias que se refugiavam nos
seus lábios misturando-se com o desespero crescente.
A sua filha, ainda demasiado nova
para o que quer que seja, estava a fraquejar perante as dores daquele parto
prematuro. Tinha engravidado de um rapazola de ar jovial que aparecera lá na
aldeia uns meses antes e que, sem ninguém saber quem era, tinha aproveitado bem
a inocência quase infantil dela para a encher com os sonhos e fantasias da
cidade grande e de tudo aquilo que ele lhe dizia que por lá se podia fazer. E
depois encheu-a de vez… matou-lhe a mocidade sem qualquer espécie de
preocupação… E desapareceu para sempre.
E Maria, a criança jovial que até
aí tinha sido, deixou imediatamente de o ser. E foi olhada de lado e mal falada
dia-a-após-dia por toda a povoação. Em Felgar, ali naquele recôncavo formado
pelos rochedos que envolviam Penacova, a menina deixou de ser menina e
tornou-se simplesmente na Maria, a folgosa, a filha do Pedro, a Maria Pedra de
Felgar.
Lá fora, quando surgiam no
horizonte os primeiros raios de luz, criando aquela sensação de um dia que
ainda não é dia mas que também já não é noite, escureciam para sempre os sonhos
da menina e da sua mãe. E em Felgar, mesmo que o bebé agora nascido conseguisse
fugir da marca aleivosa com que o destino o marcou ainda antes da nascença, já
não havia lugar para elas.
Cruzaram-se os dias, os anos e as
gerações. Mudaram-se os rumos, as paisagens e os ensejos. Maria cresceu e
morreu sofrendo sempre. A sua mãe, Cipriana, não resistiu à tristeza que lhe
enrugou a face demasiado cedo e pereceu pouco tempo depois de ter nascido o
neto.
Os sonhos de Maria Pedra,
cruzados com os do seu filho António, que ela registou com o apelido Simões em
honra daquele que lhe tinha desgraçado os anseios, dissiparam-se nas curvas da
vida e cresceram e morreram sistematicamente à medida em que nasciam, viviam e
morriam também os seus filhos, netos e bisnetos.
Muitos anos depois daquela
madrugada triste, os biombos do tempo já se tinham aberto e fechado muitas vezes
e a memória de Maria estava extinta para todo o sempre. Mas ela vivia ainda nos
mesmos sonhos e nos mesmos problemas dos que lhe sucederam.
Porque é sempre tudo igual.
Porque não muda nada. Porque é precisamente esse o verdadeiro encanto.