por João Aníbal Henriques
Simplicidade, amor e oração, num
apelo que chega de forma sublime e que se repercute sistematicamente pela
comunidade, são as principais características transversais a todos os fenómenos
relacionados com aparições marianas que acontecem em Portugal.
Tal como aconteceu em Fátima, na
Fonte Santa, na Nazaré, em Coruche e em tantos outros cantos e recantos de
Portugal, as aparições de Nossa Senhora que ocorreram na Asseiceira, concelho
de Rio Maior, foram um fenómeno que assentou na figura de uma criança e que,
com laivos quase pueris que são comuns às outras centenas de casos, foram
posteriormente vistos e confirmados por dezenas de outras pessoas que
acompanharam o vidente.
Sendo certo que existem fenómenos
reais e que comprovadamente aconteceram, porque são muitos aqueles que os
partilharam e que testemunharam a sua existência, é certo também que a sua
descodificação é sempre um fenómeno de Fé que resvala para uma linha personalizada
de relação com a religião e com o cosmos.
Nos casos portugueses, a Fé em
Nossa Senhora, Mãe de Jesus e padroeira de Portugal, acompanha o país desde
antes da formulação da nacionalidade, sendo possivelmente essa continuidade
histórica que explica as explicações que são dadas sobre os fenómenos. Mas,
sendo certo que é de Fé que se fala quando se discutem aparições marianas, o
certo é que existem constantes que remetem para uma análise mais concreta que,
nunca podendo ser científica, permitem perceber que é inquestionável o seu
valor na definição dos valores e princípios sócio-identitários que dão forma à
própria existência de Portugal.
A começar pela própria História.
As aparições marianas em Portugal não são exclusivas de um determinado período
ou contexto, nem tão pouco de uma determinada época de contornos bem definidos
em termos económicos, políticos ou sociais. Pelo contrário. Atravessando os
nossos quase 900 anos de História, as aparições de Nossa Senhora acontecem em
vários locais e em vários tempos, adaptando-se obviamente aos contextos
específicos nos quais ganham forma, mas sempre assentes em pressupostos que
ultrapassam a esperança de vida daqueles que as vêem ou sequer as gerações às
quais pertencem. É inquestionável, por isso, que as aparições não são um
fenómeno que explica (ou ajuda a explicar) um momento histórico, nem tão pouco
uma forma de vida determinada, antes respondendo de forma transversal aos
arquétipos mais profundos da Portugalidade ao longo dos tempos.
Depois, de forma surpreendente
pela diversidade de épocas e de locais em que acontecem, as semelhanças perante
os fenómenos físicos que as acompanham. Raios de luz, alterações no Sol, vozes
que somente alguns escutam e a pequenez das imagens que se vêem, são
omni-presentes em quase todos os casos que se conhecem, deixando pistas que são
quase referências em termos daquilo que se conhece. E se, pelo menos nalguns
casos, é lícito pensar que os ditos videntes teriam acesso a histórias
relacionadas com fenómenos idênticos que tentariam replicar no seu presente, na
generalidade dos casos, a pureza pueril dos mesmos, associada a pouca formação
académica e a contextos de isolamento profundos em que essas vidas acontecem,
deitam por terra esse pressuposto e tornam quase impossível colocar a
explicação nesse campo.
Por fim, temos ainda os conteúdos
das mensagens. Com excepção de Fátima, na qual a mensagem surge encriptada e
filtrada pelas determinações institucionais que as vão controlando ao longo do
tempo, a quase totalidade das restantes remete para um apelo à singeleza da
oração, da paz e da pureza que, parecendo coisa menor quando comparadas com uma
descida à terra da própria Mãe de Jesus Cristo, são profundamente vincadas,
marcantes e até revolucionárias nas comunidades em que as mesmas acontecem. Será
crível pensar que tantas crianças, normalmente pobres e quase sempre
analfabetas, repliquem com tanta exactidão uma mensagem que nada (ou pouco)
lhes diz e que é transversal a todas elas?
No caso de Asseiceira, em que as
aparições nunca foram sancionadas pela Igreja Católica, o padrão é o mesmo e,
mesmo sem o cunho da oficialidade que certamente as teria transformado em algo
de completamente diferente daquilo que aí verdadeiramente aconteceu, evocam
valores, princípios e orientações que se encaixam de forma perfeita num
vastíssimo conjunto de fenómenos no mesmo género.
No dia 16 de Maio de 1954, o
menino Carlos Alberto da Silva Delgado, de 11 anos, apartando-se dos seus
colegas de escola para rezar pelo sucesso de um exame que teria de fazer, ouve
uma voz que lhe garante o êxito e que lhe pede que reze o terço Diariamente. Durante
oito meses, todos os dias 16, o fenómeno voltava a acontecer, sendo acompanhado
por um cada vez maior número de gente que acorria ao local para partilhar o dom
de estar junto da Mãe de Deus.
Sem que se conheça qual outra
mensagem e/ou orientação diferente do apelo sereno à oração e à santidade, o
menino foi sujeito a vários exames médicos que determinaram ser o mesmo
saudável não padecendo de nenhuma doença psiquiátrica que pudesse explicar o
que estava a acontecer. Simultaneamente, tal como acontece em Fátima e noutros
locais reconhecidos pela Igreja, as muitas testemunhas que acorrem ao local das
aparições, divergem entre aqueles que vêem e ouvem o mesmo do que o vidente;
aqueles que somente ouvem mas nada vêem; e os que vêem mas nada ouvem… Como se
explica que seja assim em todos os locais e em todos os tempos?
Desde então até ao presente, o
menino vidente faleceu prematuramente num acidente de automóvel, sem que no
local deixasse de se reunir um número substancial de gente para cumprir a
vontade da Mãe de Deus. Tinha 37 anos, não se lhe conhecem laivos de riqueza ou
de grande poder, era casado, tinha dois filhos e uma vida normal, trabalhando
como administrativo num banco. Ou seja, nada ganhou com o seu papel de vidente.
Mas o certo é que, até hoje, todos
os dias 16, a meio da tarde, reza-se o Terço. Na comemoração do cinquentenário
das aparições, em 2004, com dinheiro dos crentes, foram feitas obras de remodelação
do espaço para que se continue sempre a cumprir aquela obrigação pungente.