por João Aníbal Henriques
A inscrição patente na Igreja de
São Francisco de Assis, na Vila da Marmeleira, Concelho de Rio Maior, marca a
data terrível de 1755. Mas, contrariamente ao que se possa apensar, nada tem a
ver com o grande terramoto que afectou Lisboa e arredores nesse mesmo ano. Pelo
contrário, o ano de 1755 marca para a Vila da Marmeleira o apogeu de um
processo de crescimento que culmina na sua emancipação em relação a Assentiz e
a sua afirmação enquanto comunidade de grande importância no devir histórico e
administrativo do concelho.
De facto, com raízes históricas
que se perdem no tempo, Marmeleira deve o seu nome a uma árvore com o mesmo
nome que terá sido lendariamente trazida da Índia por António Faria no Século
XVI. Mas já existira certamente muito antes disso, uma aglomerado habitacional neste
espaço, tal como o atestam os achados arqueológicos no monte de São Gens e,
sobretudo, as provas de ocupação do período muçulmano que abundam nas
redondezas.
A Igreja da Marmeleira, dedica a
São Francisco de Assis, terá sido construída originalmente no Século XVII pelo
Abade de Alcobaça como resposta aos muitos problemas que as cheias periódicas
que afectavam o Concelho de Rio Maior traziam aos seus habitantes. De facto, o
riacho que vem de São João da Ribeira e que atravessa a actual freguesia em
direcção ao Rio Maior, transbordava várias vezes ao ano, impedindo os moradores
da Marmeleira de chegarem à igreja para assistirem à Missa. Por isso, o novo
templo, em forma de pequena ermida rural, terá sido edificado nessa altura,
atestando a importância da localidade e dos seus moradores .
A referida data de 1755, que
ainda hoje se mantém na fachada da igreja, refere-se assim a campanhas de obras
efectuadas nessa data, sendo que as mesmas terão sido refeitas, já no Século XX,
dotando a igreja da sua actual configuração. Do templo original, singelo na sua
formulação chã e em linha com aquilo que terá sido, desde sempre, a principal estrutura
económica do local, sobra somente um pequeno altar, agora dedicado a Nossa
Senhora da Conceição, que se mantém incólume no interior da igreja.
São Francisco de Assis, a quem o
templo foi dedicado, é agora a figura-mãe da devoção religiosa do povo da
Marmeleira. As suas festas anuais, que misturam a ligação ancestral à Rainha e
Padroeira de Portugal com a apologia da pobreza preconizada por São Francisco,
são tradutoras privilegiadas do linear percurso histórico desta recanto de Portugal,
denotando a ligação eminente e profunda à natureza e aos seus ciclos agrícolas,
bem como ao despojamento efectivo perante a grandiosidade e a pujança de Deus. Os
Marmelenses, vocacionados para uma vida devotada à terra e aos seus frutos,
constituem assim a referência primeira de uma localidade que se concretizou a
partir das exigências e as vicissitudes impostas pela água e pelas agruras do
tempo, mas que delas depende para o esforço quotidiano da sobrevivência e da
existência humana.
Isto é bem visível na própria
localização da povoação, colocada de forma segura a uma altitude de cerca de
100 metros para evitar possíveis influências nocivas da subida dos níveis das águas,
bem como na sua relação com a paisagem envolvente.
Dos equipamentos que hoje compõem
o património da Vila da Marmeleira, para além da Igreja de São Francisco de
Assis, fazem parte o miradouro, o tanque de lavagens comunitárias e a fonte de
chafurdo. Todos eles, atestando a antiguidade da ocupação humana do território e
a sua vinculação agrícola, se situam em planos de inferioridade relativamente
ao centro da povoação, mostrando que o seu crescimento de faz a partir desse
esforço de sobrevivência e explicando o apelo à singeleza que todo o conjunto
urbano nos oferece.
Digno de nota especial, pela
importância iconográfica que possui, é o painel de azulejos neo-clássicos que decora
o espaço da Fonte dos Namorados. Este manancial de água, provavelmente nascente
natural que terá sido aproveitada pelo menos desde a época romana, é de crucial
importância na definição dos principais eixos de crescimento da Vila da
Marmeleira. O veio principal, oriundo do pequeno morro onde se ergue a igreja,
será provavelmente o que resta da antiga fonte de chafurdo que terá abastecido
a região.
Na iconografia que ilustra este
espaço, que até pelo seu nome indica a importância que enquanto espaço central
de sociabilização, é possível ver as juntas de bois, os lavradores e as
lavadeiras que noutros tempos deram corpo à sociedade Marmelense. Apesar de
simbólica, esta recuperação daqueles que terão sido os estereótipos principais
n localidade permite-nos compreender a forma como é dessa componente rural,
miscenizada provavelmente com a componente militar que resulta da posição de
grande importância estratégica que toda esta região teve noutros períodos da
História, que depende o devir quotidiano das comunidades, num acto de entrega
aos redutos primevos da natureza que se espraia na forma como se definem os
arruamentos, se constroem as casas e se criam os espaços de uso colectivo.
Nos lavadouros públicos, situados
a poucos metros da Fonte dos Namorados e aproveitando o manancial de água que
ali é captado, encontram-se presentes os mesmos motivos iconográficos, sendo
que o painel azulejar, de fábrica mais recente e marcado com a data de 1934,
nos aponta precisamente a simpatia como o principal epíteto da Vila a
Marmeleira.
Elevada à categoria de vila em
1927, pela mão do então Presidente da República Marechal Carmona, a Marmeleira
é freguesia desde 1878. O final do Século XIX, com a autêntica revolução que se
concretiza na agricultura Portuguesa, é o início do período de maior fulgor da
História da Marmeleira, acompanhando o crescimento da antiga freguesia a partir
da consolidação das novas práticas agrícolas e dos produtos que se foram
afirmando comercialmente na região.
Airosa, bonita e simpática, a
Vila da Marmeleira é actualmente um dos mais encantados recantos do Ribatejo,
preservando o carácter rural do seu nascimento mas incluindo uma série de benefícios
urbanos dignos de povoação com maior dimensão e mais fama. O largo do corte,
situado nas traseiras da igreja, dá conta de uma vivência comunitária que se
mantém activa, ao mesmo tempo que nos
oferece pistas importantes para compreender aquilo que foi a evolução da
freguesia desde o início do século passado. De salientar, pela importância que
tem na compreensão deste devir, a placa epigrafada colocada junto ao miradouro,
que sublinha precisamente o facto de as obras terem sido feitas em 1969 por
iniciativa da comissão local de festas com o apoio da Junta de Freguesia e da
Associação dos Amigos da Marmeleira.
Vale a pena estacionar o carro
num dos muitos espaços existentes no centro da localidade e, com máquina fotográfica
nas mãos, percorrer a pé os cantos e recantos deste espaço tão especial. Ali se
encontrarão, para deleite de quem já pouco sabe sobre as raízes rurais de
Portugal, os vestígios ainda bem vivos de uma prática em que homem e natureza
convivem em sã harmonia, num pleito de simpatia cuja índole pacífica se perpetua
no espaço e no tempo.