por João Aníbal Henriques
Envolvida nas brumas
do mito e de uma sacralidade mística que dá forma à própria identidade de
Sintra, o Alto de Santa Eufémia, no pico nascente da Serra Sagrada, é um dos
mais impressivos recantos daquela montanha ancestral. Os seus seis mil anos de
História correm ao sabor de uma vivência sempre muito significante e integram
os laivos primordiais que dão forma à essência espiritual de Sintra.
Com uma vivência histórica
comprovada desde o 4º milénio A.C., o Alto de Santa Eufémia é tradicionalmente
considerado como o berço de Sintra. O povoado neolítico ali existente,
aproveitando e adaptando-se ao binómio formado pela riqueza do seu manancial de
águas e pela situação estratégica do seu plano elevado em relação à envolvência,
foi desde a sua origem um espaço fundamental para a definição daquilo que virá
a ser a ocupação humana em toda a região Ocidental da península Ibérica.
De acordo com Vítor Manuel
Adrião, investigador e historiador especialista na História de Sintra, as
origens do culto a Santa Eufémia perdem-se nas origens do próprio tempo,
estando relacionadas de forma directa com os cultos de fertilidade associados
com a água, num apelo ancestral à Deusa-Mãe, Eufémia, origem simbólica de toda
a ritualística Cristã da Senhora que concebe, ou seja, de Nossa Senhora da
Conceição.
Sem grandes registos dos seus
primeiros anos de História, até porque nunca se realizaram naquele espaço
escavações arqueológicas de largo espectro que permitissem conhecer
detalhadamente o que ali se passou ao longo dos muitos milénios de vida que o
lugar conheceu, Santa Eufémia de Sintra volta a surgir na historiografia
medieval quando o cruzado Osberno descobriu o espaço e a fonte de água que descreve
no seu relato sobre a Conquista de Lisboa como sendo rica em propriedades
curativas.
Embora não existindo vestígios
dessa época, presume-se que a primitiva capela que terá existido no local será
desta época, eventualmente ocupando o mesmo lugar onde em momentos anteriores
terão existido espaços sagrados com outros cultos e diferentes formas de Fé.
Já no Século XVIII, por ordem do
Capitão Francisco Lopes e Azevedo, a aparição no local da própria Santa Eufémia
terá sido a razão que determinou a reedificação do templo medieval, readaptando
a sua zona de banhos e reforçando o culto que se prolongou até à actualidade.
E sublinhando o carácter místico
do espaço, quando o romantismo do Século XIX se impõe, nova intervenção é
efectuada no espaço, promovendo a sua identidade estética e transformando-o
basicamente naquilo que ele é actualmente. A lápide colocada sobre a porta principal
da capela, indicando que as obras foram mandadas fazer anonimamente por um “estrangeiro
devoto”, reforça esse secretismo mítico que o investigador Vítor Manuel Adrião
atribui como possível obra do Rei Dom Fernando II, marido da Rainha Dona Maria
II e membro da linhagem Saxe-Coburgo-Gotha do Norte da Europa.
Foi o Rei Consorte, aliás, quem
recuperou cenicamente a Serra da Sintra, reconstruindo o antigo eremitério da
Pena e construindo ali o Palácio que hoje é ex-libris essencial de qualquer
visita sintrense. A sua reinterpretação do espaço, em linha com a sua formação
cultural de base germânica, é a principal responsável pela recuperação de
grande parte da sua lendária sacralidade.
A lenda de Santa Eufémia, com
todos os traços de uma intemporalidade que é transversal a estas histórias,
carrega consigo os arquétipos mais essenciais do pensamento cultural e
religioso de Portugal.
Rezam as histórias que a tradição
oral sintrense perpectuou, que naquele local terá vivido uma antiga princesa de
nome Eufémia. No auge da sua juventude, e no fulgor romântico dos seus verdes
anos, a Princesa Eufémia apaixonou-se por um rapaz pobre e humilde que vivia
nas redondezas. E seu pai, austero do alto do seu poder, determinou a proibição
daqueles amores, gerando junto dos nubentes um profundo desgosto que no caso do
rapaz terá degenerado numa doença grave a ponto de colocar em risco a sua
própria vida. A princesa, incapaz de lidar com a morte provável do seu amado,
lembra-se de o levar à fonte ali existente e de o banhar nas águas benignas que
tradicionalmente curavam todos aqueles que as utilizavam. E o resultado não se
fez esperar. O rapaz recuperou rápida e totalmente das suas maleitas e a princesa,
para que ninguém se esquecesse do acontecido, marcou com o seu pé uma das rochas
existentes na fonte, deixando uma marca que ali se mantém até à actualidade.
Classificado como Imóvel de
Interesse Público desde 2002, o Alto de Santa Eufémia em Sintra é hoje um
importante ponto de peregrinação fazendo parte dos calendários principais da
Igreja Católica Romana. A romaria popular que ali acontece durante o mês de
Maio, remetendo para as suas origens ritualísticas de índole vegetal,
transporta-nos directamente para as linhas Marianas de pensamento,
profundamente arreigadas no imaginário colectivo nacional.