por João Aníbal Henriques
Situado no extremo
ocidental do concelho de Cascais, onde desde a Idade do ferro se praticam os
desconhecidos para reconhecidos cultos da fertilidade, encontramos o sitio
arqueológico do Espigão das Ruivas, num lugar que a tradição designa como Porto
de Touro ou Guincho Velho.
A envolvência deste
lugar, bastante isolado do resto do território e, por isso, propício ao
desenvolvimento de práticas ritualizadas, aliado ao facto de existir nas suas
imediações um importante curso de água denominado Rio de Touro, possuía
excelentes condições para o desabrochar de relações íntimas com a divindade,
facto comprovado pela existência de um templo neste sítio, e que foi
repetidamente reutilizado durante várias épocas, desde a pré-história até à
actualidade.
De acordo com os
dados arqueológicos fornecidos pelas escavações ali efectuadas pela Associação Cultural de Cascais,
dirigidas pelo arqueólogo Guilherme Cardoso, o Espigão das Ruivas terá sido um
dos principais pontos estratégicos onde se efectuou o culto da fertilidade,
ainda hoje bastante vicejante junto das comunidades humanas que habitam ou
utilizam as redondezas.
O afastamento do
sítio face aos principais aglomerados humanos, bem como a proximidade patente
face ao Rio de Touro, carregado com a simbologia da força e da virilidade,
transformou este local de culto num sítio onde as práticas efectuadas não eram
muito compatíveis com a mentalidade oficial das diversas épocas, factor
condicionante da transformação de uma prática comum a quase todas as
civilizações, ou seja, a adoração dos astros com o intuito de incrementara a
fertilidade da mulher, uma zona profundamente vincada por um misticismo
crescente, o que contribuiu para a manutenção, difusão e desenvolvimento dessas
actividades. A natural curiosidade humana face ao desconhecido, bem como as
especulações que também sob uma forma natural se vão desenvolvendo transformou
o Espigão das Ruivas num sítio onde os meros rituais de passagem
característicos de quase todas as sociedades ditas primitivas, depressa se
transformaram em ritos mágico-religiosos carregados de um misticismo que se
explica de forma natural pelas contingências geográficas e magnéticas
que o local possuía, mas também pelo encantamento e pelo sentido
apelativo que estava inerente às próprias acções ali desempenhadas.
De facto, quer a
denominação de lugar, onde as ruivas representam, segundo a tradição popular,
as antigas ninfas que ali aguardavam o sopro divino que lhes permitia o
desenvolvimento da carga sexual com que encantavam os homens, quer mesmo o nome
que ainda hoje é atribuído ao curso de água ali existente, em que a relação com
o Deus Romano da fertilidade e com o símbolo grego e cartaginês da força e da
pujança está extraordinariamente bem patente, demonstram bastante bem a forma
como a prática reiterada de um exercício que se afasta da vivência quotidiana pode
influenciar as mentalidades, a etnografia e mesmo a vida política de uma
comunidade. Essa influência, por seu turno, acaba por influir, sempre de forma
positiva, no próprio património edificado, tal como se constata pela listagem
patrimonial que apresentamos em anexo.
A chegada dos
romanos à Península Ibérica, bem como o esforço por eles desenvolvido no
sentido de promover a efectivação de um processo de aculturação do qual
dependia a real ocupação deste lugar, acabaram por influir decisivamente no
desenvolvimento da nova mentalidade peninsular. De facto, por serem conhecedores
de novas técnicas de utilização e de rentabilização do solo, herdadas na sua
quase totalidade daquelas que o antigo império grego havia repescado das
civilizações antigas do médio oriente, os romanos que se instalaram em Cascais
acabaram por transformar, de uma forma bastante radical, o modo de vida das
populações indígenas, uma vez que estas últimas, na sua quase totalidade, eram
compostas profissionalmente de agricultores e pescadores, razão pela qual se
tornou bastante fácil o referido processo de aculturação.
Como se sabe, ambas
estas actividades se encontravam bastante dependentes dos elementos naturais
para o seu sucesso ou insucesso, sendo que, aqui como noutros locais, os
habitantes que a elas se dedicam tendem a respeitar de sobremaneira as
expressões do ambiente e do meio envolvente, atribuindo-lhes significação
simbólica e religiosa. Não será por acaso, quanto mais não seja porque o acaso
não existe, que os grupos humanos formados essencialmente por pescadores e
lavradores, tal como acontecia em Cascais no período imediatamente anterior à chegada
dos Romanos, são mais propícios ao desenvolvimento de rituais místicos e
mágicos.
Não será estranho a
nenhum Cascalense, segundo esta ordem de ideias, o encontrar de diversas
capelas e ermidas dedicadas a figuras simbólicas do cristianismo católico,
edificadas sobre vestígios mais ou menos palpáveis de templos ou espaços
sagrados anteriores, nomeadamente atribuídos a cultos pagãos ou indígenas
pré-históricos. A continuidade ritual de Cascais será assim, como não poderia
deixar de ser, o fruto de uma série de influências recebidas dos mais variados
pontos do globo, desde as antigas migrações norte-africanas, até às recentes
comunidades afro-brasileiras que aqui desenvolvem as suas acções. A dependência
da terra e do mar, mesmo na actualidade, favorece as ligações entre o Homem e
Deus, uma vez que o processo de funcionamento da natureza, à partida com
características absolutamente aleatórias, se torna incompreensível para o comum
cidadão, que é obrigado a procurar noutros sítios as explicações para os bons e
maus anos de colheitas e para as boas ou más pescarias.
Assim, as
contribuições dadas pelos invasores itálicos para o conhecimento daquelas que
eram as melhores formas de controlar a natureza depressa lhes granjeou um
respeito e uma fidelidade que veio a permitir a sua vasta interferência nos
rituais mágicos e religiosos praticados neste espaço. Só que, nesta como
noutras áreas directamente relacionadas com a presença romana no actual
território Cascalense, também os invasores superaram o bloqueio ideológico promovido
anteriormente. Os recém-chegados ocupantes, como povo desenvolvido à custa de
intrincados processos de aculturação promovidos em todo o território imperial,
incentivados pela riqueza crescente que a aculturação e a necessidade de
homogeneidade promovia, depressa perceberam que a manutenção física do
território conquistado, para ser duradoura e para produzir os tão almejados
frutos económicos pretendidos, passava mais depressa pelo encetamento de
relações amigáveis com os indígenas, do que pela manutenção de uma posição de
força militar que, como já outros casos o haviam demonstrado, possui um tempo
de vigência muito curto, para além de se tornar bastante dispendioso.
A única solução
compatível, no caso peninsular, onde as populações autóctones possuíam um grau
de desenvolvimento difícil de definir, uma vez que as suas estruturas de
hierarquização social, bem como as principais características de vivência em
grupo, se encontravam providas de bases bastante sólidas, o que, para alguns
investigadores poderá ser sinónimo de um grau bastante grande de
desenvolvimento, foi a de promover o contacto amigável entre os dois grupos, de
onde resultou a miscelânea cultural encontrada em Cascais pelo Prof. José da
Encarnação. Para outros investigadores, a consequente procura crescente de
ritos e rituais paranormais, bem como a existência de uma complicada base
ideológica e religiosa, traduz-se na prática pela pouca aptidão comunal pelas
matérias relacionadas com o conhecimento científico.
Só que, em nosso
entender, esses investigadores esquecem as características que normalmente
revestem essa proclamada cientificidade, de onde se destacam, pela observação
do devir histórico das ciências, o carácter precário e provisório de todas as
descobertas efectuadas em quase todas as áreas do saber. Por esse motivo, e
porque o saber mágico-ritual das populações indígenas Cascalenses, no momento
imediatamente anterior à chegada dos romanos, era de facto bastante complexo,
para além de espelhar grandemente a necessidade de compreensão da natureza e
dos seus fenómenos, será lícito pensar que o desenvolvimento comunitário
inerente a este facto deverá ser tido em conta, sendo essa, afinal, a única
chancela que veio a condicionar o esforço romano de proclamar e desenvolver uma
política de respeito face às crenças e à cultura peninsular. É por este motivo,
mais do que por qualquer outro, que a miscenização entre romanos e indígenas
vai marcar definitivamente a vivência daquele que é actualmente o território
concelhio de Cascais, facto que teve o seu seguimento lógico, em momentos
seguintes, pela continuidade de utilização desta política de mistura que esteve
patente não só durante o período visigótico, com também durante o Árabe e mesmo
durante os anos de ouro dos Descobrimentos.
A comprovar esta
hipótese e na sequência do trabalho epigráfico do Prof. José da Encarnação, já
mencionado anteriormente, está a existência de diversas lápides romanas
encontradas em Cascais onde é possível vislumbrar a mistura em questão. Na sua
obra «Roteiro Epigráfico Romano de
Cascais», embora com algumas naturais reticências, o autor segue
precisamente esse cainho: «por conseguinte, parece ter confluído na identificação
deste divindade influências orientais. Não será de rejeitar a hipótese de uma
relacionação - através do radical ar - com a água corrente, na sequência do
raciocínio, apresentado em 1975, a reflectir a importância da Ribeira de
Manique para os agricultores de antanho. Ma essa divindade tem um cunho étnico,
digamos assim, atendendo ao primeiro sobrenome: protegerá de modo especial os
Aranti; já o segundo encomiástico, terá uma função diferente, a de infundir
confiança - porque Áraco vencerá todos os obstáculos... [...] É a dedicante uma
indígena romanizada: usa o gentilício decerto mais frequente no termo de
Olísipo - Iulius - e, por isso, não hesita em o mencionar simplesmente em
sigla.»
É óbvio, quando se
menciona a vivência psíquica e sagrada de uma comunidade que viveu tão afastada
do presente, que o carácter dos conhecimentos que agora se adquirem e se
difundem podem ser simplesmente pistas que servirão de bases a novas hipóteses,
razão pela qual, e fundamentando a já referida precariedade do conhecimento
científico actual, o ilustre autor acaba por concluir mais à frente: «Uma
interpretação sedutora, confesso; assaz desprovida de fundamentos válidos, não
o nego; mas é nesse campo ainda movediço que, infelizmente, ainda nos
movimentamos quando tentamos desvendar o mundo ainda tão hermético da teonímia
indígena peninsular».